Quilombo
de Preto Forro recebe título definitivo da terra, a matriarca da comunidade
fala das dificuldades enfrentadas ao longo de 20 anos de disputa judicial e
comemora a alegria de sentir-se livre de verdade.
A
luta sem trégua de Leonídia chegou ao fim no último dia 1º de março. Na data em
que se comemora o aniversário da cidade do Rio de Janeiro, ela colocou seu
vestido mais bonito, se encheu de perfume e visitou, pela primeira vez, o
Palácio Guanabara, sede do governo do estado. Foi lá que, em 1888, a Princesa
Isabel assinou a Lei Áurea, que pôs fim à escravidão no Brasil. E foi lá também
que, 124 anos depois, Leonídia e Elias, hoje presidente da Associação dos
Remanescentes Quilombolas de Preto Forro, receberam, das mãos do governador
Sérgio Cabral, o Registro Geral de Imóveis (RGI), que regulariza a propriedade
definitiva de 24 alqueires de terra. “Somos poucos, mas vencemos. A ideia agora
é viver da terra. Mas, para isso, precisamos de sementes, ferramentas e
máquinas. O primeiro passo foi dado, mas o caminho é longo”, reconhece Elias.
Atualmente,
cerca de 80 pessoas, divididas em 18 famílias, vivem em Preto Forro. Todas
elas, direta ou indiretamente, são descendentes de Ludgério dos Santos. Nascido
em 1871, dois anos antes de assinada a Lei do Ventre Livre, Ludgério ganhou,
além da alforria e do sobrenome, parte das terras de seu senhor, o alferes
Antônio dos Santos. Até pouco tempo, os descendentes de Ludgério tiravam seu
sustento da terra. Hoje, precisam trabalhar fora para sobreviver. Na
comunidade, existem pedreiros, domésticas e professores. “A conquista do RGI
pelo Preto Forro representa uma vitória para todos os quilombolas que enfrentam
no Congresso uma ofensiva da bancada ruralista contra seus direitos
constitucionais”, afirma Marcelo Dias, superintendente da Igualdade Racial da
Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos.
À
espera de um sonho – No Brasil, segundo dados do Conselho Estadual dos Direitos
do Negro (Cedine), existem cerca de 3 mil comunidades quilombolas. Deste total,
1.600 estão demarcadas pela Fundação Cultural Palmares, entidade vinculada ao
Ministério da Cultura, mas apenas 110 receberam a titulação definitiva, com a
supervisão do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Só
no estado do Rio, outras 33 comunidades quilombolas sonham com o dia em que
poderão – a exemplo do que aconteceu em Preto Forro – conquistar o direito à
posse definitiva da terra. Para Paulo Roberto dos Santos, presidente do Cedine,
o “lobby” da bancada ruralista é apenas um dos muitos obstáculos a serem
superados pelos quilombolas. “A especulação imobiliária e a ação de grileiros
são consequências de um capitalismo cada vez mais excludente”, lamenta Paulo
Roberto.
O
tempo que uma comunidade quilombola leva até ser devidamente “titulada” varia
muito porque depende de inúmeros fatores. Só para ter uma ideia da complexidade
do processo, ele envolve órgãos de diferentes esferas: municipal, estadual e
federal. Como o Incra, por exemplo. “O nosso papel é regularizar as terras
pertencentes aos remanescentes de quilombos, sejam elas públicas ou
particulares, mediante processo de identificação, delimitação, reconhecimento,
desintrusão e titulação”, detalha Givânia Maria da Silva, coordenadora-geral de
Regularização de Territórios Quilombolas do Incra. No caso de Preto Forro, a
disputa judicial levou 20 longos anos até ser solucionada. “Não é fácil viver
em uma terra que, embora você saiba que é sua, se sente ameaçado o tempo todo.
Mesmo assim, nunca perdi as esperanças”, garante Elias.
Durante
a cerimônia de entrega do RGI para a comunidade de Preto Forro, o secretário
estadual de Habitação, Rafael Picciani, prometeu uma série de ações que
possibilita a geração de renda para os quilombolas. Estão previstas s
implantação de uma granja de produção familiar, a plantação de milho para ração
e a produção de ovos caipiras. O projeto prevê, ainda, ações sustentáveis, como
a criação de rede coletora de águas pluviais, a instalação de aquecedor solar
de baixo custo e o plantio de árvores frutíferas. “Mais do que a posse e a
propriedade da terra, a concessão deste título representa a preservação de
valores étnicos, históricos e culturais da comunidade quilombola”, salienta
Luiz Claudio Vieira, gerente de regularização Fundiária do Instituto de Terras
e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro (ITERJ), vinculado à Secretaria
Estadual de Habitação.
A
vitória da cidadania – A alegria é tanta que, a todo momento, Leonídia se
belisca para ter certeza de que não está sonhando. Pela primeira vez em muitos
anos, ela diz se sentir uma pessoa livre de verdade. “Não conseguia dormi bem à
noite porque tinha medo de ser expulsa do lugar onde nasci. Graças a Deus, tudo
terminou bem”, suspira, aliviada, que no auge de seus 76 anos gosta de lavar
roupa, alimentar as galinhas e capinar a terra. Só para de trabalhar quando as
costas começam a incomodar. “não aprendi a dormir de dia. Por isso, fico
arranjando coisa para fazer. Além disso, se eu ficar muito tempo parada, acho
que caio doente”, faz graça, antes de soltar outra gostosa gargalhada. Nas
horas de lazer, gosta de reunir alguns de seus filhos e netos para assistir a
TV ou ouvir rádio. “Filhos, ao todo, eu sei que são dez. mas, netos e bisnetos,
para ser honesta, já perdi a conta”, brinca.
No
estado do Rio, a comunidade quilombola de Preto Forro foi a segunda a receber a
titulação definitiva de suas terras. A primeira a ser beneficiada com o
registro imobiliário foi a de Campinho de Independência, em Parati, há 13 anos.
Atualmente, a comunidade, formada por 120 famílias, vive da agricultura
familiar, da mandioca e cana-de-açúcar; do artesanato, feito com taboa, taquara
e cipó; e do turismo étnico, que valoriza aspectos culturais, como o jongo, a
roda de samba e de capoeira. A previsão do ITERJ é de que a próxima comunidade
a ser titulada no estado do Rio seja a de Pedra do Sal, na zona portuária da
capital. “estou cada vez mais convencido de que, com vontade política e
desobstrução burocrática, quase tudo se resolve nesta vida. A titulação
definitiva de um quilombo significa a vitória da cidadania sobre a terra”,
festeja Paulo Roberto.
André
Bernardo
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