Tudo
se transforma, até nossos amores por santos e figuras históricas, Senhor
Redator. Quando o Estado não era laico e os reis uma invenção de Deus, a Igreja
era a grande aliada nas prédicas e práticas do exercício do poder. Com o tempo,
os poderosos foram deixando as sacristias, onde viviam à sombra da mitra e sob
a proteção do báculo, e tomaram as ruas na busca da consagração popular. A
partir daí, foram outros os heróis e outros os seus túmulos, como se o povo
fosse agora o novo deus dos líderes.
A gente sabe que apesar do aviso de Friedrich
Nietzsche – Deus está morto! – não foi uma morte física que o gênio alemão
anunciou. Nem a de Jesus Cristo, mesmo depois de padecer e morrer na cruz.
Estavam mortos os fundamentos que sustentavam não a Deus, mas a sua crença.
Ora, se nós o matamos, o Deus que tanto tempo utilizamos como justificativa
para todas as coisas do mundo, não seria dele que esperaríamos o milagre da
vida, mas do livre arbítrio humano como força geradora de novos destinos.
Lembrei
da morte nietzschiana de Deus, Senhor Redator, lendo um pequeno livrinho que há
anos e anos anda por aqui, com o título ingênuo e popular de ‘Novo Almanaque de
Lembranças’, o que revela a existência de alguma edição mais antiga. É menor
que um livro de bolso, pois cabe numa mão. E na sua nobre singeleza andrajosa,
está encadernado em capa dura, papel marmorado, dorso e cantos em percalina
carmim, e douração na lombada que vai ficando esmaecida pelo tempo velho de
manuseio.
Tem
quase quatrocentas páginas, se contados os índices, foi impresso em 1929 para o
ano de 1930, e ‘adornado de gravuras, enriquecido com muitas matérias de
utilidade pública, e com o retrato e a biografia do falecido escritor Jackson
de Figueiredo’. Vale dizer, se ainda é de envaidecer, que Jackson é autor de um
ensaio sobre Auta de Souza, impresso na Typographia Annuario do Brasil, Rio,
Centro D. Vital, julho de 1924, cinco anos antes de sua morte trágica ao
afogar-se no mar diante do próprio filho.
Isso tudo é só pra dizer que pelo menos até
aquele ano, segundo consta às páginas 133 a 135, os feriados históricos desta
aldeia eram poucos e justos: 9 de março, instalação do governo republicano de
André de Albuquerque Maranhão em 1817; 7 de abril, promulgação da Constituição;
e 12 de junho, a morte do Padre Miguel Joaquim de Almeida Castro, o Frei
Miguelinho, que em 1817 teve suas idéias libertárias arcabuzadas em Recife, ele
que para viver bastaria negar a assinatura onde faltava um ‘o’.
Hoje, Senhor Redator, nenhuma dessas datas é
reverenciada pelo povo desta velha aldeia. Ora, quanto mais guardá-las. Os
nossos legisladores, descomprometidos que são com a nossa história, nos
empanturraram de outros feriados mais modernos, dia disto e dia daquilo, e
ficamos assim, sem noção do tempo de quatro séculos que vivemos. E não há
jeito. É aceitar nosso destino vil e vulgar, e entregar a Deus o futuro que nos
aguarda. Tem ai mais um século e já estamos vivendo de delações premiadas.
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