terça-feira, 30 de outubro de 2012

Serejo: Triste e feliz


Por Vicente Serejo
Gosto muito, Senhor Redator, de lembrar uma frase de Brito Broca no ensaio sobre Machado de Assis e a política, quando confessa que a sua ‘primeira amizade literária foi José de Alencar’. É o meu caso, e com muito gosto. Tenho nos olhos, e carrego como um legado da infância, os dorsos enfileirados dos seus livros na pequena estante do meu pai. Aqueles volumes com capas impressas em marrom e sua pequena humanidade de nomes próprios: Lucíola, Diva; ou os seus índios – Guarani, Ubirajara, Iracema.

Talvez até fosse mais pedante dizer que muito cedo, nem saído da meninice, já lia Machado de Assis. Ora, pra quê? O bruxo do Cosme Velho apareceu muito tempo depois, na biblioteca do Atheneu. Pra falar a verdade, e se não espanta o leitor, até hoje tenho em José de Alencar uma velha companhia. É tanto que um dia, numa feira de livros, em Fortaleza, parei na porta de uma sala e fiquei ali, encantado, ouvindo o resto da palestra de uma professora sobre Iracema, a virgem inesquecível dos lábios de mel.

Durante anos e anos, quando a memória era confiável e não lambia as feridas amargas do adulto, sabia citar todos os títulos na mesma ordem da contracapa daquelas edições Melhoramentos. Era como se cada capa fizesse parte de um mural: Cinco Minutos, A Viuvinha, Diva, Encarnação, O Ermitão da Glória, A Alma de Lázaro. Iracema vinha mais ou menos no meio da relação, logo depois Lucíola e bem depois de Til, O Tronco de Ipê e Ubirajara. Para não falar n’A Guerra dos Mascates e Pata da Gazela.

E fiquei assim, Senhor Redator, com esse defeito de alma. Não sei abandoná-los, fazê-los órfãos de um velho bem-querer. O tempo engoliu a pequena coleção do meu pai. E do naufrágio que se abateu, trágico e inevitável, só encontrei na casa do meu avô, de janelas já apagadas, na Rua José, em Macau, ali onde São Jorge enfrentava um dragão todos os dias na sala de visita, os dois volumes do dicionário de Cândido de Figueiredo e os dicionários de Jayme de Séguier e Aurélio Buarque, até hoje comigo.

Nunca consegui refazer, completa e perfeita, a coleção dos livros de José de Alencar na edição popular da Melhoramentos. Mas vou levando o sonho, aceso como as lamparinas da infância. Até agora tenho só quatro volumes que uma vez encontrei num sebo velho e empoeirado, no Largo do Arouche, em São Paulo. Não são os mesmos, mas é um fetiche vê-los iguais, as mesmas capas que conheço tanto e há tanto tempo, alisando a alma envelhecida, agora que todas as suas ilusões já dobraram a esquina.

Não há neles nenhuma utilidade. Pra quê? Vê-los faz parte das coisas do coração. E, no entanto, viveria um tempo em São Paulo, sem demora e sem pressa, só procurando todos aqueles volumes da coleção Melhoramentos. Como se das suas capas tão amarelecidas pelos anos saltassem todas aquelas figuras refazendo um tempo imenso de vida. Com seus personagens, seus risos e seus prantos, num cortejo mágico pelas ruas da infância, desenhando tatuagens no peito e num espetáculo triste e feliz

 

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