''Só
sai, só sai, a reforma agrária, com a aliança camponesa e operária.'' A canção
da viola embala o início da Marcha de Abertura do Fórum Social Temático (FST)
em Porto Alegre. Mais de 20 mil pessoas caminham na Avenida Borges de Medeiros
carregando faixas e cartazes. A música não para: ''Nossa primeira tarefa é
ocupar toda terra produtiva/Nós queremos trabalhar/Nossa segunda tarefa é
resistir/Entrar bem organizado/Enfrentar para não sair/Nossa terceira tarefa é
produzir/No trabalho coletivo, colher muito e repartir.''
Ao
longo do Fórum Social Temático, diversas foram as oportunidades para discutir
agricultura familiar e reforma agrária. Na conferência de abertura do FST, José
Graziano da Silva, diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a
Agricultura e Alimentação (FAO), palestrou sobre Cooperativismo e agricultura
familiar. O dirigente ressaltou que o uso de recursos hídricos e o de insumos
agrícolas devem ser diminuídos com a finalidade de realizar uma agricultura com
sustentabilidade.
O
diretor-geral assumiu a FAO no ano passado definindo alguns desafios, como a
segurança alimentar, o estímulo à produção de alimentos e o combate à pobreza.
Para ele, não podemos ter desenvolvimento sustentável com pobreza no campo.
Graziano da Silva afirmou ainda que as cooperativas são fundamentais, chegando
a ser responsáveis por 30% da produção dos alimentos mundiais.
A
agricultura familiar foi temática da atividade organizada pela Federação
Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar, a Fetraf. A
seção sindical centrou suas discussões nos desafios cotidianas dos pequenos
produtores, como a permanência dos jovens no campo e a dificuldade de acesso ao
crédito. Celso Ludwig, coordenador da Fetraf-Sul, analisou que a queda do
desemprego no Brasil é um impulso para que jovens rurais deixem o campo, o que
agrega dificuldades para a agricultura familiar e a sucessão hereditária.
Ludwig
lembra que para permanecer no campo, há a necessidade de se ter geração de
renda, lazer, políticas públicas e acesso à internet – que já foi declarado um
direito humano. Ao ponderar sobre o envelhecimento do campo e o modelo de
desenvolvimento vigente, Ludwig se perguntou qual o tipo de agricultura que
deseja. Sua resposta vem rápida e sem pestanejar: ‘’o campo é o lugar de um
espaço de vida e prefiro uma agricultura com pessoas e não somente com
máquinas. ’’
O
rural como modo de vida
O
meio rural¹ é um ‘’espaço suporte de relações específicas'', como parentesco e
vizinhança, ''que se constroem, se reproduzem ou se redefinem sobre este mesmo
espaço e que, portanto, o conformam enquanto um singular espaço de vida’’. É
nesta conjuntura que surge a expressão ''agricultura familiar'', que emergiu no
Brasil na década de 1990. Assim, a família é importante referência para o meio
rural como vida social, pois a partir dela é estabelecido o sentimento de
pertencimento a este espaço de vida.
As
terras improdutivas, juntamente com o latifúndio inabitado, são exemplos de
áreas sem vida social, onde a função residencial inexiste ou está reduzida.
Mesmo nas áreas produtivas e altamente mecanizadas, onde não se utiliza muita
mão-de-obra, há um ‘’deserto verde’’. Dessa forma, torna-se difícil encontrar
vida social.
A agricultura familiar ocupa um dos espaços
rurais brasileiros onde há vida social local mais intensa², sendo uma
contribuição do agricultor familiar na formulação de respostas à crise do
modelo produtivista.
Discutindo
as políticas governamentais
Uma
das maiores dificuldades dos agricultores familiares é o acesso à linha de
crédito, especialmente por ser ‘’a agricultura familiar uma prática periférica
no processo agrícola do país’’, como afirma a coordenadora nacional da Fetrat
Elisângela Araújo. Assim, o desafio de propostas como a do Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) são grandes. Criado na década
de 1990 e tendo como público alvo os agricultores familiares, o Pronaf tem como
objetivo o acesso de crédito, e já designou financiamentos específicos para
mulheres e jovens. No entanto, programas como esses são suficientes?
Para o professor do Departamento de Sociologia
da UFRGS Guilherme Radomski, a lógica produtivista acaba por excluir os
agricultores endividados e também deixa de lado o grande montante de
agricultores que não são os maiores produtores ou que ainda estão se
estabelecendo em suas propriedades. Radomsky afirma que a saída encontrada por
muitos deles é a pluriatividade do espaço rural, como o investimento no turismo
rural ou ‘’bicos’’ em atividades não rurais.
O
caso da reforma agrária
Os
assentamentos da reforma agrária integram uma parcela de trabalhadores rurais
que eram assalariados em propriedades alheias ou que foram expulsos do campo
devido à mecanização. O retorno ao meio rural é uma reconstrução da vida local,
já que os assentamentos se configuram como espaços que agregam famílias de
diferentes localidades. Além de se adequarem à produção da nova região, os
assentados têm que estabelecer uma vida social a partir dos contatos com outros
assentados, assim como com o meio urbano próximo, principal centro de
escoamento da produção.
O
desenvolvimento a partir da pequena produção familiar tem grandes opositores,
baseados especialmente no argumento do ‘’progresso do país’’. Eles acreditam
que se buscaria a justiça social pagando-se o preço de uma agricultura com
pouca tecnologia, ou essa atrasada. A reforma agrária, no entanto, é necessária
para que o desenvolvimento econômico do país seja acompanhado por uma
distribuição de renda. Apoiar a agricultura familiar não implica em conter a
modernização agrícola, mas sim reorganizar o meio rural e seus recursos 4.
Mudanças
importantes ocorreram para a agricultura familiar nos últimos anos, enquanto
outros setores como a reforma agrária permaneceram estagnados. Enquanto o
número de famílias assentadas não aumenta como os movimentos sociais desejam, a
agricultura familiar foi oficialmente reconhecida pelo governo brasileiro,
especialmente através do Pronaf. Com ele, os agricultores que antes eram vistos
como a parte empobrecida do campo, hoje se tornam alternativas ao modelo de
desenvolvimento do latifúndio.
Dada
a conjuntura atual, está nas mãos dos movimentos sociais a função de pressionar
o governo com a finalidade de obter encaminhamentos para a reforma agrária. Um
dos sentidos da reforma agrária em nosso país é a ampliação das oportunidades
de emprego no meio rural, fazendo com que diminua a pressão da oferta de mão de
obra no mercado de trabalho urbano.
Para
onde vamos?
Os
países com maiores índices de desenvolvimento humano tem em comum a presença da
agricultura familiar. Ela ''desempenhou um papel fundamental na estruturação de
economias mais dinâmicas e de sociedades mais democráticas e equitativas 5.''
Além de incentivos na agricultura, é necessário o fornecimento de outros
serviços igualmente encontrados no meio urbano.
Devemos
tratar o rural com um novo enfoque. A multifuncionalidade e a pluriatividade
são indícios de que o rural não é mais somente agrícola. As políticas públicas
para seu desenvolvimento não devem ser voltadas exclusivamente para o setor da
agricultura, e sim envolver uma gama maior, desde o investimento em
piscicultura até a inclusão digital com acesso à internet com banda larga.
Espaços
como o do FST são essenciais para que os movimentos sociais e ativistas se
encontrem e discutam com unidade a agricultura familiar e a reforma agrária. O
FST é o local para que haja o debate do meio rural como modo de vida. Assim,
podemos pensar em reforma agrária, no fim da pobreza no campo, na promoção da
democracia e no desenvolvimento social e sustentável. Esse é o mundo rural que
desejamos. E ele é possível.
Júlia
Schnorr
Historiadora
e Mestranda em Comunicação (UFSM) – Pesquisa Juventude rural e televisão (juliaschnorr@gmail.com)
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