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Antigamente,
casa de classe média não tinha suíte. Quem acordava à noite fazia xixi no penico.
De manhã, a empregada, arrumadeira, esvaziava-o no banheiro, lavava e o
devolvia pra debaixo da cama. Por isso, empregada doméstica era chamada – que
crueldade! – de peniqueira. O
preconceito era tanto, que elas não queriam saber de carteira profissional
assinada, como se na carteira fosse constar peniqueira e não doméstica, o que,
enfim, significavam a mesma coisa: lavadora de penico.
Na casa dos
meus pais nunca teve penico. E empregada tinha carteira assinada. Mais: quando
minha mãe ficava sem empregada, éramos nós, os três filhos – Caioca, Lula e eu
– que fazíamos ou ajudávamos nos serviços da casa. Numa boa. E isso nos serviu
pra vida. Não apenas como donos de casa, pais e maridos, mas como homens. E
cidadãos.
Aos
24 anos, recém-casado, fui empregado doméstico em Londres. Não por
exotismo, exercício fortuito ou graça, pra ter história pra contar, mas porque
precisava da grana. Não por uns dias, como experiência de vida, mas por mais de
três anos. E empregado doméstico, meu, depois de algum tempo entra pra lista de
móveis e utensílios da casa.
Seguinte. Estudava
Direito e já era publicitário. Diretor da filial no Recife de uma agência
nacional, a Denison. Ganhava um bom dinheiro, tinha até um carrinho zero.
Larguei tudo. E fui estudar Comunicação e Marketing na Inglaterra. Quatro anos,
de 1972 a
76. Com menos de um ano, a grana acabou. Eu e minha (ex)mulher, Sueli, tivemos,
então, que encarar os chamados subempregos (underemployment)
nos horários livres de estudo.
Eu, cleaner. Arrumadeiro. No Brasil (e no
dicionário Houaiss também, pode ver) só havia arrumadeira. Arrumadeiro, não.
Pois bem, limpava e arrumava uma casa de quatro pisos, incluindo porão e água-furtada.
Haja escada! E eu lá, subindo e descendo com aspirador, balde e material de
limpeza. Sueli, também por ser bonita, conseguiu emprego melhor: tea lady. Servia chá e lanches na
cantina de um ateliê de alta costura. Servicinho – comparado com o meu –
maneiro, graninha razoável e, quando tinha desfile de moda, ainda faturava
gordas gorjetas das magras freguesas do high
society londrino.
Minha patroa se chamava Mrs. Voutiras (sobrenome
do marido, claro; levei quase um ano pra descobrir seu nome: Elizabeth). Jovem,
bonita e loira, típica inglesa: peituda. O marido, Mr. Voutiras, uns 30 anos mais
que ela, baixinho e entroncado, cabelo preto, pouco e pintado. Armador grego.
Dono de 12 navios, superpetroleiros (o patrício Onassis tinha 30 e era um dos
homens mais ricos do mundo). A casa ficava no Hampstead Heath Park, sobre uma
pequena colina, Telegraph Hill (dê uma espiada no Google Imagem). O vizinho à
direita era um sheik saudita. À esquerda, sócio graúdo da Shell.
Mas, riquezas
à parte, patroa é patroa. E a minha, como qualquer outra, conferia o meu
trabalho. Pra saber se eu tinha limpado direito, passava a mão sobre os móveis
procurando poeira e esfregava os pés descalços no chão da cozinha em busca de
grude. Nada. Tudo limpinho.
O fato é que,
graças a minha mãe, que me ensinou a limpar casa e a não ter preconceito besta,
voltei ao Brasil pós-graduado em Comunicação e Marketing. E, ao longo de 40 e
poucos anos de batente, diretor e sócio de agências de sucesso, redator e
criador de campanhas premiadas.
Agora, veja só
que ironia. O patrão grego usava penico (antigo, de louça e com tampa). Quem o
lavava? Pois! O papai aqui, meu. Peniqueiro (de luva, máscara e olhos fechados,
mas fui). Sem grilo. E sem carteira assinada, como as minhas colegas de
antigamente.
Joca Souza Leão é cronista.
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