terça-feira, 23 de outubro de 2012

Serejo: Da carne

Por: Vicente Serejo

 Sejamos justos, Senhor Redator: o saber, do mais erudito ao mais vulgar, nunca cometeu o erro de desconhecer o corpo e, nele, o prazer da carne. Das lições bíblicas às percepções da velha Renascença, em tudo e, sobre todas as coisas, caiu o olhar humano. E se no Brasil vivemos até outro dia um feio tempo de incúria, hoje nos catálogos das nossas editoras e nas vitrines das livrarias é possível encontrar a tradução do que de melhor o mundo civilizado produziu nestas décadas mais recentes sobre a cultura do corpo.

 Não há muito nestas estantes daqui, mas o suficiente. Como a ousadia brasileira da Editora Vozes ao lançar a ‘História do Corpo’, monumento editorial da França, onde nasceu e circulou nas Éditions du Seul, em 2005. É certamente a maior reunião de estudos sobre o corpo. Três volumes e quase mil e oitocentas páginas, direção de Alain Corbin, Jean-Jacques Courtine e Georges Vigarello. No primeiro, da Renascença às Luzes; no segundo, da Revolução à Grande Guerra; e no terceiro As Mutações do Olhar.

 Como se não bastasse, Senhor Redator, outra grande editora religiosa do Brasil, a Loyola, lançou a tradução do Dicionário do Corpo, trabalho de quatro tradutores brasileiros que se debruçaram sobre mais de mil páginas em centenas e centenas de verbetes enciclopédicos e autorais. Uma obra consagrada pelos franceses desde a edição original da Press Universitaire de France, em 2007. O corpo, por maiores que sejam os pecados da carne, é coisa de Deus. E, assim sendo, não cabe renegar sua beleza só por pudor.

 Jacques Le Goff, outro gênio da moderna historiografia francesa e para quem o estudo do corpo foi uma grande lacuna, escreveu ‘Uma história do Corpo na Idade Média’ e Mirian Goldenberg reuniu o que de melhor há no Brasil no elenco do livro de estudos ‘Corpo, envelhecimento e Felicidade’, edição da Civilização Brasileira. Christine Greiner inaugurou o que ela mesma chamou de as ‘Pistas para estudos indisciplinares’, ‘fios que atam e desatam’, movimentos corporais, estratégias e invenções sobre o corpo.

 Tudo isso, Senhor Redator, e nem parece tanto, para dizer que a matéria de capa do ‘Equilíbrio’, o caderno da Folha de S. Paulo que trata da vida saudável, com o título de ‘Costura Íntima’, anuncia um novo modismo: as cirurgias vaginais. O desejo das mulheres é ter vaginas mais elegantes, com relevos proporcionais e sedutores na redução do excesso de carnes. Está tudo dito e mostrado, num destino sem volta. Como se no mundo moderno o padrão estético resolvesse agora ir mais além da própria natureza.

 E, como se não bastasse a revolução dos lábios, entre grandes e pequenos, vem um artista, inglês e maluco, chamado Jamie McCartney, e expõe dezenas de vaginas que moldou em gesso, durante cinco anos, para um mural erótico que chamou de Grande Mural da Vagina. Está lá, tudo, na Folha de S. Paulo. Quando acaba, diante desse mundo doido, D. Benigna, minha mãe, ainda quer proibir o filho de falar nessas coisas. Quem duvidar, até por intolerância, é só acessar também a Internet para vê-lo moldando.

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