quinta-feira, 24 de maio de 2012

Serejo: Soberba, o pecado e a virtude (início)

Natal, 10 maio 2012 - Hora: 18:02 - Por: Vicente Serejo

A soberba, Senhor Redator, é, por excelência, o pecado dos ricos e poderosos. Já desconfiava, mas só agora vi mais de perto. Somos todos pecadores, disto sempre se soube. Por isso mesmo ninguém pode atirar a primeira pedra. Nem a Bíblia ousa listá-los, mas estão todos lá para quem duvidar. E se não resistimos diante de alguns pecados, principalmente os mais prazerosos, paciência. Também é bíblico. E é Mateus quem admite que o espírito está sempre preparado, mas a carne é fraca. Às vezes, fraquíssima.
Pensei na soberba lendo outro dia sobre os pecados capitais – luxúria, ira, inveja, soberba, preguiça, gula e avareza. Não que o texto jornalístico tenha tanta novidade, mas é ousado na relação com umas tantas verdades que a sociedade, vaporosa, sabe escamotear ou mascarar com a religião e a falsa humildade. Dos sete pecados, descobri no texto, a soberba é o mais farto na semeadura da dúvida pervertida, jogando entre as virtudes e as trevas, numa ambigüidade que desafia a própria filosofia.
Sou do tempo, Senhor Redator, que os pecados eram mais maneiros, mas, no entanto, tão mais contraditoriamente castigados pela Santa Madre Igreja, que foram instigantes temas literários até aqui no Brasil. Na literatura brasileira, coube ao grande editor Ênio da Silveira as nossas duas maiores e mais ricas antologias em prosa dos pecados capitais. Nelas, sua editora, a Civilização Brasileira, reuniu o que havia de melhor, tirando os pecados do fundo do inferno para servi-los à mesa ou à cama dos curiosos.
A primeira antologia caiu nos olhos dos leitores brasileiros em 1964, ali, em plena danação da ditadura, com seus maus presságios. Reunia Guimarães Rosa (Soberba), Otto Lara Resende (Avareza), Carlos Heitor Cony (Luxúria), Mário Donato (Ira), Guilherme Figueiredo (Gula), José Condé (Inveja) e Lygia Fagundes Telles (Preguiça). Na apresentação, o texto primoroso de Ênio da Silveira, quase um brevíssimo e bem humorado tratado do pecado desde aquela sensualíssima mordida no fruto proibido.
Tenho impressão, Senhor Redator, que a partir dali, o pecado perdeu sua sisudez que vinha dos jesuítas com sua usina mental de medos a serviço do colonizador. E passou a andar, luxuriante e sedutor, na calçada de Copacabana e, de lá, para as calçadas do Brasil. Numa intimidade que acabou afugentando o castigo da nudez. E a carne, principalmente a feminina, sempre tão proibida, pôde, então, livre de toda a maldade, exibir a sua beleza que só mãos muito divinas poderiam ter criado para o gozo do mundo. 
O pecado é tão literário, Senhor Redator, que é uma das mais belas parcerias da literatura com as coisas de Deus. É tanto que treze anos depois, em 1977, a editora Bertrand reedita aqueles sete pecados capitais preservando o ‘Elogio do Pecado’, de Ênio da Silveira, e substituindo um autor: a Soberba saiu de Guimarães Rosa, por questões autorais, e passou para as mãos e o talento de Fausto Wolff, um pecador em grande estilo, já morto, considerado por todas as suas ex-mulheres um grande sedutor.
Nem por isso, de Rosa a Wolff, a soberba ficou menos perigosa, embora nos olhos do grande autor de ‘Grande Sertão: Veredas’ pareça ter outros caminhos ‘neste mundo bom que Deus governa’. Seu texto, um conto longo, pra mais de trinta páginas, é a história ‘Os chapéus transeuntes’ que vai do que ele mesmo chama do ‘inolvidável burlesco’, a tudo em família com personagens íntimos, sem fazer da soberba uma revelação por inteiro como se ao leitor coubesse descobri-la a cada novo parágrafo.
Já nas mãos e nos olhos de Fausto Wolff a soberba corre por entre os diálogos de ‘O Urso e os Titãs’. Uma história curta em torno de um personagem peripatético, Ladislau, feito de carne e osso, um pobre de dinheiro, mas rico na sua cultura inútil que desfraldava nos bares do Rio romântico. Soprando vida em figuras da história antiga, das nove sinfonias de Beethoven aos mitos gregos como Afrodite, Poseidon e Cronus. E a soberba, o doce pecado dos ricos? O espaço acabou. O resto fica pra amanhã.

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