Sentado
da sua mesa podia olhar o Relógio,que imponente dominava aquele trecho da
cidade. Tec, tec, tec, o barulho das máquinas de escrever ia se perdendo,
transportando-o, fazendo com que a realidade ficasse mais longínqua; fazendo-o
viajar para fora da seção. Não sabia explicar, mas desde pequeno, quando fitava
aquele Relógio, como naquele momento, sua alma se enchia de emoção. As vezes,
quando sua avó levava-o até a cidade, surpreendia-se em estado de tensão,
aguardando que o trem chegasse à primeira curva, de onde podia avistar uma de
suas faces. E, quando ao longe ele ia surgindo, enorme, branco, com rapidez
acertava o seu relógio de pulso, brinquedo dado pelo tio Reinaldo, que sempre o
acompanhava nos dias de ir até a cidade – dias de festa. Jamais se esqueceu
daquele dia, quando sua mãe levou-o à casa de uma amiga em Copacabana e ele
pode vê-lo, pela primeira vez à noite. Foi demais! Estava todo aceso: seus
enormes ponteiros e números destacando-se na escuridão do céu. Enormes,
marcando as horas: quinze para às oito, ainda se lembra.
Agora,
olhando para o Relógio, depois de tanto tempo, sorria ao relembrar a idéia que
dele faziam. Via, agora que não era tão grande assim, nem mesmo tão bonito.
Talvez os olhos de uma criança vejam as coisas diferentes…mais bonitas,
maiores! Ao longo dos tempos passara a ouvir muitas histórias sobre ele.
Passou, como muita gente, a associá-lo à vida da cidade, aos constantes atrasos
dos trens. Convenceu-se que eram verdades as coisas engraçadas que contavam,
colocando-o como único responsável nos atrasos dos empregados, das músicas que
faziam a esse respeito. Mas, mesmo assim, admirava-o. Tinha por ele um grande
carinho. Via-o como um amigo, que dali, mudo e impassível, acompanhava a sua
vida, pois, tinha sido o espectador sempre presente em momento importantes da
vida nacional. Podia imaginá-lo a assistir, lá do alto, aos desfiles, as
bandeiras vermelhas, a luta pelo petróleo, a queda de Vargas, o suicídio, o
governo Dutra, as repressões aos trabalhadores, aos assassinatos. Ele assistira
derramar-se à sua volta as greves, as manifestações na Central do Brasil, o
quebra-quebra do bondes. O governo do Juscelino, a mudança de capital. E agora,
olhando para ele, daquela janela de repartição pública, voltou a lembrança
daquele dia que, ainda pequeno, levado por mãos de quem não se lembra,
participou da homenagem que fizeram ao presidente americano que chegara ao Rio.
Ficou marcado que os gritos de “I like lke “não foram escutados nas imediações
da Central, reduto de operários.
Por
uma dessas obras do destino, quando chegou a época de cursar a escola
secundária, época em que alargou seus horizontes para além do bairro suburbano
em que vivia, foi num colégio do estado- o Orsina da Fonseca, exatamente ao
lado da Central, que passou a estudar. E lá, bem no alto, defronte a sua
janela, estava o seu amigo. Passava horas e horas, largado olhando para ele,
sem prestar atenção nas intermináveis palestras em francês de Dona Tora,
elegantíssima professora de francês que todo dia chegava ao colégio num
reluzente Mercedes da embaixada, prerrogativa de quem era mulher de embaixador.
Quando o professor Bayard fazia aquelas suas críticas ao governo, atacando o
Lacerda, todos na sala olhavam rindo para ele, entendendo o que queria dizer
quando o associava aos atrasos no pagamento do magistério estadual. Uma vez,
recorda-se, quando na aula de fantoches do mestre Belan, pediram-lhe que
escrevesse uma historieta para ser apresentada no auditório de colégio, foi
sobre o seu amigo que escreveu. E a Maria Adélia, a portuguesinha de coxas
grossas que morava na rua do Jogo- da- Bola? Era no Campo de Santana aonde iam
namorar, as mãos dadas, o sexo explodindo por entre as calças, matando aula, o
olho controlando as horas para pegar o bonde Uruguai-Engenho Novo, com os
amigos do Pedro II! Ufa…que aventura!
Num
dia de agosto, qual não foi sua surpresa, quando chegou ao colégio e viu que
ele estava tomado por tanques enormes, contingentes de soldados armados, caras
com graxa, em trincheiras, canhões antiaéreos. Não houve aula. Todos foram
mandados de volta para casa porque o presidente tinha renunciado e ninguém
sabia o que iria acontecer. Depois disso, sempre que chegava cedo, dava um pulo
ao centro da praça que separava o colégio da Central, para ver de perto a troca
de guarda do Panteon, onde os soldados levavam bandas e flores para o Duque de
Caxias.Momentos de excitação para uma criança!
Foi
com tristeza que um dia teve que abandonar o colégio, pois fora transferido
para outro na Tijuca, longe da Central e da cidade. Mas, sua vida ainda
continuaria ligada ao Relógio
À
seus pés, levado pelo jornalista Muniz Bandeira, assistiu ao grande comício da
Central, onde se diluiu na multidão de operários, camponeses e estudantes que,
aos milhares, fluíam ao redor de um grande palanque para ouvirem as palavras de
homens como Arraes, Brizola e outros. Já rapaz, qual sonâmbulo, andava de um
lugar para o outro, bebendo as palavras, os comentários e os gritos extasiados
com o número enorme de pessoas, pois, nunca tinha assistido a alguma coisa como
aquela. Olhou para cima. Soberbo, lá estava o seu amigo, e preso ao edifício da
Estrada de Ferro, um enorme painel do presidente Jango que, dias depois, seria
derrubado e partiria para o exílio.
Numa
tarde chuvosa, no dia 1º de abril, horrorizado em frente ao Campo de Santana,
assistiu às metralhadoras atirarem nos estudantes do Caco, deixando corpos na
calçada, abrindo caminho para que as tropas do general Mourão pudessem ocupar a
Praça da República.
Quantas
coisas esse Relógio não testemunhou. O silêncio geral. As paradas comportadas
do 7 de setembro, as pessoas indo para o trabalho, o carnaval!
Num
dia, em 1968, assistiu, junto com ele, a um inflamado discurso do Wladimir, que
em frente ao STM, levado por milhares de pessoas, exigia a libertação dos
presos políticos. E, anos mais tarde, achava graça daquilo tudo, olhando para o
seu amigo não mais das ruas, mas de uma janela de sua cela no DOPS, na Rua da
Relação, onde podia avistá-lo ao longe, nas intermináveis noites de sua
incomunicabilidade.
Quis
o destino que trabalhasse numa janela que desse frente para ele, e nas
enfadonhas tardes de burocrata se pergunta: quantas coisas aconteceram, quantas
coisas acontecerão ainda e que ele registrará?
Por
sobre a cabeça de seu amigo, na torre, a bandeira nacional tremula à meio-pau,
na última homenagem a Juscelino que se foi. É a história! É a história .
Arlindenor
Pedro é professor de história e Especialista em Projetos Educacionais.
Anistiado por sua oposição ao Regime Militar dedica-se na atualidade à produção de flores tropicais na região das
Agulhas Negras.
E-mail
para contatos e agendamento de palestras :
arlindenor@newageconsultores.com.br
Blog:
arlindenor.wordpress.com
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