quarta-feira, 2 de maio de 2012

Agricultura familiar é necessária para alimentar o mundo

por Júlia Schnorr

''Só sai, só sai, a reforma agrária, com a aliança camponesa e operária.'' A canção da viola embala o início da Marcha de Abertura do Fórum Social Temático (FST) em Porto Alegre. Mais de 20 mil pessoas caminham na Avenida Borges de Medeiros carregando faixas e cartazes. A música não para: ''Nossa primeira tarefa é ocupar toda terra produtiva/Nós queremos trabalhar/Nossa segunda tarefa é resistir/Entrar bem organizado/Enfrentar para não sair/Nossa terceira tarefa é produzir/No trabalho coletivo, colher muito e repartir.''

Ao longo do Fórum Social Temático, diversas foram as oportunidades para discutir agricultura familiar e reforma agrária. Na conferência de abertura do FST, José Graziano da Silva, diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), palestrou sobre Cooperativismo e agricultura familiar. O dirigente ressaltou que o uso de recursos hídricos e o de insumos agrícolas devem ser diminuídos com a finalidade de realizar uma agricultura com sustentabilidade.

O diretor-geral assumiu a FAO no ano passado definindo alguns desafios, como a segurança alimentar, o estímulo à produção de alimentos e o combate à pobreza. Para ele, não podemos ter desenvolvimento sustentável com pobreza no campo. Graziano da Silva afirmou ainda que as cooperativas são fundamentais, chegando a ser responsáveis por 30% da produção dos alimentos mundiais.

A agricultura familiar foi temática da atividade organizada pela Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar, a Fetraf. A seção sindical centrou suas discussões nos desafios cotidianas dos pequenos produtores, como a permanência dos jovens no campo e a dificuldade de acesso ao crédito. Celso Ludwig, coordenador da Fetraf-Sul, analisou que a queda do desemprego no Brasil é um impulso para que jovens rurais deixem o campo, o que agrega dificuldades para a agricultura familiar e a sucessão hereditária.

Ludwig lembra que para permanecer no campo, há a necessidade de se ter geração de renda, lazer, políticas públicas e acesso à internet – que já foi declarado um direito humano. Ao ponderar sobre o envelhecimento do campo e o modelo de desenvolvimento vigente, Ludwig se perguntou qual o tipo de agricultura que deseja. Sua resposta vem rápida e sem pestanejar: ‘’o campo é o lugar de um espaço de vida e prefiro uma agricultura com pessoas e não somente com máquinas. ’’

O rural como modo de vida

O meio rural¹ é um ‘’espaço suporte de relações específicas'', como parentesco e vizinhança, ''que se constroem, se reproduzem ou se redefinem sobre este mesmo espaço e que, portanto, o conformam enquanto um singular espaço de vida’’. É nesta conjuntura que surge a expressão ''agricultura familiar'', que emergiu no Brasil na década de 1990. Assim, a família é importante referência para o meio rural como vida social, pois a partir dela é estabelecido o sentimento de pertencimento a este espaço de vida.

As terras improdutivas, juntamente com o latifúndio inabitado, são exemplos de áreas sem vida social, onde a função residencial inexiste ou está reduzida. Mesmo nas áreas produtivas e altamente mecanizadas, onde não se utiliza muita mão-de-obra, há um ‘’deserto verde’’. Dessa forma, torna-se difícil encontrar vida social.

 A agricultura familiar ocupa um dos espaços rurais brasileiros onde há vida social local mais intensa², sendo uma contribuição do agricultor familiar na formulação de respostas à crise do modelo produtivista.

Discutindo as políticas governamentais

Uma das maiores dificuldades dos agricultores familiares é o acesso à linha de crédito, especialmente por ser ‘’a agricultura familiar uma prática periférica no processo agrícola do país’’, como afirma a coordenadora nacional da Fetrat Elisângela Araújo. Assim, o desafio de propostas como a do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) são grandes. Criado na década de 1990 e tendo como público alvo os agricultores familiares, o Pronaf tem como objetivo o acesso de crédito, e já designou financiamentos específicos para mulheres e jovens. No entanto, programas como esses são suficientes?

 Para o professor do Departamento de Sociologia da UFRGS Guilherme Radomski, a lógica produtivista acaba por excluir os agricultores endividados e também deixa de lado o grande montante de agricultores que não são os maiores produtores ou que ainda estão se estabelecendo em suas propriedades. Radomsky afirma que a saída encontrada por muitos deles é a pluriatividade do espaço rural, como o investimento no turismo rural ou ‘’bicos’’ em atividades não rurais.

O caso da reforma agrária

Os assentamentos da reforma agrária integram uma parcela de trabalhadores rurais que eram assalariados em propriedades alheias ou que foram expulsos do campo devido à mecanização. O retorno ao meio rural é uma reconstrução da vida local, já que os assentamentos se configuram como espaços que agregam famílias de diferentes localidades. Além de se adequarem à produção da nova região, os assentados têm que estabelecer uma vida social a partir dos contatos com outros assentados, assim como com o meio urbano próximo, principal centro de escoamento da produção.

O desenvolvimento a partir da pequena produção familiar tem grandes opositores, baseados especialmente no argumento do ‘’progresso do país’’. Eles acreditam que se buscaria a justiça social pagando-se o preço de uma agricultura com pouca tecnologia, ou essa atrasada. A reforma agrária, no entanto, é necessária para que o desenvolvimento econômico do país seja acompanhado por uma distribuição de renda. Apoiar a agricultura familiar não implica em conter a modernização agrícola, mas sim reorganizar o meio rural e seus recursos 4.

Mudanças importantes ocorreram para a agricultura familiar nos últimos anos, enquanto outros setores como a reforma agrária permaneceram estagnados. Enquanto o número de famílias assentadas não aumenta como os movimentos sociais desejam, a agricultura familiar foi oficialmente reconhecida pelo governo brasileiro, especialmente através do Pronaf. Com ele, os agricultores que antes eram vistos como a parte empobrecida do campo, hoje se tornam alternativas ao modelo de desenvolvimento do latifúndio.

Dada a conjuntura atual, está nas mãos dos movimentos sociais a função de pressionar o governo com a finalidade de obter encaminhamentos para a reforma agrária. Um dos sentidos da reforma agrária em nosso país é a ampliação das oportunidades de emprego no meio rural, fazendo com que diminua a pressão da oferta de mão de obra no mercado de trabalho urbano.

Para onde vamos?

Os países com maiores índices de desenvolvimento humano tem em comum a presença da agricultura familiar. Ela ''desempenhou um papel fundamental na estruturação de economias mais dinâmicas e de sociedades mais democráticas e equitativas 5.'' Além de incentivos na agricultura, é necessário o fornecimento de outros serviços igualmente encontrados no meio urbano.

Devemos tratar o rural com um novo enfoque. A multifuncionalidade e a pluriatividade são indícios de que o rural não é mais somente agrícola. As políticas públicas para seu desenvolvimento não devem ser voltadas exclusivamente para o setor da agricultura, e sim envolver uma gama maior, desde o investimento em piscicultura até a inclusão digital com acesso à internet com banda larga.

Espaços como o do FST são essenciais para que os movimentos sociais e ativistas se encontrem e discutam com unidade a agricultura familiar e a reforma agrária. O FST é o local para que haja o debate do meio rural como modo de vida. Assim, podemos pensar em reforma agrária, no fim da pobreza no campo, na promoção da democracia e no desenvolvimento social e sustentável. Esse é o mundo rural que desejamos. E ele é possível.

Júlia Schnorr
Historiadora e Mestranda em Comunicação (UFSM) – Pesquisa Juventude rural e televisão  (juliaschnorr@gmail.com)

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