Em
um artigo do dia 5 de outubro de 2005, o New York Times elogiou o contingente
de antropólogos engajados em uma grande operação para reduzir os ataques contra
soldados norte-americanos e afegãos.
Em
operação há vários anos, o programa Sistemas de Terreno Humano (Human Terrain
Systems – HTS) foi consideravelmente reforçado pelo Exército norte-americano em
setembro de 2007.1 Antropólogos foram recrutados e diretamente integrados
(embedded) em unidades de combate nas brigadas e divisões no Iraque e
Afeganistão. Eles foram encarregados de aconselhar os comandantes sobre as
ações culturais a serem realizadas em campo. Gerenciado pela empresa privada
BAE Systems,2 o HTS concentra-se em fornecer informações aos militares
confrontados com situações potencialmente violentas, evitando que interpretem
erroneamente as ações da população local e permitindo-lhes analisar as
situações nas quais se encontram.
Em
um artigo do dia 5 de outubro de 2005, o New York Times elogiou o contingente
de antropólogos engajados em uma grande operação para reduzir os ataques contra
soldados norte-americanos e afegãos. Tendo identificado um grande número de
viúvas na área-alvo, os especialistas presumiram que os jovens a elas aparentados
poderiam sentir-se obrigados a dar-lhes apoio material, unindo-se assim, por
necessidade econômica, aos insurgentes que remuneram os combatentes. Desse
modo, a aplicação de um programa de formação profissional para essas viúvas
teria ajudado a reduzir o número de ataques.
O
programa HTS preocupa muitos antropólogos, até porque remete a tristes
precedentes. Lançado em 1965, o projeto Camelot, de curta duração, recrutou
antropólogos para avaliar as causas culturais da violência. O campo de testes
escolhido foi o Chile, na época em que a Agência Central de Inteligência (CIA)
tentava impedir que o socialista Salvador Allende chegasse ao poder.
O
segundo projeto, sob o nome de Apoio a Operações Civis e Desenvolvimento
Revolucionário (Civil Operations and Revolutionary Development Support– Cords),
tinha a missão de coordenar programas civis e militares de “pacificação”
norte-americanos no Vietnã. Ele visava estabelecer um “mapeamento humano” do
terreno, para identificar – e, portanto, definir como alvos potenciais –
indivíduos e grupos suspeitos de apoiar os comunistas vietnamitas. Sabe-se com
certeza que a pesquisa antropológica foi utilizada durante essa operação.
Assim
como os médicos acatam o juramento de Hipócrates, os antropólogos possuem um
código de ética que afirma que suas atividades não devem de forma alguma
prejudicar as populações estudadas, e que estas devem “consentir, com
conhecimento de causa”, participando das atividades de pesquisa. Essa condição
é obviamente impossível em condições de combate. Muitas pessoas ao redor do
mundo já consideram tais especialistas como espiões, mesmo quando realizam
pesquisas em uma situação normal, o que atrapalha sua missão científica. Todas
essas razões explicam por que a operação HTS torna-se imediatamente o centro
das atenções da categoria.
Em
setembro de 2007, um grupo de universitários formou a Rede de Antropólogos
Conscientes (Network of Concerned Anthropologists),3 inspirada em físicos que
se opunham ao programa “Guerra nas Estrelas”, sistema de defesa antimíssil
norte-americano lançado em 1983 pelo então presidente Ronald Reagan. A rede
escreveu um projeto de “compromisso de não participação na contrainsurreição”.
Um de seus fundadores, David Price, da St. Martin University de Lacey
(Washington), explica: “Não somos todos necessariamente contra a ideia de
trabalhar com o Exército, mas nos opomos a tudo que se relaciona à
contrainsurreição ou que constitua uma violação dos padrões éticos da pesquisa.
Solicitamos que nossos colegas proclamem que não querem utilizar a antropologia
para esse fim”.4
Em
outubro de 2007, o Conselho Executivo da Associação Norte-Americana de
Antropologia publicou uma vigorosa declaração que não proibia explicitamente a
participação no projeto HTS, mas alertava todos os seus membros contra a
possível violação do código de ética da profissão que essa participação poderia
acarretar.
Na
reunião anual da associação em Washington, em novembro de 2007, essas
atividades estavam no centro de uma controvérsia que continua gerando polêmica.
Em uma sessão intitulada “O Império responde: perspectivas dos militares e
serviços de inteligência norte-americanos sobre suas relações com a
antropologia”,5 defensores e opositores do programa enfrentaram-se diante de
uma enorme plateia. Participantes que haviam colaborado com o Exército tentaram
convencer os colegas do efeito salutar de seu trabalho, que teria ajudado a
transformar as atitudes dos militares e torná-los mais sensíveis às diferenças
culturais. Os céticos avaliaram que aqueles que cooperaram com o Exército são
ingênuos a respeito do uso de suas pesquisas.
Essa
viva controvérsia desembocou numa resolução que, se ratificada por todos,
poderá reforçar o código de ética e banir qualquer atividade de pesquisa
secreta para serviços de inteligência. Um dos principais defensores da
cooperação com o Exército é a doutora Montgomery McFate, antropóloga da
Universidade de Yale e membro do Institute for Peace dos Estados Unidos. Em um
seminário realizado no dia 10 de maio de 2007, Montgomery apresentou um plano
que contribuiu para o desenvolvimento do projeto HTS. Segundo ela, o Exército
gasta pouco com a pesquisa em ciências sociais, a qual poderia revelar-se
crucial para o sucesso das operações militares. Para reparar essa grande lacuna
em termos de conhecimento, ela recomendou a criação de um vasto programa de
pesquisa em ciências sociais, que implicaria na construção de um banco de dados
socioculturais, com o recrutamento de jovens analistas culturais nos serviços
governamentais, e a fundação de um escritório central de conhecimento cultural.
Para
a categoria, nenhum dos esforços de pesquisa defendidos por Montgomery traz
dificuldades. No entanto, quando o conhecimento é utilizado como arma no campo
de batalha, a situação torna-se mais problemática. É precisamente essa fina
linha entre o bom e o mau uso da antropologia que continua a levantar questões.
William
O. Beeman
Professor
e presidente da Faculdade de Antropologia da Universidade de Minnesota,
Minneapolis. Também é presidente da seção Oriente Médio da Associação
Norte-americana de antropologia
1
Segundo um artigo publicado no site da British Broadcasting Corporation
(BBC), “US army enlists anthropologists” [Exército norte--americano recruta antropólogos], 16 out. 2007, milhões de dólares foram disponibilizados para o projeto. Um antropólogo enviado para uma missão em campo equivaleria a US$ 400 mil por ano.
2 A empresa foi criada pela British Aerospace e Marconi Electronic Systems.
3 Muitas informações interessantes podem ser encontradas no site da organização: <http://sites.google.com/site/concernedanthropologists>.
4 Entrevista para o programa Democracy now [Democracia agora], no dia 13 de dezembro de 2007.
5 “The Empire speaks back: US military and intelligence organization’s perspectives on engagement with anthropology”.
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