Decorre
da Constituição de 1988 a certeza de que a ordem econômica é fundada, de um
lado, na livre-iniciativa - típica do modelo capitalista de produção -, mas, de
outro, em princípios e valores claramente socializadores, como a valorização do
trabalho humano, a função social da propriedade, a redução das desigualdades
regionais e sociais, a busca do pleno emprego e a defesa do meio ambiente, tudo
para assegurar a todos existência digna. É o que decorre claro do artigo 170 da
Constituição republicana de 1988.
Em meio
a isso se debate o Código Florestal agora aprovado pela Câmara dos Deputados,
do qual resultará a previsível degradação ambiental em larga escala e a óbvia
superação da tutela ambiental pela prevalência inconstitucional dos princípios
da livre-iniciativa, dando prioridade ao chamado agronegócio. Todo o processo
legislativo foi permeado pelo enfrentamento desses interesses, não
necessariamente antagônicos, e prevaleceram tristemente os interesses
econômicos.
Sob o
argumento da necessidade de ampliação da fronteira agrícola e de obtenção de
segurança jurídica, dizem ser primordial a alteração da atual legislação
ambiental, com vista à flexibilização e à imposição de retrocessos e anistias.
A ciência, tentando ser ouvida e lutando para contribuir na discussão, apontou
as perdas, os retrocessos e as consequências danosas das propostas: a Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência e a Academia Brasileira de Ciências se
manifestaram, em diversas ocasiões, no sentido de que as alterações aprovadas
se deram sem nenhum fundamento científico e atentam contra a qualidade
ambiental, sendo prejudiciais a todos os brasileiros. Nessa linha, também se
tem posicionado o Ministério Público.
O Brasil
assistiu, em 25 de abril, à comemoração da bancada ruralista, em todos os meios
de comunicação, pois as alterações aprovadas mais convergem para o econômico do
que para o social. Desde o início do processo legislativo, ainda no Senado,
denuncia-se o retrocesso ambiental causado pelas alterações pretendidas, dentre
elas: 1) dispensa de reserva legal para os imóveis de até quatro módulos
fiscais; 2) sobreposição das áreas de preservação permanente com as áreas de
reserva legal; 3) diminuição das áreas de preservação permanente em decorrência
da mudança de conceitos importantes e já consolidados (como, por exemplo, a
medição das faixas marginais de cursos d'água a partir da calha regular, e não
do nível mais alto, impondo prejuízos imensuráveis às várzeas; diminuição ou
quase extinção nos topos de morros, montanhas e serras; proteção das nascentes
apenas perenes; redução das áreas de proteção permanente dos reservatórios
artificiais; o tratamento excludente de apicuns e salgados em benefício da
carcinicultura); 4) e anistia aos desmatamentos e às ilegais intervenções
ocorridas até 22 de julho de 2008 - apenas para citar alguns pontos. O projeto
aprovado pela Câmara conseguiu ir além: removeu a proteção das áreas de
preservação permanente de veredas; desfigurou a proteção das áreas urbanas, já
tão fragilizadas; flexibilizou, ainda mais, a reparação das áreas de
preservação permanente. E retrocedeu em pontos tidos como importantes, como o
Cadastro Rural.
Tudo
isso quando o contexto mundial é de recrudescimento contra o desmatamento, com
foco nas mudanças climáticas; quando a terceira edição do Panorama da
Biodiversidade Global (GBO-3), produzido pela Convenção sobre Diversidade
Biológica, confirma que o mundo não atingiu a meta que se propôs de alcançar
uma redução significativa da taxa de perda da biodiversidade; quando a ONU
calcula que a perda anual de florestas custa entre US$ 2 trilhões e US$ 5
trilhões, número muito maior que os prejuízos causados pela recente crise
econômica mundial. E quando estamos às vésperas da Rio+20 e deveríamos
estimular a preservação, não o retrocesso ambiental.
Ao
contrário da tão almejada segurança jurídica, o projeto final aprovado põe em
risco a sociedade brasileira, que tem garantido constitucionalmente o direito
fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. O texto aprovado passa
ao largo do equilíbrio constitucionalmente exigido e, como consequência, da sua
implantação só decorrerá degradação ambiental ainda mais expressiva.
O veto
parcial dos pontos modificados pela Câmara não trará de volta esse equilíbrio.
Trará é mais insegurança jurídica. Para a correção absoluta do intento
predatório será necessário o veto total e que a nova discussão tenha início a
partir da perspectiva de que meio ambiente e exploração agrícola não são antagônicos,
mas interdependentes.
O texto
aprovado afronta o sistema constitucional ao contrariar diretamente o disposto
no artigo 225 e seguintes, da Constituição. O Estado brasileiro não assegurará
o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado se ausente o
real intento de preservá-lo e defendê-lo. A proposta, ao contrário, estabelece
instrumentos de perpetuação de danos e degradação, apresentando-se claramente
inconstitucional.
O meio
ambiente ecologicamente equilibrado deve ser a base da agricultura sustentável
e de toda atividade produtiva. Qualquer alteração que se pretenda fazer deve
ter como foco a sociedade como um todo, e não setores específicos dela. Nenhuma
se sobrepõe aos direitos fundamentais. Até porque, como se sabe, a tutela
ambiental tem natureza de direito fundamental e constitui o epicentro do
direito à vida. A Constituição democrática pressupõe que o Poder Executivo
promova o controle preventivo de constitucionalidade dos projetos de lei,
vetando-os. Não se trata de ação política, mas de exigência jurídica para a
preservação do próprio sistema constitucional. A degradação não será apenas
ambiental, será também jurídica se o veto deixar de ser promovido.
* PROCURADOR-GERAL
DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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