sábado, 13 de outubro de 2012

Serejo: Do ócio como destino

Por: Vicente Serejo

Não faria nunca, Senhor Redator, só por jactância, a apologia do ócio. No meu caso, e confesso sem mágoa, é por frustração. Tentar, eu tentei. Mas sempre encontrei as portas do paraíso fechadas. Nascido sem herança trabalhei até hoje como se viver fosse um prêmio. Se tivesse nascido com o dom de falar ao espírito dos homens e ao coração das mulheres, a vida teria sido outra. Não deu. O caminho tem sido animado, mas no chão as pedras são muitas. É o destino natural dos destituídos da sedução.

Falei da preguiça e volto ao ócio pra ser justo com Robert Louis Stevenson que só conheço da Ilha do Tesouro e de O Médico e o Monstro, e só lembro naquela imagem de aristocrata escocês, com suas biografias contando do menino doente, cuidado por uma ama dedicada que ele nunca esqueceu, e de quem ouvia histórias tristes e humanas saídas de folhetins. Ainda moço, aos 21 anos, já era um leitor infatigável de Michel de Montaigne a viver as madrugadas com os seus olhos derramados nos livros.

Basta lembrar, Senhor Redator, se já não vive lembrado, que Stevenson nasceu em 1850 e vinte e sete anos depois, em 1877, já circulava num magazine sua Apologia ao Ócio. Ali, desdenhoso e numa bela ironia, principia pondo em dúvida as vantagens dos jovens que entregam sua juventude à vida árdua dos estudos, depois se enchem de medalhas e chegam cansados e falidos para a vida. Deve ter sido um espanto, há mais de um século, um rapaz bem nascido tão ousado na sua blasfêmia contra o trabalho.

Aqui, na pequena edição portuguesa que tenho de sua Apologia ao Ócio, enfiada entre livros tão sisudos, vejo que o texto circulou três vezes, de 1877 a 1888, tanto foram a estranheza e o sucesso que causou, é claro. Pois bem. São poucas páginas, mas é intenso o prazer de sua leitura que fiz questão de grifar em alguns instantes. Logo no início, como se fosse um alerta a desmistificar o lado sagrado da vida dita intelectual, avisa: ‘Os livros são úteis à sua maneira, porém um substituto bem pálido da vida’.

Diria Senhor Redator, neste meu destino de leitor raso e sem brilho, que Stevenson não escreve para chocar, mas para sacudir. É surpreendente vê-lo por em dúvida a escola formal que ele chama de a escola de Dickens e Balzac. Só para advertir, sem perder aquele humour bem à inglesa, que a grande escola está nas ruas e que dos bancos escolares saem apenas ‘obscuros mestres em ciências da vida’. E espeta na toga dos senhores do saber a dúvida demolidora: ‘Se isto não é educação, então o que será?’.

Não professo como lema a certeza de que os donos dos bons ramos do saber um dia deixam seus gabinetes ‘ridículos e melancólicos’. Nem quero acreditar que em algumas almas enriquecer é só uma obsessão furiosa. Mas também não duvido nem um pouco dos que erram e subestimam o dever de ser feliz. Como mostra Robert Louis Stevenson, às vezes só se descobre quando ‘o cachimbo está fumado e a caixinha de rapé vazia’. E num banco, hirto como um morto, tudo o que restou do pobre ser humano.

 

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