A soberba, Senhor Redator, é, por excelência, o pecado dos
ricos e poderosos. Já desconfiava, mas só agora vi mais de perto. Somos todos
pecadores, disto sempre se soube. Por isso mesmo ninguém pode atirar a primeira
pedra. Nem a Bíblia ousa listá-los, mas estão todos lá para quem duvidar. E se
não resistimos diante de alguns pecados, principalmente os mais prazerosos,
paciência. Também é bíblico. E é Mateus quem admite que o espírito está sempre
preparado, mas a carne é fraca. Às vezes, fraquíssima.
Pensei na soberba
lendo outro dia sobre os pecados capitais – luxúria, ira, inveja, soberba,
preguiça, gula e avareza. Não que o texto jornalístico tenha tanta novidade,
mas é ousado na relação com umas tantas verdades que a sociedade, vaporosa,
sabe escamotear ou mascarar com a religião e a falsa humildade. Dos sete
pecados, descobri no texto, a soberba é o mais farto na semeadura da dúvida
pervertida, jogando entre as virtudes e as trevas, numa ambigüidade que desafia
a própria filosofia.
Sou do tempo, Senhor Redator, que os pecados eram mais
maneiros, mas, no entanto, tão mais contraditoriamente castigados pela Santa
Madre Igreja, que foram instigantes temas literários até aqui no Brasil. Na
literatura brasileira, coube ao grande editor Ênio da Silveira as nossas duas
maiores e mais ricas antologias em prosa dos pecados capitais. Nelas, sua
editora, a Civilização Brasileira, reuniu o que havia de melhor, tirando os
pecados do fundo do inferno para servi-los à mesa ou à cama dos curiosos.
A primeira antologia
caiu nos olhos dos leitores brasileiros em 1964, ali, em plena danação da
ditadura, com seus maus presságios. Reunia Guimarães Rosa (Soberba), Otto Lara
Resende (Avareza), Carlos Heitor Cony (Luxúria), Mário Donato (Ira), Guilherme
Figueiredo (Gula), José Condé (Inveja) e Lygia Fagundes Telles (Preguiça). Na
apresentação, o texto primoroso de Ênio da Silveira, quase um brevíssimo e bem
humorado tratado do pecado desde aquela sensualíssima mordida no fruto
proibido.
Tenho impressão,
Senhor Redator, que a partir dali, o pecado perdeu sua sisudez que vinha dos
jesuítas com sua usina mental de medos a serviço do colonizador. E passou a
andar, luxuriante e sedutor, na calçada de Copacabana e, de lá, para as
calçadas do Brasil. Numa intimidade que acabou afugentando o castigo da nudez.
E a carne, principalmente a feminina, sempre tão proibida, pôde, então, livre
de toda a maldade, exibir a sua beleza que só mãos muito divinas poderiam ter
criado para o gozo do mundo.
O pecado é tão
literário, Senhor Redator, que é uma das mais belas parcerias da literatura com
as coisas de Deus. É tanto que treze anos depois, em 1977, a editora Bertrand
reedita aqueles sete pecados capitais preservando o ‘Elogio do Pecado’, de Ênio
da Silveira, e substituindo um autor: a Soberba saiu de Guimarães Rosa, por
questões autorais, e passou para as mãos e o talento de Fausto Wolff, um
pecador em grande estilo, já morto, considerado por todas as suas ex-mulheres
um grande sedutor.
Nem por isso, de Rosa a Wolff, a soberba ficou menos
perigosa, embora nos olhos do grande autor de ‘Grande Sertão: Veredas’ pareça
ter outros caminhos ‘neste mundo bom que Deus governa’. Seu texto, um conto
longo, pra mais de trinta páginas, é a história ‘Os chapéus transeuntes’ que
vai do que ele mesmo chama do ‘inolvidável burlesco’, a tudo em família com
personagens íntimos, sem fazer da soberba uma revelação por inteiro como se ao
leitor coubesse descobri-la a cada novo parágrafo.
Já nas mãos e nos
olhos de Fausto Wolff a soberba corre por entre os diálogos de ‘O Urso e os
Titãs’. Uma história curta em torno de um personagem peripatético, Ladislau,
feito de carne e osso, um pobre de dinheiro, mas rico na sua cultura inútil que
desfraldava nos bares do Rio romântico. Soprando vida em figuras da história
antiga, das nove sinfonias de Beethoven aos mitos gregos como Afrodite,
Poseidon e Cronus. E a soberba, o doce pecado dos ricos? O espaço acabou. O resto
fica pra amanhã.
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