sábado, 12 de maio de 2012

Unilateralismo das grandes potências

 Por: Philip S. Golub

No futuro, o Conselho de Segurança, núcleo institucional da ONU, deveria contar com não cinco, mas uma dezena de membros permanentes com direito de veto, entre os quais Índia, Brasil, Japão, Nigéria e África do Sul.

A qual “comunidade” se referiam os dirigentes políticos da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) quando obrigaram Belgrado a aceitar todas as condições exigidas pela “comunidade internacional”? À comunidade encarnada pela ONU ou apenas àquela formada pela Aliança Atlântica? Por sucessivos deslizes, os discursos oficiais ocidentais relacionam a Otan a instituições multilaterais e confundem as decisões da aliança com uma equivocada vontade universal. Não é difícil notar a utilidade instrumental dessa assimilação, sobretudo por parte daqueles que desejam se libertar de um sistema multilateral inoportuno, principalmente porque já não esconde o significado dessa “comunidade internacional”.

O afastamento da ONU na gestão da crise no Kosovo reavivou a desconfiança em relação à vontade de dominação do Ocidente em vários países destinados a desempenhar um papel importante no cenário mundial. É o caso da Rússia, mas também da China, da Índia, do Vietnã e da África do Sul. Todos esses Estados, dos quais três são potências nucleares, manifestaram-se aberta e até violentamente contra os bombardeios da Otan e denunciaram uma ação levada adiante, sem a anuência da ONU e do Conselho de Segurança.

Assim, contrariamente ao papel pouco ativo durante a Guerra do Golfo de 1991, Pequim tomou a atitude de solicitar à Otan a “interrupção imediata de suas ingerências militares”.1 O governo indiano declarou em 25 de março de 1999 que, “mesmo que as medidas tenham sido tomadas no contexto de iniciativas regionais, tais ações multilaterais conduzidas sem a autorização formal do Conselho de Segurança da ONU abalam gravemente a autoridade do sistema das Nações Unidas em seu conjunto”.2 O Times of India figurava como porta-voz da doutrina oficial de Nova Déli quando publicou, no fim de março de 1999, que “a mensagem ao resto do mundo é perfeitamente clara. Os Estados Unidos e seu dócil instrumento, a Otan, podem, hoje, intervir militarmente em qualquer outra nação que não possua mísseis de longo alcance nem capacidades nucleares”.3

Enfim, durante visita à Hungria no início do mês de maio, o presidente sul-africano, Nelson Mandela, qualificou de “irresponsável” a decisão dos dirigentes ocidentais de contornar o Conselho de Segurança. Denunciou firmemente os “crimes do regime de Belgrado”, mas acusou a Otan de fazer “precisamente o que fez Milosevic” ao “assassinar civis e destruir a infraestrutura e as pontes da Iugoslávia”.4

Essas duas reações não podem ser interpretadas unicamente à luz dos problemas políticos internos desses países. Com razão, China e Índia temem que o precedente possa significar a internacionalização de conflitos com origem em reivindicações pela autodeterminação. A primeira é confrontada às tendências centrífugas no Tibete e Xinjiang e à questão taiwanesa. A segunda, ao problema da Caxemira. A atitude mais que reservada da Indonésia – que, no entanto, representa o maior país muçulmano do planeta – em relação à intervenção da Otan e sua insistência para que seja preservada a integridade territorial da federação iugoslava se explicam pela preocupação de manter a frágil unidade do arquipélago.5

Contudo, como sublinhou Mandela, a marginalização da ONU leva a questionar a futura gestão da sociedade internacional, o papel dessa organização na prevenção e regulação de conflitos e a situação do Conselho de Segurança. Chineses, indianos, russos e sul-africanos entraram em acordo para reivindicar uma saída para a crise pilotada pela ONU, e não pela Otan.

O fato merece ser ressaltado, pois acontece também em muitos outros países, inclusive entre os aliados tradicionais dos Estados Unidos na Ásia Oriental. Sem criticar abertamente a Otan, estes últimos acreditam que o precedente possa justificar, no futuro, ações unilaterais por parte de seus grandes vizinhos regionais. É daí que vem o “mal-estar do Japão, da Coreia do Sul e das Filipinas [...] em relação à intervenção da Otan”.6 Enfraquecidos pela crise econômica, os países da Ásia e do Sudeste Asiático temem particularmente os tropismos de poder da China (haja vista as tensões no mar do sul da China). A lista de potenciais candidatos a uma intervenção unilateral sobre o planeta não se restringe a esta última, mas a todas as potências médias em suas respectivas zonas de influência.

Fazer renascer a ONU e restaurar a primazia de uma instituição já fortemente fragilizada no que se refere à solução de conflitos internacionais seriam grandes desafios do pós-guerra. No futuro, o Conselho de Segurança, núcleo institucional da ONU, deveria contar com não cinco, mas uma dezena de membros permanentes com direito de veto (entre os quais Índia, Brasil, Japão, Nigéria e África do Sul). Essa democratização tão esperada do conselho modificaria sensivelmente o cenário institucional internacional – supondo que a ONU ainda faça algum sentido e que a ação do conselho não se limite a defender unicamente os interesses das grandes potências.

Philip S. Golub é professor associado do Instituto de Estudos Europeus da Universidade Paris 8.

1 Xinhua, Pequim, 6 maio 1999.
2 Declaração do Ministério de Relações Exteriores em Nova Déli.
3 Citado por Françoise Chipaux, em “L’Inde hostile aux frappes de l’Otan” [Índia hostil aos ataques da Otan], Le Monde, 3 abr. 1999. A Índia reagiu a um tiro de míssil balístico de médio porte em meados de abril seguinte.
4 Citado em Business Day, Johannesburgo, 4 abr. 1999.
5 Cf. a crônica de Hélène da Costa, “Les réticences asiatiques” [As reticências asiáticas], Radio France Internationale (RFI), Paris, 5 abr. 1999.
6 Hélène da Costa, “Le spectre de la Chine” [O espectro da China], RFI, 6 maio 1999.

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