Não
é comum, a não ser nas bibliografias bem anotadas, encontrar o pequeno livro
impresso com a conferência de Carlos Lacerda – Visão da Seca no Nordeste,
Coleção Tribuna da Imprensa, Rio. Nem vê-lo em bibliotecas particulares. Um
deles está no acervo do Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro e
nestas estantes está o exemplar que dedicou de próprio punho a José Américo de
Almeida em 29 de outubro de 1951, ano de sua publicação, com um prefácio curto
e expressivo de Aluízio Alves.
É
um pequeno livro, formato bolso, capa amarela, ilustrada por uma mão que clama
no chão seco, um bico de pena assinado por N. R. No alto, o nome do autor, em
letras finas, e a ilustração. E o título: ‘Visão da Seca no Nordeste’, em
letras grandes e vermelhas. Seguido de um subtítulo dando três ênfases: ‘Um
relato – Um testemunho – Um Programa’. Na base da capa, o timbre editorial:
‘Coleção Tribuna da Imprensa’. E na folha de rosto, a dedicatória: ‘Ao Dr. José
Américo, cordialmente, Carlos Lacerda’.
É
interessante, para fixar uma descrição gráfica mais completa, que a contracapa
também tem a cor amarela com o ícone do menino gazeteiro oferecendo a Tribuna
da Imprensa e que o texto qualifica não como empresa privada, mas ‘uma
instituição nacional com 3.400 brasileiros reunidos para tornar possível a sua
fundação’. O preço da assinatura naquele ano de 1951 e a propaganda de ‘O
Bamba’, um semanário infantil ‘que forma e não deforma as crianças’. E o preço
do exemplar do livro: ‘Cr$ 10,00′.
Grande
redator, Lacerda narra sua visita ao Nordeste em períodos curtos, divididos em
seis partes, cada uma com título específico, intencionalmente longo e
descritivo detalhando o foco. Mostra domínio completo da seca, reunindo na sua
narrativa um elenco riquíssimo de fontes. No caso do Rio Grande do Norte, ouviu
figuras como o bispo D. José Delgado, de Caicó, Otto Guerra, Cortez Pereira,
Juvenal Lamartine e Aristófanes Fernandes, e faz citações de Guimarães Duque e
Francisco de Brito Guerra.
Num
realce de ênfase com acento literário, declara ter chegado ao Nordeste como
turista da seca, para consagrar a classificação irônica dos que olham passar
cada visitante com suas promessas. Mas, não tendo como cumpri-las, fez da sua
visita uma tomada de visão e consciência: ‘Assumi, comigo mesmo, o compromisso
de prestar um depoimento. Não é, pois, este relato, um estudo’. Para em seguida
advertir ao leitor: ‘É um testemunho’. E ele mesmo informa que será dividido em
‘fatos, observações e conclusões’.
O
instante talvez mais singular, muito além dos dados sociais e econômicos, bem
no estilo forte e emocional de Carlos Lacerda, é a fotografia de uma criança
com um quisto ‘que lhe crescia na testa’ e no colo de sua mãe que também
chorava implorando viver, a cena que mais o impressionou na sua visita ao
Nordeste. Ele olha os olhos do menino e sente como se sobre ele caísse uma
sentença inapelável de condenação. E por isso descreve, fechando a conferência:
‘É, pois, como um condenado que eu cumpro a minha sentença que consiste em
denunciar, em clamar, em implorar, em suplicar, em solicitar, em imprecar, em
pleitear, em pedir de joelhos, aos brasileiros, que se lembrem dos
brasileiros’.
Tenho
uma pequena responsabilidade nesta conferência. Pedi a Carlos Lacerda para ir
ao Nordeste ver a seca que estava destroçando as suas resistências humanas e
econômicas. Ele foi, e, de volta, deu-nos esta conferência que é um completo
relato jornalístico e uma análise objetiva das conseqüências da seca, da ação
e, sobretudo, da falta de ação dos poderes públicos.
Creio
que esta ‘Visão da Seca’, agora publicada, vai ter uma grande influência na
compreensão do problema, no conhecimento do drama nordestino. Aqui no Sul, há
uma concepção muito vaga sobre o assunto: supõe-se que a seca é, apenas, a
falta de chuvas em determinado período, com a crestação de algumas lavouras e
dificuldades de alguns alimentos. Uma espécie de verão carioca associado à
C.C.P. Poucos sabem que a seca nordestina é a destruição de anos e anos de
trabalho cotidiano, é a fuga da terra pelo homem, é o destroçamento de uma
economia subdesenvolvida, é, sobretudo, a sensação do abandono que invade um
povo inteiro, desligando-o da fraternidade nacional.
Este
fenômeno se repete periodicamente, como uma advertência a quem teima em não
ouvi-la. E, todas as vezes, o quadro é o mesmo, muitas promessas, vários
estudos técnicos, alguns movimentos de caridade, e um pedaço da Nação
desmoronando, como uma ruína, aos olhos perturbados, eventualmente,
compadecidos, do resto do Brasil.
Duas
Constituintes já tentaram criar a consciência nacional do problema da seca,
dando ao Poder Executivo recursos financeiros para uma ação sistemática de
combate ao flagelo. Mas, apesar disto, não há, ainda, sequer, um programa, a
ser posto em ação na emergência da seca, e muito menos, antes da seca,
prevenindo os seus efeitos.
Nosso
intuito, pedindo a Carlos Lacerda que fosse ao Nordeste, está parcialmente
satisfeito: sua reportagem condensada nesta conferência dá escala nacional e
exata ao calvário do Nordeste.
Resta
que com este grito acorram os poderes públicos e a opinião nacional à
convocação que lhes é feita para salvar a terra que está morrendo.
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