Por Vicente Serejo
Gosto muito, Senhor Redator, de lembrar uma frase de Brito Broca no
ensaio sobre Machado de Assis e a política, quando confessa que a sua ‘primeira
amizade literária foi José de Alencar’. É o meu caso, e com muito gosto. Tenho
nos olhos, e carrego como um legado da infância, os dorsos enfileirados dos
seus livros na pequena estante do meu pai. Aqueles volumes com capas impressas
em marrom e sua pequena humanidade de nomes próprios: Lucíola, Diva; ou os seus
índios – Guarani, Ubirajara, Iracema.
Talvez até fosse
mais pedante dizer que muito cedo, nem saído da meninice, já lia Machado de
Assis. Ora, pra quê? O bruxo do Cosme Velho apareceu muito tempo depois, na
biblioteca do Atheneu. Pra falar a verdade, e se não espanta o leitor, até hoje
tenho em José de Alencar uma velha companhia. É tanto que um dia, numa feira de
livros, em Fortaleza, parei na porta de uma sala e fiquei ali, encantado,
ouvindo o resto da palestra de uma professora sobre Iracema, a virgem
inesquecível dos lábios de mel.
Durante anos e
anos, quando a memória era confiável e não lambia as feridas amargas do adulto,
sabia citar todos os títulos na mesma ordem da contracapa daquelas edições
Melhoramentos. Era como se cada capa fizesse parte de um mural: Cinco Minutos,
A Viuvinha, Diva, Encarnação, O Ermitão da Glória, A Alma de Lázaro. Iracema
vinha mais ou menos no meio da relação, logo depois Lucíola e bem depois de
Til, O Tronco de Ipê e Ubirajara. Para não falar n’A Guerra dos Mascates e Pata
da Gazela.
E fiquei assim,
Senhor Redator, com esse defeito de alma. Não sei abandoná-los, fazê-los órfãos
de um velho bem-querer. O tempo engoliu a pequena coleção do meu pai. E do
naufrágio que se abateu, trágico e inevitável, só encontrei na casa do meu avô,
de janelas já apagadas, na Rua José, em Macau, ali onde São Jorge enfrentava um
dragão todos os dias na sala de visita, os dois volumes do dicionário de
Cândido de Figueiredo e os dicionários de Jayme de Séguier e Aurélio Buarque,
até hoje comigo.
Nunca consegui
refazer, completa e perfeita, a coleção dos livros de José de Alencar na edição
popular da Melhoramentos. Mas vou levando o sonho, aceso como as lamparinas da
infância. Até agora tenho só quatro volumes que uma vez encontrei num sebo
velho e empoeirado, no Largo do Arouche, em São Paulo. Não são os mesmos, mas é
um fetiche vê-los iguais, as mesmas capas que conheço tanto e há tanto tempo,
alisando a alma envelhecida, agora que todas as suas ilusões já dobraram a
esquina.
Não há neles nenhuma utilidade. Pra quê? Vê-los faz parte das coisas do
coração. E, no entanto, viveria um tempo em São Paulo, sem demora e sem pressa,
só procurando todos aqueles volumes da coleção Melhoramentos. Como se das suas
capas tão amarelecidas pelos anos saltassem todas aquelas figuras refazendo um
tempo imenso de vida. Com seus personagens, seus risos e seus prantos, num
cortejo mágico pelas ruas da infância, desenhando tatuagens no peito e num
espetáculo triste e feliz
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