Isolo-me em uma mesa do bar Vianna, vizinho à minha casa, e
ali ninguém me incomoda, fico o tempo que quiser, indiferente às conversas,
gritos, falas, barulhos, tomando um chope black de espuma densa. Leio jornais,
levo livros, escrevo. As pessoas ficam assombradas ao me ver escrevendo à mão
em cadernos. Semana passada, terminado parte do julgamento do mensalão,
sentei-me e mergulhei na tristeza. Porque, à medida que os juízes desfilavam a
enorme patranha organizada pelo PT, fui pensando que Dirceu, Genoino e Delúbio
venderam um de nossos sonhos mais caros, o da mudança do Brasil, da ética, de
um Brasil melhor. É grave quando as pessoas têm seus sonhos estilhaçados e suas
esperanças e utopias vendidas, desfeitas. Um bando de Carminhas e Max sem
escrúpulos e sem pudor. E o ex-presidente em quem votei duas vezes dizendo:
nada existe, é farsa. Nessa hora lembrei-me daquele personagem do Jô Soares que
repetia o bordão, tornado célebre: "Tem pai que é cego". Diz o
provérbio: pior cego é o que não quer ver. Mais triste fiquei ao pensar que
tantos jovens que seguiram Dirceu e Genoino, numa época mais honrosa e
idealista, ficaram à beira do caminho, morreram nas prisões, desapareceram,
foram torturados, exilados.
Salto para coisas mais agradáveis. Mergulho na fantasia.
Ainda que o mensalão nos pareça uma impressionante fantasia criada por mentes
sórdidas. Salto para dentro do quarto e último volume do Livro das Mil e Uma
Noites, na tradução digna, honesta, poética e gigantesca de Mamede Mustafa
Jarouche. Há sete anos saiu o primeiro volume. Do segundo, tive a honra de
participar (sem medo do clichê), porque escrevi o texto da quarta capa. Os
outros textos foram escritos por Milton Hatoum, Ferreira Gullar e Alberto
Mussa; um privilégio tal companhia.
O Livro das Mil e Uma Noites faz parte da minha história de
vida e formação. Desde os 6 anos, quando aprendi a ler, meu pai e minhas
professoras Lourdes e Ruth me davam pequenos livros da editora Melhoramentos
que traziam as histórias de Aladim, Ali Babá, o Mercador e o Gênio, Simbad, o
Marujo e outras. Um dia, meu pai apareceu com uma edição das Mil e Uma Noites,
na tradução de Galante, se não me engano. Um deslumbramento. Ali estava reunido
tudo: califas, sultões, belas princesas, grutas tenebrosas, bruxas,
feiticeiras, duendes, gênios, lâmpadas, vizires, tapetes voadores, fadas,
anões, aventureiros, salteadores, ladrões, mágicos, gigantes, castelos, portas
falsas, quartos onde era proibido entrar, tesouros escondidos, baús repletos de
ouro e joias.
Aquele livro desencadeou um imaginário avassalador. A vida
nunca mais foi a mesma. Por trás da realidade havia um mundo oculto e encantado
onde tudo era possível. Nele eu podia me refugiar das dores e mazelas da vida
real, da pobreza, das notas baixas na escola. O cotidiano era um conjunto de
momentos pobres, prosaicos, pífios. Daqueles livros mergulhei em outros que me
conduziram aos saltos para a realidade, o palpável, ao meu entorno concreto.
Quando nos anos 70 todos tomavam drogas, LSD e outras
pílulas, eu dizia: "Já vivi tudo isso. Já li as mil e uma noites".
Eram sensações idênticas, porque tanto as histórias como as químicas nos
levavam para fora deste mundo rotineiro e insensato. Nesta mesa do Vianna penso
em Jarouche traduzindo, viajando, buscando manuscritos, compêndios, num
trabalho fanático, porque somente um fanático obsessivo faria o que ele fez,
para nos devolver a riqueza do Livro das Mil e Uma Noites, destroçado por
traduções censuradas, castradas, hipócritas, moralistas. Tive uma surpresa. Até
dom Pedro II foi um dos tradutores desta Avenida Brasil milenar e oriental em
suas idas e vindas, voltas e reviravoltas, surpresas e safadezas.
Pensar que nenhuma tradução jamais falou no "manjericão
das pontes", que toda mulher tem, e todo homem cobiça. Ou o sésamo descascado.
Ou a pensão de Abu Masrur. Jarouche nos desvendou um mundo de fascínio, desejo,
aventuras, loucuras, medo, terror, mortes, festas, mistérios, banquetes
opíparos (sempre quis usar esse termo). Há no livro apenas mil noites. Ou a
última nós é que a escrevemos, descrevemos, sem Sherazade, ou na verdade
Sahrazad? Este livro chega na hora exata para preenchermos o vácuo que virá com
as noites sem gente esplêndida como Adriana Esteves, Marcos Caruso, Murilo
Benício, Eliane Giardini, Heloisa Perissé. Chega de novelas, dediquemo-nos à
boa leitura.
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