Não tomei como provocação quando dia desses um velho conhecido acusou
esta alma do que ele mesmo chamou de desaparecida. Juro que não. Ora, já fui
chamado de tudo nesse mundo de afetos e desafetos. Nada guardei. Nem os elogios,
e são poucos; nem as críticas, que são fartas. Não tenho tanto espaço assim nos
salões da alma. Uma coisa não gostaria Senhor Redator, depois de quase meio
século de jornalismo: ser visto como alma amestrada, dessas que servem para
adornar a sala de jantar.
Hoje acredito que é possível viver a solidão sem mágoa. Aprendi lendo
Ferreira Gullar. Outro dia, encontrei num artigo de José Castelo como foi seu
encontro com Adolfo Bioy Casares em 1990. E descobri que a solidão tem um lado
bom. Ele já tinha mais de oitenta anos quando recebeu Castelo. Cercado dos
cuidados de enfermeiras carrancudas. Passava as manhãs escrevendo e as tardes
quase prisioneiro do próprio quarto, mas recebia todas as visitas bem vestido,
na sala, de gravata de seda.
Vendo aquele homem sozinho, cercado de livros e enfermeiras que se
revezavam ao longo de cuidados atenciosos, sentiu que ali também morava uma
grande solidão. E então perguntou como fazia para resistir. Casares respondeu
para surpresa sua: ‘A solidão não se combate, a solidão acompanha’. A seguir,
puxou da gaveta um pequeno conto: ‘Uma porta se entreaberta’. Castelo então leu
a história de um homem que vivia num quarto, visitava o hipódromo todos os
dias, e estudava genealogia.
Para Bioy Casares – Castelo lembra ter ouvido e anotado na sua caderneta
de viagem – ‘um escritor nunca está sozinho’. É preciso a solidão para estar
acompanhado. É que as fantasias, explicou, não aparecem em estádios, avenidas,
lugares da moda. É Castelo quem observa: ‘A solidão – o conto nos leva a ver –
é condição fundamental para a presença da fantasia’. Uma coisa leva à outra e
Castelo lembra Paul Auster quando confessa que precisa ficar sozinho para
manter as relações com os outros.
Depois, ele lembra ser a solidão essencial a quem deseja ouvir: ‘Um
escritor só escuta quando não tem ninguém por perto que o aborreça. Repete-se
aqui a estratégia dos fantasmas que só aparecem em noites escuras ou em casas
abandonadas’. Para Castelo, só alguns conseguem acessar a solidão em lugares
barulhentos. E cita Nelson Rodrigues que parecia de repente se ausentar de tudo
quando começava ao escrever na redação de O Globo. No barulho das máquinas de
escrever e das conversas.
Cronista não é escritor. É só cronista. Nasce e vive no barulho das
redações. Só quando fui ficando velho senti o desejo da solidão bater à porta.
Quando já estava preparado para recebê-la. Com o tempo, a alma aprende a não
viver de circunstâncias. Ou, como escreve Castelo, a dispensar os apelos da
vida real. Seria a mesma que acompanhava Adolfo Bioy Casares? Talvez. E chega
como se fosse tão íntima que é como se não fosse. Para lembrar a lição do verso
do poeta Vinícius de Morais.
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