Por ocasião da morte do meu digno tio Christian Haas, burgomestre de
Lauterbach, eu já era mestre de capela do grão-duque, e tinha um ordenado de
mil e quinhentos florins, o que não impedia que puxasse, como se costuma dizer,
o diabo pelo rabo.
O tio Christian, que conhecia muito bem minha situação, nunca me havia
dado nada; nem um vintém; por isso não pude deixar de derramar algumas
lágrimas, quando soube da sua póstuma generosidade; herdava dele, ai de mim, duzentas
e cinqüenta geiras de boas terras cultivadas com vinhas e pomares, uma orla ,de
floresta, e a sua grande casa de Lauterbach. /
— Caro tio, — exclamei, comovenclo-me — somente agora vejo a
profundidade da vossa sabedoria e vos louvo por ter-me apertado os cordões da
vossa bolsa! O dinheiro que me teríes dado onde estaria? Certamente em poder
dos Filisteus, ou dos Moabitas; e, pelo contrário, com a vossa prudência,
salvaste a pátria, como Fabius Cunctator. Honra vos seja feita, ótimo tio
Christian!
Pronunciadas estas sentidas palavras, e muitas outras, não menos
comoventes, que deixo de citar, parti a cavalo para Lauterbach.
Coisa estranha! o demônio da avareza, com o qual até então nunca tinha
tido contato, pouco faltou para que não se apoderasse da minha alma.
— Kasper, — disse-me ao ouvido — eis-te rico; até agora tu não tens
perseguido senão fantasmas; o amor, os prazeres e as artes são apenas fumaça. É
preciso ser louco para apaixonar-se pela glória! De sólido não há no mundo
senão as terras, as casas e os florins dados a juros em primeira hipoteca.
Renuncia às tuas ilusões, alarga a cerca dos teus fossos, aumenta os teus
campos, amontoa o teu ouro, e serás honrado e respeitado; tornar-te-ás
burgomestre como o teu tio, tirar-te-ão largamente o chapéu,, dizendo:
"Eis o senhor Kasper Haas, o homem rico, o poderoso da terra!"
Estas idéias iam e vinham na minha cabeça como personagens de uma
lanterna mágica, os quais me pareciam ter um aspecto tão grave que me seduzia.
Estava-se em pleno julho: a cotovia cantarolava no céu a sua
interminável àriazinha, as mésses ondulavam na campina e se ouvia ao longe o
grito voluptuoso da codorna e da perdiz nas searas; a folhagem cintilava ao
sol, a Lauter murmurava na sombra dos grandes salgueiros, e eu não via, não entendia
nada de tudo isso: queria ser burgomestre, queria ver arredondado o meu ventre,
inchadas as bochechas, e murmurava de mim para mim:
— Eis o senhor Kasper Haas que passa, o homem rico, o poderoso da terra!
Hep, Blez, hep!
— E a minha pequena jumenta galopava. Era curioso usar o tricórnio e o
colete escalarte de mestre Christian.
— Se me ficam bem, — pensava — para que comprar outros?
Lá pelas quatro horas da tarde, a pequena aldeia de Lauterbach me
apareceu no fundo do vale, e não sem comover-me fixei os olhos sobre a grande e
bela casa de Christian, minha futura residência e centro dos meus domínios.
Admirei a sua situação pitoresca sobre a grande rua poeirenta, o imenso telhado
de ardózia acinzentada, os alpendres que cobriam vastas eiras, as carroças, os
arados, e as colheitas, de trás o pátio, depois o jardinzinho, o pomar, as
vinhas, e os prados ao longe. Tive um sobresalto de alegria diante deste
espetáculo.
E enquanto subia pela grande rua da aldeia, eis as mulherzinhas
queixudas, os meninos de cabeça descoberta e desgrenhada, os homens com grandes
gorros de lontra, o cachimbo com uma corrente de prata na boca, e todos juntos
contemplar-me e saudar-me.
— Bom dia, senhor Kasper; bom dia, senhor Haas. E em todas as janelas se
debruçavam fisionomias curiosas.
Parecia-me estar na minha casa, parecia-me ser já burgomestre. A minha
vida de mestre de capela era um sonho, o meu entusiasmo pela música uma loucura
juvenil; oh! como os haveres mudam as idéias dos homens! Nesse meio tempo,
parei diante da casa do tabelião Becker. É ele quem tem em mãos os documentos
de propriedade e que deve fazer-me a entrega deles. Amarro o meu cavalo na
argola da porta, e o salto sobre a escadaria ; o velho, com a cabeça calva
descoberta, com o magro corpo metido num longo chambre, verde, com grandes
ramagens, vem à porta para receber-me.
— Senhor Kasper Haas, tenho a honra de saudar-vos.
— Mestre Becker, aqui sou seu servo.
— Tende a bondade de entrar, senhor Haas.
— Depois de vós, senhor Becker, depois de vós. Atravessamos o vestíbulo,
e vejo, no fundo de uma saleta limpa e bem arejada, uma mesa bem posta, e além,
perto da mesa, uma mocinha, fresca, graciosa, com o rosto banhado de um róseo
pudor.
— O senhor Kasper Haas — disse o venerando tabelião…
Curvo-me.
— Minha filha Lothe — acrescenta o bom homem.
E enquanto eu sinto despertar em mim velhas inclinações de artista,
admiro o narizinho côr-de-rosa, os lábios purpurinos, e os grandes olhos azuis
da senhorita Lothe, o seu belo corpo esbelto, e as pequenas mãos gorduchas, mestre
Becker me convida a sentar-me à mesa, dizendo que me esperava, que a minha
chegada era prevista, e que antes de começarmos a tratar de negócios
importantes era bom que me refizesse um pouco da fadiga da viagem com um copo
de vinho, etcetera, todas as coisas cujas propriedades eu aprecio e que aceito
de coração aberto.
Sentamo-nos, então, e falamos de tudo. Faço as minhas reflexões sobre o
velho, e me pergunto quanto um tabelião pode ganhar em Lauterbach.
— Senhorita, tende a bondade de aceitar uma asa de frango.
— Senhor, vós sois muito bom… com prazer. Lothe baixa os olhos, eu torno
a encher o seu copo,
e ela banha nele os róseos lábios, papai está alegre, fala de caça e
pesca.
— O senhor Haas sem dúvida se adaptará aos hábitos do lugar: temos
coelheiras bem povoadas, e rios ricos de trutas. Passam-se os serões na
cervejaria: o inspetor florestal é um belo rapaz; o juiz de paz é um grande
jogador de "whist"; o médico tem boa prosa.
Escuto e acho deliciosa essa vida tranqüila e serena. A senhorita Lothe
me agrada muito. Fala pouco, mas o seu sorriso é tão gracioso, tão ingênuo, que
ela deve ser amabilíssima.
Finalmente, chega o café e o "Kirschwasser"; a senhorita Lothe
se retira, e o velho tabelião passa, insensivelmente, da fantasia às coisas
graves, fala das propriedades do meu tio, e ouço com atenção: nenhum
testamento, nenhum legado, nenhuma hipoteca.
Tudo claro, limpo, regular. E eu disse a mim mesmo r
— Oh! afortunado Kasper!
Agora entramos no escritório para que me faça a entrega regular dos
papéis. Aquele ar fechado do escritório, aquelas grandes filas de pastas
alinhadas nas estantes, aqueles montes de papéis sobre a mesa, sobre as
cadeiras, sobre a lareira, tudo isso dissipa em mim as vãs fantasias amorosas.
Sento-me em uma grande poltrona e mestre Becker, com ar pensativo, põe os
óculos sobre o seu longo nariz aquilino.
— Eis os papéis dos vossos prados de Eichmat; tendes acolá, senhor Haas,
cem eiras de boas terras, as-melhores e as mais bem irrigadas da comuna; lá se
fazem duas ou ainda três colheitas por ano, arrecadareis delas uma renda de
quatro mil francos. Eis os papéis de vosso vinhedo de Sonnethal, trinta e cinco
eiras que vos dão, um ano pelo outro, duzentos hectolitros de vinho fraco que
se vende lá mesmo a doze e quinze francos o hectolitro: os bons anos compensam
os maus. Isto, senhor Haas, são os papéis da vossa floresta de Romels-tein:
está compreendida em sessenta e cinco hectares de mata. Estes outros vos
representam os vossos bens de Hacmath e estes as pastagens de Tiefenthal. Eis
os papéis de propriedade da feitoria de Grunerwald, e, enfim, os da vossa casa
de Lauterbach, a maior casa da aldeia, construída no século décimo sexto.
— Mas este fato não é em seu favor.
— Ao contrário; ao contrário: Hans Burckart, conde de Barlh, tinha
instalado lá sua residência de caça; é verdade que muitas gerações se sucederam
depois, mas a casa está muito bem conservada, porque lá sempre foram feitos
oportunos consertos.
Agradeço as explicações de mestre Becker, meto todos aqueles papéis
dentro de uma grande pasta que aquele digno homem me empresta, despeço-me dele,
mais que nunca convencido da minha nova importância.
Chego à minha casa, meto a chave na fechadura e batendo com o pé no
primeiro degrau, exclamo com entusiasmo:
— Isto é meu!
Entro na sala: — Isto é meu! — Abro os armários e vendo a roupa branca
amontoada até o teto: — Isto é meu — Subo ao primeiro andar, e repito sempre
como um insensato: — Isto é meu!
Sim, sou proprietário! todas as minhas inquietações pelo futuro, todas
as minhas apreensões pelo amanhã, se esvaneceram; faço uma bela figura no
mundo, não pelo meu mérito pessoal, mas pela efetiva posse de bens desejados
pela multidão. Ó poetas, ó artistas, que sois vós, em comparação com um grande
proprietário que possui tudo, e as migalhas de cuja mesa alimentam a vossa
inspiração? Não sois senão o ornamento do seu banquete, a distração dos seus
aborrecimentos, a toutinegra que canta na sebe, a estátua que adorna o jardim,
não existis senão para ele! E por que vos invejaria ele o fumo do orgulho, êle
que possui a única realidade deste mundo ?
Se naquele momento me tivesse aparecido o pobre mestre de capela que
respondia pelo nome de Kasper Haas, eu o teria encarado desdenhosamente, e me
teria perguntado: "Quem é este louco? Que tem êle de comum comigo ?"
Abri uma janela; já anoitecia; o sol no ocaso dourava os meus pomares e
os meus vinhedos até onde alcançava o olhar. Sobre o cimo da colina algumas
pedras brancas indicavam o cemitério.
Voltei-me; uma vasta sala gótica, com o teto ornado de grandes molduras,
ofereceu-se aos meus olhos; estava no pavilhão de caça do senhor Burckart.
Uma antiga espineta ocupava o intervalo das duas janelas, e eu fiz
deslizar os dedos distraídos sobre ela; as cordas afrouxadas se chocaram entre
si e ressoaram de maneira estranha, com o acento nazal das velhas desdentadas
quando cantarolam qualquer àriazinha já repetida à saciedade na sua juventude.
No fundo da alta sala, havia uma alcova com as cortinas vermelhas, e
atrás desta uma grande cama com docel.
Lembrei-me de ter corrido seis horas a cavalo; por isso, despindo-me com
um sorriso de indizível satisfação, disse de mim para mim:
— Esta é a primeira vez em que dormirei no meu próprio leito.
E tendo-me deitado com os olhos fixos sobre a imensa campina já cheia de
sombras, senti as minhas pálpebras caírem voluptuosamente. Não se movia uma
folha; ao longe os rumores da aldeia se estinguiam um a um; o sol tinha
desaparecido, e somente algum reflexo de ouro indicava a sua passagem no
infinito.
Dormi logo.
Já era noite, e a lua esplendia em toda a sua luz, quando me despertei
sem causa aparente. Os indefiníveis perfumes do verão chegavam até mim, o doce
odor do feno colhido de fresco impregnava o ar. Olhei tudo maravilhado, depois
me levantei para fechar a janela. Não compreendi porque a minha cabeça era
perfeitamente livre, enquanto o meu corpo dormia um sono profundo; aos esforços
que fiz para levantar-me não respondeu um músculo: senti meus braços estendidos
aos lados, completamente inertes, e as pernas esticadas, imóveis. Minha cabeça
se agitava em vão.
Naquele momento mesmo a respiração profunda e cadenciada do corpo me
espantou, a cabeça recaiu sobre o travesseiro esgotada de forças.
— Estou paralítico? — perguntei-me com terror. Meus olhos se fecharam.
Pensava, no espanto, naquele singular fenômeno, e meus ouvidos acompanhavam as
pulsações do coração, o murmúrio precipitado do sangue sobre o qual o espírito
não tinha nenhum poder.
— Como será — acrescentei depois de alguns segundos — que o meu próprio
corpo recusa obedecer-me? Kasper Haas, o dono de tantos vinhedos, de tantos
bosques, de tão gordos pastos, não pode nem sequer mover aquele miserável
pedaço de terra que todavia é seu. Oh! Deus que significa isto?
Enquanto estava imerso nestes pensamentos, um débil rumor prendeu minha
atenção.
A porta da alcova se tinha aberto, e um homem, vestido de panos grossos,
parecidos com feltro, semelhantes aos dos monges da capela de São Gualberto de
Mogúncia, com um grande chapéu cinzento, ornado com uma pena de falcão, com as
mãos enterradas até os cotovelos em luvas de pele de búfalo, tinha entrado no
quarto.
As grandes botas deste personagem lhe subiam acima do joelho, uma pesada
corrente de ouro cheia de condecorações lhe caía sobre o peito. A sua face
morena, ossuda, com os olhos encovados, tinha uma grande expressão de tristeza,
e horríveis cores esverdeadas.
Atravessou o quarto com passo monótono como as batidas de um relógio,
com o punho sobre o guarda-mão da espada imensa, e batendo o pavimento com o
salto exclamou:
— Isto pertence a mim: a mim, Hans Burckart, conde de Barlh.
Assemelhava-se a uma velha máquina enferrujada, que chiasse palavras
cabalísticas, e senti um arrepio por todo o corpo.
Mas no mesmo instante se abriu a porta em frente, e o conde de Barlh
desapareceu no quarto vizinho, no qual ouviu seu passo automático descer uma
escadaria interminável; lá o rumor dos pés sobre cada degrau ia-se
enfraquecendo pela distância, como se tivesse descido nas entranhas da terra.
E como estava sempre à escuta, e não ouvia mais nada, eis de repente o
vasto aposento povoar-se de gente; a espineta sôa; canta-se; celebra-se o amor,
o prazer, o bom vinho.
Olho e vejo sobre o fundo azul do céu mulheres jovens curvadas
indolentemente em volta da espineta; preciosos cavalheiros vestidos como nos
tempos idos, de pesados galões, de numerosas rendas, sentados com as pernas
cruzadas sobre as cadeiras com guarnições de ouro, curvar-se meneando a cabeça,
balançar-se com tanta graça e com maneiras tão galantes, a ponto de parecer uma
daquelas velhas gravuras de aguaforte da graciosa escola de Cláudio Lorena do
XVIII século. E
os pequenos dedos secos duma respeitável senhora com o nariz como o dum
papagaio batiam sobre as teclas da espineta; risadas agudas lançavam seus
foguetes estrí-dulos à direita e à esquerda, e acabavam num tal rumor de
matraca de fazer-nos arrepiar os cabelos.
Todo aquele mundo de loucura, de garbo e de elegância, exalava acolá
suas águas de rosa e de resedá azedas.
Fiz novos esforços verdadeiramente sobre-humanos para livrar-me daquele
pesadelo, mas sem resultado; e no mesmo instante uma das jovens senhoras
exclamava:
— Senhores, estais aqui na vossa casa, este domínio. ..
Não teve tempo de acabar; um silêncio de morte seguiu estas palavras;
olhei: a fantasmagoria tinha desaparecido.
Então me chegou ao ouvido um som de trompa.
Ouvi cavalos baterem os pés lá fora e cães que ladravam enquanto a lua
tranqüila, aquela celeste hipócrita, olhava sempre no fundo de minha alcova.
A porta abriu-se como por uma rajada de vento, e cinqüenta caçadores,
seguidos de jovens damas, velhas de dois séculos, com os compridos vestidos
rastejantes, passaram, majestosamente, duma a outra sala.
Passaram depois quatro vilões trazendo sobre os ombros robustos uma maca
de folhas de carvalho, em que jazia, todo ensangüentado, com o olho baço e as
presas espumosas, um enorme javali.
Ouvi as fanfarras soarem mais forte lá fora, depois extinguirem-se como
um suspiro nos bosques. .. depois mais nada.
E enquanto eu pensava nesta singular visão, olhando, por acaso, na
sombra silenciosa, vi com espanto a cena ocupada por uma daquelas velhas
famílias de um tempo, tranqüilas e solenes nos seus costumes.
Lá estava o patriarca com a cabeça encanecida que lia uma grande Bíblia.
A velha mãe, alta e pálida, fiava cânhamo, reta como um fuso, com o colete que
lhe subia até as orelhas, com o corpo apertado por faixas de pano preto, depois
as crianças rubicundas, com olhar pensativo, com os cotovelos apoiados na mesa
e em silêncio, o velho cão pastor atento à leitura, o velho relógio.
no seu castelo de nogueira, contando os segundos, e mais distante, na
sombra algumas caras de moçoilas; e morenos rapazes com o chapéu grande preto e
com o colete de lã, discutindo sobre a história de Jacó e Raquel, em forma de
declaração de amor.
E a honesta família parecia convencida das verdades santas; o velho com
a voz rouca, prosseguia a leitura comovendo-se.
"Esta é a vossa terra prometida, a terra de Abraão, de Isac e de
Jacó, e eu vô-la tenho destinado desde a origem dos séculos, a fim de que vós
cresçais e multipliqueis nela como as estrelas do céu… e ninguém poderá vô-la
retomar, porque vós sois o meu povo predileto, no qual depositei a minha
confiança."
A lua encoberta, por alguns instantes, reapareceu. Não ouvindo mais
nada, voltei a cabeça; os seus raios tranqüilos e frios iluminavam o vazio do
aposento. Não mais um vulto, não mais uma sombra… a luz se arrastava sobre o
pavimento, e, de longe em longe, algumas árvores desenhavam a sua folhagem
sobre a superfície iluminada.
Mas de repente as altas muralhas se atapetaram de livros; a antiga
espineta cedeu o lugar ao gabinete de algum sábio, cuja ampla cabeleira me
apareceu sobre uma poltrona de encosto de couro vermelho; e ouvi a pena de
ganso deslizar sobre o papel. O homem, engolfado na profundidade do seu
pensamento, não se movia; aquele silêncio me prostrava.
Julgai, porém, do meu espanto, quando, tendo-se voltado o erudito, me
mostrou o rosto, e nele reconheci o retrato do jurisconsulto Gregorius
registrado com o número 253 na galeria de Darmstadt.
Grande Deus, como este personagem se tinha destacado do seu quadro? Eu
me ‘perguntava isto, quando com voz cavernosa êle gritou:
"Dominium ex jure Quiritium, est jus utendi et abutendi, quatenus
naturalis ratio patitur." (O domínio segundo o Direito Romano, é o direito
de usar e de abusar, por quanto o permite a razão natural).
À medida que lhe saía dos lábios esta fórmula, o seu rosto empalidecia…
empalidecia… e na última palavra não existia mais.
Que vos direi ainda, caros amigos? Nas horas seguintes vi vinte outras
gerações sucederem-se no antigo castelo de Haas Burckart; cristãos e hebreus,
nobres autênticos e gente enriquecida, ignorantes e doutos, artistas e
criaturas prosaicas; e todos proclamavam a sua legítima propriedade, e todos se
acreditavam donos absolutos da barraca; ai de mim! um sopro de morte os punha
na porta.
Tinha acabado por habituar-me a esta estranha fantasmagoria. Todas as
vezes que uma daquelas bravas pessoas exclamava: "Isto é meu!",
soltava uma gargalhada e murmurava: "Espera, camarada, para que tanta
pressa; tu desaparecerás ao lado dos outros."
Mas, enfim, eu estava cansado, quando ao longe, bem ao longe, o galo
cantou. O canto; do galo anuncia o dia, e a sua voz penetrante desperta os
seres adormecidos.
Agitam-se as folhas; correu-me um arrepio por toclo o corpo; senti meus
membros destacarem-se da cama e, levantando-me sobre os cotovelos, o meu olhar
se estendeu sobre a campina silenciosa. Mas aquilo que eu vi não era feito na
verdade para deleitar-me.
Ao longo do atalho que leva ao campo santo, subia toda a procissão dos
fantasmas que tinha visto no transcorrer da noite. Avançava-se a passo e passo
em direção da porta carunchada do recinto, e aquela procissão silenciosa, sob
as incertas luzes do crepúsculo nascente, tinha um quê de espantoso. Enquanto
eu permanecia imóvel, mais morto que vivo, com a boca aberta, com a fronte
banhada de um suor frio, uma parte do cortejo pareceu aprofundar-se nos velhos
chorões. Não restava mais que um pequeno número de espectros, e eu começava a
respirar. Quando o meu tio Christian, que vinha por último, me pareceu que se
voltasse sob a velha porta e me fizesse sinal de ir em sua direção, uma voz
longínqua, irônica, me gritou:
— Kasper, Kasper, vem, esta terra é nossa!
Depois tudo desapareceu. Uma fímbria de púrpura no horizonte anunciava o
dia.
É inútil dizer que não aceitei o convite de mestre Christian Haas; será
preciso que um outro personagem me chame mais vezes primeiro, para que eu me
resolva a meter-me naquele caminho.
Por outro lado devo confessar que a recordação da minha passagem pelo
castelo de Burckart mudou muito minha opinião sobre a minha nova situação, e
que a visão daquela noite singular me pareceu significar que a terra e os
prados não passam, mas passam os proprietários; fato esse que faz levantar os
cabelos de quem pensa nele seriamente.
Por isso, antes de abandonar-me a uma ociosidade vagabunda, voltei para
a música e tenciono fazer representar no ano vindouro, no Grande Teatro de
Berlim, uma ópera de que me dareis notícia.
Depois de tudo, a glória que as pessoas positivas chamam quimera é a
mais sólida de todas as propriedades; ela não acaba com a vida; ao contrário, a
morte a confirma e lhe dá novo vigor.
Suponhamos, por exemplo, que Homero voltasse ao mundo: ninguém de certo
pensaria em contestar-lhe o mérito de ter escrito a Ilíada, e todos nós nos
esforçaríamos para prestar ao grande homem as honras devidas. Mas, se por acaso
o mais rico proprietário viesse a reclamar os prados, as florestas, as pastagens
que eram o seu orgulho, é de se apostar dez contra um em como êle seria
recebido como um ladrão e morto a pauladas.
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