quarta-feira, 23 de maio de 2012

Serejo: Leite de Burra

Por: Vicente Serejo

Vi outro dia, numa das ruas desse mundo velho de Deus, caixas de leite e também sofisticados sabonetes de leite de burra. Trouxe um deles para meu compadre Iaperi Araújo que conhece a medicina do povo desde os sertões velhos.

E cobrei: você paga o elevado preço e a mão de obra do transporte com um artigo. Ele mandou uma belíssima carta que transcrevo na íntegra. Guardá-la seria privar os meus leitores de um belo instante de fruição e talento.

 Serejo:

 O leite de burra, tão desprestigiado nos tempos atuais está sendo resgatado pela indústria de cosméticos.  Busquei na internet e achei sabonete a E4,89. O creme de leite a E21,68 e o leite de saquinho, l litro a  E39,34 com um subtítulo “o segredo de Cleópatra”.  Aliás é de conhecimento comum que a rainha do Egito tomava banho diariamente com o leite da fêmea do jumento e que para isso dispunha de um plantel de 700 animais para o fornecimento do seu cosmético preferido que lhe dava aquela pele lisinha, fresca e sempre jovem.  Sabe-se hoje, que o leite de burra tem características que o deixam muito próximo da composição do leite humano, é muito rico em nutrientes essenciais e oligo-elementos, como proteínas lácteas, Carité, Vitaminas, Cálcio e Minerais, pelo que apresenta propriedades restauradoras e renovadoras, aporta maior elasticidade e vitalidade, refletindo-se com a sua utilização numa pele jovem e saudável, hidratada e protegida contra o envelhecimento.

 Recentemente, um grupo de cientistas indianos atribuiu outras qualidades ao leite de jumenta, entre as quais a de restabelecer o sistema imunitário humano. Realizaram um trabalho com o título “A cure from donkey´s milk? Immuno-stimulants in milk could provide cure for câncer” publicado no Indian Jornal of Medical Sciences em Novembro de 1999.

 Outra curiosidade: O doutor Parrot, responsável pelo Hospital des Enfants Assistés de Paris no século XIX, em Relatório publicado no Boletim Oficial de Medicina em 1882 informava sobre os cuidados que deveriam ter para alimentar seus recém-nascidos com o leite de jumenta: “As instalações onde estão as burras devem ser cuidadas, bem arejadas e limpas; devem comunicar com os dormitórios das crianças. As burras, bem tratadas, deixam os bebês alimentarem-se. A sua anatomia adapta-se bem à boca do bebê. A enfermeira senta-se ao lado da burra e pega no bebê, de vez em quando, pressiona ligeiramente para ajudar a saída do leite. As crianças mamam 5 vezes por dia e 2 vezes durante a noite. Uma burra pode alimentar 3 crianças de 5 meses.”

 O leite de jumenta é 60 vezes mais rico em vitaminas C, E, D e A e em cálcio que o leite de vaca.

 Fui do tempo em que menino magro, “biqueiro” ou seja, ruim de comer, só se fartando com milacrias, doces, balas e outras coisas sem maior valia, para combater a magreza crônica, o linfatismo, o raquitismo e o fastio tinha que tomar leite de burra.

 O leite da fêmea asinina é muito espesso, quase da textura de um creme de leite e é considerado muito forte.  Tomei, não nego, da jumenta de Luis de Adelino que era botador d’água lá de casa em São Vicente, no Seridó potiguar pelos idos de  1950.  Também, fui sempre menino magro, comendo pouco e botando banca nos de comer.  Quando de braço somente comia se fosse das mãos de minha babá, Maria do Carretão que dispensada, não sei porque, foi buscada às pressas, aceitando-se todas as suas condições para acabar com minha greve de fome.  E eu era somente uma criança de braço. Mamei em minha mãe até quase os 4 anos de idade e Iaponi mamou até os 7.  Não era propriamente uma refeição, mas um complemento que a gente ficava esperando Iran, recém-nascido, ser amamentado, para a gente invadir o campo no segundo tempo.  Mais vício de menino.

 Por ser biqueiro na comida, acabei sendo condenado a tomar leite de burra o que era feito bem cedo, num copo de alumínio, sem açúcar e sob forte enjôo e engulhos após bebê-lo à força.  Depois, era obrigado a tomar um banho frio.  Preceitos da medicina popular e natural para curar a fraqueza, o fastio e o raquitismo.  A ausência do açúcar justificava-se no aumento do valor do leite como remédio.  Aquilo não era brincadeira, não.  Era remédio e portanto não tinha que ser gostoso.

 O linfatismo, uma dessas doenças que era tratada com a ingestão do leite de burra era um estado além do raquitismo.  O menino raquítico era magro e tinha ossos frágeis.  Se caía, quebrava um osso. A ossificação do esterno, o “trio dos peitos” onde se inseriam as costelas era precária e quando na adolescência, e por deficiência de cálcio, o osso afundava dando uma conformação de “peito de pombo”.  O linfatismo além do corpo raquítico causava muita “reima” no corpo dos meninos.  Uma picada de mosquito formava uma ferida infectada.  Uma virose era um desastre, apesar da grande resistência decorrente das brincadeiras nas ruas, dos banhos nos barreiros, do contato com o chão e a sujeira.

 Não me lembro do gosto nem do cheiro do leite de burra, um verdadeiro purgante, mas garanto que diferentemente de Cleópatra, rainha do Egito, não era usado por a gente como cosmético.  Era prá beber mesmo, prá fortalecer os ossos e os dentes, abrir o apetite, fazer o menino crescer depressa e forte.  De quebra, formava um temperamento dos diabos.  Turrão, respondedor, independente e com dificuldade de aprender.  Lasquei-me.  Desses predicados todos só não herdei a dificuldade em aprender.  Na Escola era inquieto e buliçoso, mas tava com um olho no mundo e um ouvido no que a professora ensinava.  Por sinal, minha primeira professora foi minha mãe que tirou-me as orelhas de asno, ensinando-me as primeiras letras ainda novo.  Tanto que aos 5 anos eu estava alfabetizado.  Lia e escrevia de carreirinha.  Mérito dela, minha mãe.  Desmérito do leite de burra.

 a) Iaperi Araújo.

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