segunda-feira, 28 de maio de 2012

SEREJO - Defeito de infância

Data: 17 maio 2012 - Hora: 18:01 - Por: Vicente Serejo

A culpa, Senhor Redator, pra dizer a verdade, não foi do meu pai nem da minha mãe. A vida é que quis assim. Não era fácil, naqueles anos medonhos, deixar um emprego público de contador da Capitania dos Portos e vir tentar a vida na capital. Com mulher e, na época, quatro filhos. Só quando um amigo que morava no Rio de Janeiro, um conterrâneo macauense, conseguiu a sua transferência para aquele velho Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos, uma notícia muito esperada durante muito tempo.

 Ainda lembro: viemos na frente, meses antes, no misto de Chico de Gustavo, hoje Empresa Cabral. Tinha nove anos, mas ainda tenho nos olhos o adeus triste do meu pai. E chegamos sem lenço e sem documento, apostando na vida. Minha mãe, de olhar muito aguçado, dizia que se ficássemos lá a vida estancaria. Era preciso desafiar, ousar, ainda que a ousadia fosse apenas ter os filhos matriculados nos colégios de Natal. Eram quase todos públicos, mas eram bons. Como o Atheneu, antes do abandono.

 A fortuna e o infortúnio nasceram ai. Não foi impossível ficar no Ginásio São Luiz. Fui para o Ginásio Noturno Monsenhor Matta que funcionava no Grupo Alberto Torres, na hoje Praça das Flores. De lá para o Atheneu onde fiz o clássico fugindo da matemática, física e química do científico. Ainda tentei o primeiro ano, mas vi que se fosse bacharel em Direito seria um fracasso. Para evitar o naufrágio, e consciente de que era mais ou menos em tudo, fui ser jornalista, esse especialista em coisa nenhuma. 

 Ora, Senhor Redator, vindo do Atheneu noturno e numa terra onde as amizades explicam tudo – os fortes salvam os fracos indicando-os como amigos de juventude. Não tê-los na hora certa, pois, faz falta até hoje. É o defeito grave que explica esse não ter sido. Esse não ser nada. Esse nunca ser indicado pra coisa nenhuma. Nem por isso, culparia a minha mãe que nos reunia em torno de uma mesa humilde, na beira de uma rua simples chamada Pinto Martins, e com palavras acendia em nós a chama da esperança.

Escrevinhador vulgar a quem o destino negou a glória de escritor, hoje coleciono o brilho dos que tiveram amigos importantes na infância. Sem frustrações. Nem precisaram de competência. Pra quê? Só a pose nas colunas sociais. A caneta regurgitando no papel sempre paciente do poder público, as arrazoadas assinaturas timbradas pelos cargos. Daqui, como um mestre gajeiro, bem do alto desta gávea e diante do meu mar antigo, vejo quando seus navios chegam e partem em circunavegações de gloriosas espumas.

Ora, a quem culpar se deixei na infância, herança de mim mesmo, uns poucos craques de futebol que driblavam os adversários e faziam gol, mas perderam o jogo da vida? E aquele menino, meu vizinho, íntimo dos mistérios da ciência, como não é um senador? E aquele outro que um dia deixou a rua para ser oficial, mas nunca mais voltou Almirante da Marinha do Brasil como sonhava? Ah, agora lembro: e o seminarista que aos domingos, de batina, vinha almoçar com a família, o que fez dele a bondade de Deus?

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