Alimentada
pela renda do “ouro negro”, Angola transforma-se num imenso canteiro de obras.
Mas, num país onde a sociedade civil engatinha, será possível construir
democracia e distribuir a riqueza?
“O
maior símbolo da modernidade angolana está em construção.” É assim que as
incorporadoras do país se referem à Torre Angola, que em breve dominará o
horizonte de Luanda. Lançada em janeiro passado, terá a forma da letra “A” e
será a mais alta do continente africano, com 380 metros. São setenta andares,
que abrigarão um hotel de luxo de 1.400 quartos, um centro comercial, uma
clínica, cinemas e apartamentos, vendidos por R$ 10,7 mil o metro quadrado.
Custo previsto: R$ 1,315 bilhão.
O
grandioso empreendimento não é o único. Após a guerra civil, Angola tornou-se
um vasto canteiro de obras e os arranha-céus brotaram como mato. O país
reencontrou a paz em 2001, com o acordo de Luanda, firmado entre o governo do
Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e a União Nacional pela
Independência Total de Angola (Unita).1 Os novos edifícios que apareceram desde
então pertencem a empresas petrolíferas, bancos ou seguradoras.
Um
exemplo é a sede da Sonagol, a todo-poderosa companhia nacional de petróleo, que
se ergue diante da esplêndida baía natural de Luanda. O ouro negro representa
60% do Produto Interno Bruto (PIB), 90% das receitas de exportação e 83% das
rendas estatais. E a prosperidade, ao menos por enquanto, deve continuar: em
breve, Angola atingirá a marca de 2 milhões de barris de petróleo por dia! No
topo do prédio, o heliporto é uma ferramenta indispensável para escapar dos
congestionamentos da capital, invadida por milhares de ruidosos veículos 4x4 de
grande porte. Como os incorporadores iniciaram essas construções sem se
preocupar com o entorno imediato, a paisagem contemporânea congrega ruas
enlameadas, cheias de buracos e com trânsito caótico. Andar a pé tampouco é
aconselhável: além de diversos obstáculos, tais como lixo e poças de água, as
obras públicas de saneamento urbano tornaram as calçadas impraticáveis.
Assim,
a cidade parece não acompanhar o ritmo do próprio crescimento. Outra prova
disso é a escassez de espaços para a edificação de mais prédios. A situação é
tão grave que provocou a volta do antigo plano de criar uma nova capital
administrativa. O lugar já foi escolhido: é o estuário do Rio Dande, cerca de
60 quilômetros ao norte de Luanda. O governo está tão empenhado no sucesso da
iniciativa que confiou o projeto a um renomado escritório do outro lado do
oceano: o do arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer.
Mas
os empreendedores angolanos bem colocados nos círculos de poder ainda insistem
em recuperar Luanda. Eles acreditam ser possível transformá-la em uma capital
futurista, inspirada nas cidades do Golfo Arábico. A famosa avenida que margeia
a baía desde o porto e chega até a fortaleza portuguesa do século XVI será
alargada, avançando sobre o mar. Obras estimadas em cerca de R$ 340 milhões
devem ser realizadas por empreiteiras privadas que, em troca, receberão
gratuitamente áreas para construir edifícios pomposos, avaliados em R$ 3,3
bilhões e bem em frente às águas do Atlântico! “Pelo menos o pior foi evitado.
O projeto de construir um arranha-céu bem no meio dessa baía, seguindo o modelo
de Dubai, parece ter sido abandonado”, analisa um morador.
E
o que está sendo feito além de condomínios de luxo? Bem, nos corredores do
poder existem inúmeros projetos que visam melhorar o destino dos musseques
(favelas) superpovoados, mas sua realização é lenta. Tanto que, atrás do porto,
perto de um grande mercado popular e do bairro das embaixadas, um dos musseques
mais miseráveis continua avançando sobre uma montanha de lixo.
Classificada
entre as capitais mais caras do mundo, Luanda viu afluir em sua direção uma
parte considerável da população camponesa, deslocada pela guerra. Em
decorrência, a cidade vive uma penúria de habitação. Dois terços de seus 5
milhões de habitantes estão espremidos em periferias desassistidas, por onde se
espalham imensos barracos, construídos rapidamente para atender à demanda. Para
percorrer os quilômetros que os separam do centro da cidade, os trabalhadores
dos bairros periféricos gastam até 400 kwanzas por dia em transportes,
aproximadamente R$ 7,80. A água vendida por caminhões-pipa privados custa o
equivalente a R$ 16,40 o metro cúbico, treze vezes mais que o preço praticado
pela empresa pública, que só atende a 1 milhão de pessoas. A eletricidade é
outro pesadelo. Os luandenses sofrem cortes de luz regulares, em função do
péssimo estado das linhas de alta tensão que ligam a capital às barragens do
Rio Kwanza. Um exemplo é a hidrelétrica de Capanda, a maior do país:
recentemente concluída, ela tem capacidade de produção de 520 megawatts, mas
consegue abastecer apenas 170 mil casas. A companhia provincial coloca a culpa
da falta de investimentos nos preços extremamente baixos cobrados pela energia,
herança dos anos de economia centralizada que se seguiram à independência.
Depois da guerra, o governo negligenciou a reconstrução das linhas danificadas
por sabotagens da Unita. Os trabalhos de religação começaram graças a
financiamentos chineses e, quando concluídos, podem aumentar o fornecimento de
eletricidade em 42%.
A
verdade é que, em Angola, as desigualdades são gritantes por toda parte, nas
regiões urbanas e rurais, no litoral e interior. O cenário é um dos mais
perversos do mundo, pois 62% da renda nacional está concentrada nas mãos de 20%
da população. A degradação sanitária é explicitada pelas recorrentes epidemias
de cólera. Em 2006, foram mais de 70 mil casos, que deixaram 2.800 mortos. Além
disso, apesar de uma taxa de crescimento de 23% em 2007, o país está em 162º
lugar (de 177) na escala de desenvolvimento humano2 e certamente não conseguirá
atingir nenhum dos objetivos do milênio até 2015.
Contudo,
a renda do petróleo3 e os empréstimos com taxas preferenciais cedidos pela
China desde 2004, somados aos créditos oferecidos por Brasil, Espanha e
Alemanha, fizeram Angola sair da letargia. O governo pôde desenvolver obras
caras nos quatro cantos do país e ainda há muito para ser feito. A última fase
do conflito, que se seguiu às primeiras eleições democráticas vencidas pelo
MPLA em 1992, foi particularmente destrutiva para as infraestruturas já
atingidas nos bombardeios do exército sul-africano.
O
orçamento de 2008 é de R$ 65 bilhões e prevê investir R$ 19,8 bilhões4 na
reconstrução do país. Milhares de quilômetros de rodovias, estradas de ferro,
pontes e barragens, além de hospitais, escolas e edifícios que permitam a
reinstalação da administração estatal, em todos os escalões, foram projetados
ou já estão em fase de construção. Desde o fim da guerra, a parte do orçamento
dedicada ao setor social está em franco crescimento: 31% este ano, contra
apenas 4% em 2005. O Ministério de Defesa, por sua vez, teve os custos
reduzidos.
É
difícil avaliar o impacto dessas políticas, já que as necessidades são enormes
em um país onde quase a metade da população não tem acesso aos tratamentos
médicos básicos, à água potável ou à eletricidade. Um plano ambicioso em favor
da saúde, que envolve formação de pessoal e compra de equipamentos, foi lançado
em 2007 e prevê um investimento de R$ 1,15 bilhão em dois anos. As empresas de
construção chinesas já entregaram os hospitais regionais e distritais, que
agora devem receber aparelhos modernos. Seria o começo da tão esperada
distribuição de renda no país? “Não é o caso”, avalia o sociólogo Paulo de
Carvalho. Para ele, “as políticas públicas não privilegiarão a inclusão social da
maioria dos angolanos”. João Melo, escritor, deputado do MPLA e diretor da
revista Africa 21, concorda com a afirmação do sociólogo. Ele acredita que “o
núcleo detentor do poder tende a satisfazer prioritariamente os interesses das
camadas mais abastadas, prestando mais atenção à privatização de setores
estratégicos, quase sempre favorável aos mesmos membros da elite, que às
questões sociais ou à reabilitação dos bairros populares”. De acordo com Melo,
o individualismo e o egoísmo social das classes privilegiadas não são fenômenos
novos. “Na falta de políticas de relançamento do setor produtivo,
principalmente da agricultura e da indústria manufatureira, o país está
condenado a taxas de desemprego extremamente altas.5 Deve permanecer uma
‘economia de importações’ [com exceção do petróleo].”
Denunciada
pelas instituições financeiras internacionais no final dos anos 1990 por
corrupção qualificada,6 Angola recebe hoje os cumprimentos do Banco Mundial e
do Fundo Monetário Internacional (FMI). O excedente da balança de pagamentos e
as reduções da dívida e da inflação (de 1.400% em 1998 para 13% este ano) são
especialmente valorizados. Luanda conseguiu até reconstituir suas reservas em
divisas: elas passaram de R$ 327,6 milhões, em 2002, para R$ 15,6 bilhões, em
2008! E tudo sem ajuda internacional, já que, ao final da guerra, o governo
recusou-se a assinar acordos de ajuste estrutural com o FMI7 por divergir sobre
as formas de estabilizar a economia e optou por privilegiar setores que
lucravam com a opacidade do sistema.
Por
isso, a crítica mais frequente dos intelectuais e da mídia, incluindo os meios
de comunicação próximos ao MPLA, que dirige o Governo de União e Reconciliação
Nacional (Gurn), é a falta de visão estatal.8 Regularmente surgem vozes na
sociedade civil repreendendo as autoridades pelos negócios especulativos, cujos
exemplos são muitas vezes mostrados no noticiário, particularmente no caso do
conflito de interesses em que personalidades que ocupam cargos no governo criam
empresas em setores de sua competência. É preciso ampliar os horizontes do
governo: se trabalharmos com a possibilidade realista de não haver descobertas
de novos reservatórios, o petróleo renderá no máximo R$ 18,2 bilhões em 2025,
contra pelo menos R$ 242 bilhões no momento do pico da produção, previsto para
entre 2010 e 2014.9 Nesse período, a população terá quase dobrado, o que
demonstra a necessidade de repensar a atual estratégia de desenvolvimento do
país.
É
verdade que, preocupado com a insuficiência da redistribuição da renda, o MPLA
preconizou o abandono de políticas neoliberais durante a elaboração de sua
Agenda Nacional de Consenso até 2025. Mas não será essa uma simples artimanha
destinada a mobilizar os militantes alguns meses antes das eleições
legislativas, previstas para 5 e 6 de setembro de 2008? Talvez. De qualquer
forma, é inegável que a população se sinta ofuscada por tantas riquezas
ostentadoras e exija mais justiça social.
Ao
mesmo tempo, a oposição está fraca e desprovida de projeto crível. Prisioneira
de seu passado “savimbista”, a Unita se recusou a fazer um balanço ou uma
autocrítica, como alguns de seus dirigentes desejavam. A continuidade cega da
guerra e a depuração de seus próprios militantes10 foram os principais danos
desse processo em que a Unita parece ter perdido a ocasião de se abrir a outros
setores da contestação, incluindo a balbuciante sociedade civil. A vontade de
permanecer no Gurn até as eleições só reduziu sua margem de manobra.11
As
demais forças oposicionistas permanecem desconhecidas fora dos grandes centros
urbanos. Para o historiador Arlindo Barbeitos, “a classe política angolana,
salvo raras exceções, parece profundamente ignorante das realidades do país,
para não dizer de suas culturas e de sua história. São as Igrejas tradicionais,
assim como certas associações que, por sua proximidade com a população, sentem
o pulso da situação, os sofrimentos e traumas pelos quais o povo passou. Com o
fim da guerra, o espírito crítico se desenvolveu e a Igreja Católica tomou a
liderança da contestação social”.
Surpreendentemente,
para Barbeitos o conflito não dividiu o país em dois grupos ou regiões. “A
rejeição unânime da guerra engendrou de forma perceptível um sentimento de
pertencimento a uma mesma nação”, explica. “Isso uniu as pessoas em torno da
ideia de que elas são, antes de tudo, angolanas. Um sentimento reforçado pela
difusão fulgurante do português – infelizmente em detrimento das línguas
autóctones – em todo o país, inclusive nas regiões onde apenas uma ínfima
minoria de pessoas pode se expressar na língua oficial.” A tentação de explicar
as divergências políticas por meio de etnias existe, mas é mantida apenas por
determinadas mídias. Trata-se da insistente contraposição entre um lado
“ocidentalizado” e arrogante, e um interior “autenticamente africano”,
apresentado às vezes de forma caricatural. Em 1996, a iniciativa do Parlamento
de mencionar a raça nas carteiras de identidade, como no tempo da colonização,
não contribuiu para a superação dessas divisões. A afirmação da consciência
nacional angolana, favorecida pelos movimentos culturais e a política
anticolonial, dependerá, acima de tudo, da vontade do Estado de se esforçar na
“eliminação das desigualdades e das assimetrias regionais e locais”, como
afirma André Nsingui, professor na Universidade Agostinho Neto. Mas, para isso,
será necessário mais que declarações de boas intenções ou mesmo ambiciosos
programas de reconstrução. Será preciso um verdadeiro esforço nacional, uma
profunda moralização dos costumes da classe dirigente, ou até sua renovação, e,
acima de tudo, oposições mais fortes e eficazes.
Augusta
Conchiglia é jornalista.
1 Líder da Unita, Jonas Savimbi foi morto pelo
exército angolano meses depois, em 22 de fevereiro de 2002. Esse acordo foi um
adendo aos acordos de paz de Lusaka de 1994.
2
Programa das Nações Unidas pelo Desenvolvimento (Pnud), “Relatório sobre o
desenvolvimento humano 2007”, Nova York, 2007.3A renda nominal do petróleo deve ser relativizada pelo custo extremamente elevado dos investimentos necessários para sua exploração em águas profundas e, em breve, em águas ultraprofundas. Angola participa dos lucros por meio de contratos de “divisão de produção” assinados com as companhias petrolíferas.
4 Segundo o Economist Intelligence Unit (EIU, Londres, dezembro de 2007), a capacidade de realização de projetos permanece modesta. Em 2007, apenas 21% dos 106 projetos financiados pela China tinham sido postos em prática e 41% estavam em fase de instalação. Os outros ainda iriam começar.
5 Estima-se que 70% da população ativa estaria desempregada ou subempregada.
6 Ler Nicholas Shaxson, Poisoned Wells: The Dirty Politics of African Oil, Nova York, Palgrave Macmillan, 2007.
7 Depois de anos de relações conflituosas, as negociações para um “Staff monitoring programme” foram rompidas em fevereiro de 2007. Apesar disso, o FMI continua suas consultas regulares.
8 O Gurn reúne todos os partidos angolanos representados no Parlamento. Resultado dos acordos de paz de 1994, foi constituído três anos depois e é dirigido pelo chefe de Estado José Eduardo dos Santos, do MPLA, vitorioso nas últimas eleições legislativas.
9 Banco Mundial, “Oil Broad-based Growth and Equity”, Nova York, 2007.
10 A decisão de Jonas Savimbi de continuar a guerra provocou uma cisão em seu partido. Vários ministros da Unita já participavam do Governo de Unidade e Reconciliação Nacional (Gurn), formado em 1997. Ler Fred Brigland, “Savimbi et l’exercice du pouvoir: Un témoignage”, Politique Africaine, Paris, n.57, 2007.
11 Ler “Cuisant échec des Nations unies en Angola”, Le Monde diplomatique, junho de 1999.
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