domingo, 6 de maio de 2012

Somos poucos, mas vencemos!

Quilombo de Preto Forro recebe título definitivo da terra, a matriarca da comunidade fala das dificuldades enfrentadas ao longo de 20 anos de disputa judicial e comemora a alegria de sentir-se livre de verdade.

 Ainda hoje, a dona de casa Leonídia Maria dos Santos, 76 anos, não se esquece do dia em que um grupo de grileiros invadiu a comunidade quilombola de Preto Forro, em Cabo Frio, litoral do Rio de Janeiro, para derrubar com tratores a casa de tijolos que um de seus filhos tinha acabado de construir. Na mesma hora, Elias dos Santos, 48 anos, se colocou a frente dos invasores para proteger – se necessário, com a vida – sua propriedade. Diante da recusa do homem de arredar pé dali, os grileiros não tiveram outra coisa a fazer senão recusar. “Nasci e fui criada aqui, mas nunca tivemos um minuto de paz. Por diversas vezes, os grileiros invadiram nossa terra e destruíram nossa lavoura. A gente vivia em clima de insegurança. Mesmo assim, nunca desisti de lutar pelo que é meu. Com fé em Deus, a gente consegue tudo”, afirma a moradora mais antiga de Preto Forro.

A luta sem trégua de Leonídia chegou ao fim no último dia 1º de março. Na data em que se comemora o aniversário da cidade do Rio de Janeiro, ela colocou seu vestido mais bonito, se encheu de perfume e visitou, pela primeira vez, o Palácio Guanabara, sede do governo do estado. Foi lá que, em 1888, a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, que pôs fim à escravidão no Brasil. E foi lá também que, 124 anos depois, Leonídia e Elias, hoje presidente da Associação dos Remanescentes Quilombolas de Preto Forro, receberam, das mãos do governador Sérgio Cabral, o Registro Geral de Imóveis (RGI), que regulariza a propriedade definitiva de 24 alqueires de terra. “Somos poucos, mas vencemos. A ideia agora é viver da terra. Mas, para isso, precisamos de sementes, ferramentas e máquinas. O primeiro passo foi dado, mas o caminho é longo”, reconhece Elias.

 Atualmente, cerca de 80 pessoas, divididas em 18 famílias, vivem em Preto Forro. Todas elas, direta ou indiretamente, são descendentes de Ludgério dos Santos. Nascido em 1871, dois anos antes de assinada a Lei do Ventre Livre, Ludgério ganhou, além da alforria e do sobrenome, parte das terras de seu senhor, o alferes Antônio dos Santos. Até pouco tempo, os descendentes de Ludgério tiravam seu sustento da terra. Hoje, precisam trabalhar fora para sobreviver. Na comunidade, existem pedreiros, domésticas e professores. “A conquista do RGI pelo Preto Forro representa uma vitória para todos os quilombolas que enfrentam no Congresso uma ofensiva da bancada ruralista contra seus direitos constitucionais”, afirma Marcelo Dias, superintendente da Igualdade Racial da Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos.

 À espera de um sonho – No Brasil, segundo dados do Conselho Estadual dos Direitos do Negro (Cedine), existem cerca de 3 mil comunidades quilombolas. Deste total, 1.600 estão demarcadas pela Fundação Cultural Palmares, entidade vinculada ao Ministério da Cultura, mas apenas 110 receberam a titulação definitiva, com a supervisão do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Só no estado do Rio, outras 33 comunidades quilombolas sonham com o dia em que poderão – a exemplo do que aconteceu em Preto Forro – conquistar o direito à posse definitiva da terra. Para Paulo Roberto dos Santos, presidente do Cedine, o “lobby” da bancada ruralista é apenas um dos muitos obstáculos a serem superados pelos quilombolas. “A especulação imobiliária e a ação de grileiros são consequências de um capitalismo cada vez mais excludente”, lamenta Paulo Roberto.

 O tempo que uma comunidade quilombola leva até ser devidamente “titulada” varia muito porque depende de inúmeros fatores. Só para ter uma ideia da complexidade do processo, ele envolve órgãos de diferentes esferas: municipal, estadual e federal. Como o Incra, por exemplo. “O nosso papel é regularizar as terras pertencentes aos remanescentes de quilombos, sejam elas públicas ou particulares, mediante processo de identificação, delimitação, reconhecimento, desintrusão e titulação”, detalha Givânia Maria da Silva, coordenadora-geral de Regularização de Territórios Quilombolas do Incra. No caso de Preto Forro, a disputa judicial levou 20 longos anos até ser solucionada. “Não é fácil viver em uma terra que, embora você saiba que é sua, se sente ameaçado o tempo todo. Mesmo assim, nunca perdi as esperanças”, garante Elias.

 Durante a cerimônia de entrega do RGI para a comunidade de Preto Forro, o secretário estadual de Habitação, Rafael Picciani, prometeu uma série de ações que possibilita a geração de renda para os quilombolas. Estão previstas s implantação de uma granja de produção familiar, a plantação de milho para ração e a produção de ovos caipiras. O projeto prevê, ainda, ações sustentáveis, como a criação de rede coletora de águas pluviais, a instalação de aquecedor solar de baixo custo e o plantio de árvores frutíferas. “Mais do que a posse e a propriedade da terra, a concessão deste título representa a preservação de valores étnicos, históricos e culturais da comunidade quilombola”, salienta Luiz Claudio Vieira, gerente de regularização Fundiária do Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro (ITERJ), vinculado à Secretaria Estadual de Habitação.

 A vitória da cidadania – A alegria é tanta que, a todo momento, Leonídia se belisca para ter certeza de que não está sonhando. Pela primeira vez em muitos anos, ela diz se sentir uma pessoa livre de verdade. “Não conseguia dormi bem à noite porque tinha medo de ser expulsa do lugar onde nasci. Graças a Deus, tudo terminou bem”, suspira, aliviada, que no auge de seus 76 anos gosta de lavar roupa, alimentar as galinhas e capinar a terra. Só para de trabalhar quando as costas começam a incomodar. “não aprendi a dormir de dia. Por isso, fico arranjando coisa para fazer. Além disso, se eu ficar muito tempo parada, acho que caio doente”, faz graça, antes de soltar outra gostosa gargalhada. Nas horas de lazer, gosta de reunir alguns de seus filhos e netos para assistir a TV ou ouvir rádio. “Filhos, ao todo, eu sei que são dez. mas, netos e bisnetos, para ser honesta, já perdi a conta”, brinca.

 No estado do Rio, a comunidade quilombola de Preto Forro foi a segunda a receber a titulação definitiva de suas terras. A primeira a ser beneficiada com o registro imobiliário foi a de Campinho de Independência, em Parati, há 13 anos. Atualmente, a comunidade, formada por 120 famílias, vive da agricultura familiar, da mandioca e cana-de-açúcar; do artesanato, feito com taboa, taquara e cipó; e do turismo étnico, que valoriza aspectos culturais, como o jongo, a roda de samba e de capoeira. A previsão do ITERJ é de que a próxima comunidade a ser titulada no estado do Rio seja a de Pedra do Sal, na zona portuária da capital. “estou cada vez mais convencido de que, com vontade política e desobstrução burocrática, quase tudo se resolve nesta vida. A titulação definitiva de um quilombo significa a vitória da cidadania sobre a terra”, festeja Paulo Roberto.

André Bernardo

 <O Observatório Quilombola publica todas as informações que recebe, sem descartar ou privilegiar nenhuma fonte, e as reproduz na íntegra, não se responsabilizando pelo seu conteúdo.>
Fonte: Revista Família Cristã, v.78, n.917

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