sábado, 10 de dezembro de 2011

Resenha do livro: "Leituras sobre música popular. Reflexões sobre sonoridades e cultura", de Emerson Giumbelli, Julio Diniz e Santuza Naves.

Por Elizabeth Travassos (*)
Vinte e quatro artigos agrupados seis a seis em quatro blocos temáticos integram a coletânea Leituras sobre música popular. Os organizadores Santuza Naves, Emerson Giumbelli e Júlio Diniz fazem breves apresentações dos três primeiros blocos, intitulados, respectivamente, “Música e fronteiras do nacional”, “Recepção e sociabilidades juvenis”, “Literatura em translação”. O quarto, “Autenticidade e mediação”, é introduzido por José Reginaldo Gonçalves.

Dos vinte e quatro artigos, treze têm origem em dissertações e teses defendidas no Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ, nove no Departamento de Letras da PUC/RJ e dois no de História Social da Cultura da mesma universidade. Juntos, compõem um painel das pesquisas recentes sobre música popular nessas pós-graduações cariocas, um mosaico de tópicos – nação, Nordeste, subjetividade, amor, gênero, dança, mudanças em padrões de gosto, entre tantos outros – suscitados por gêneros, movimentos e artistas – bossa nova, caipira, funk, gospel, metal, MPB, Tropicália, Mangue, Armorial, Chico Buarque, Caetano Veloso, Dorival Caymmi, Farofa Carioca, Jorge Ben, Legião Urbana, Luiz Gonzaga, O Rappa, Tom Jobim... O livro testemunha não só a sedução que a música popular exerce sobre os pesquisadores, no Brasil – fato antigo que já foi várias vezes assinalado –, mas sua provável estabilização como eixo temático na antropologia, nos estudos literários e na história.

A efervescência assinalada pelos organizadores (p. 9) revela um salutar esvaziamento da crença segundo a qual só poderia falar de música com propriedade quem manejasse determinado vocabulário técnico e os sistemas convencionais de representação gráfica dos sons (em pentagrama e/ou cifras). Por seu etnocentrismo (e, às vezes, grafocentrismo), essa deixou de ser considerada condição sine qua non do tratamento dos fatos musicais, abrindo caminho para a exegese dos vocabulários ‘nativos’ (muito potentes e reveladores), para etnografias dos mundos artísticos e para interpretações de textos e discursos compreendidos de modo amplo, incluindo portanto os sonoro-musicais. No âmbito das Letras, como salienta Júlio Diniz, foi necessário também ‘descer’ dos monumentos da alta cultura para tratar como objeto legítimo a canção popular, processo que coincide com a “crise de visibilidade e representatividade dos estudos literários tradicionais” (p. 213). O percurso parece semelhante ao da autodenominada “musicologia cultural” ou “nova musicologia”, que questiona a constituição da disciplina em torno da música escrita e do cânone Ocidental, enquanto crescem, paralelamente, os estudos de música popular. Todos parecem concordar, enfim, que seria empobrecedor fazer uma partilha simples, que atribuiria aos antropólogos e historiadores o estudo das formas e processos sociais, aos musicólogos o estudo das formas sonoras, aos estudiosos de literatura o das letras de música. A recusa da divisão de trabalho mais óbvia é uma conquista, porém ela torna as tarefas mais complicadas para qualquer das áreas.

Todo este preâmbulo é para dizer que a facilidade com que se lêem os vinte e quatro artigos não deve fazer pensar que os temas ligados à música popular são fáceis. Ao contrário, exigem do pesquisador frequentar bibliografias de diversas áreas de estudo para nelas buscar instrumentos de análise adequados e descobrir ângulos originais de aproximação. É o que fazem os autores de Leituras sobre música popular.

A tarefa dos resenhadores também não é das mais fáceis, pois nenhum comentário geral do livro faz jus ao conteúdo particular de cada artigo da coletânea. Na impossibilidade de avaliar um a um, faço a seguir algumas observações sobre aspectos que mais me chamaram a atenção e que aparecem ora em mais de um artigo, ora apenas em um deles. Os blocos temáticos separados pelos organizadores foram um bom guia de leitura.

Tanto o “nacional” quanto a “autenticidade” – dois pilares dos discursos sobre música no Brasil – são postos em questão em algumas das “cenas” musicais que, ao se multiplicarem, fragmentaram o cenário (que supúnhamos) unificado sob a égide da prestigiada MPB. Muitas dessas cenas são tratadas no segundo bloco temático, sobre as “sociabilidades juvenis”. A atualidade da ideologia que preconiza a representação sônica da nação é discutida nos artigos que se servem de estratégias comparativas: entre as viagens de mapeamento musical da Missão de Pesquisas Folclóricas (1938) e do antropólogo Hermano Vianna (anos 1990), entre a MPB dos anos 1960 e o Chico Buarque do recente CD Carioca, entre o Nordeste cantado por Luiz Gonzata e por Caetano Veloso. Roberto Marques, em “Eram os tropicalistas nordestinos?”, destaca as imagens da distância e do deslocamento na constituição do Nordeste como ‘outro’ da nação. Lembra o autor, aliás, a ambiguidade da análise que, ao desvendar o funcionamento da fábrica de imagens, não deixa de, eventualmente, reiterá-las. “Eis-nos nós aqui também, reféns da linguagem que nos antecede e que, através de nós, se atualiza” (p. 66).

O artigo de Anna Paula de Oliveira aborda a proclamação do samba como patrimônio imaterial da humanidade, pela UNESCO. O então Ministro da Cultura, Gilberto Gil, lançou a ideia da candidatura do samba, e a controvérsia desencadada pela proposta resolveu-se – por assim dizer – no registro do samba-de-roda do Recôncavo Baiano (como “patrimônio nacional”), condição prévia à proclamação como “obra-prima da humanidade”. Saíram vitoriosos os critérios de pureza, raiz, autenticidade, conclui a autora. Não resta dúvida que tornar formas de expressão (como música e língua) “bens” patrimoniais é um mecanismo bastante discutível de protegê-las. Porém, mais importante que essa constatação parece ser o posicionamento da autora contra os discursos da pureza e autenticidade: ela encerra seu artigo com um libelo a favor das “profanações” e “colagens”, em nome da pluralidade. Citado por Santuza Naves na sua apresentação (que leva o título “Mário de Andrade vive?”), faz as vezes de diapasão dessa parte do livro. Pergunto-me se aí não residirá um impasse do modo de pensar que opõe tradicionais e modernizadores, puros e impuros – ou, ainda, “velhos legitimistas” e “neopopulistas de mercado” (Sarlo, 1997) –, e que se perpetua a despeito da fúria dos sons do mundo: a diferença entre colagens e profanações ostentadas, que fazem parte de um programa estético e político, e outras, implícitas e inconscientes, não é levada em consideração. (Quantas colagens ocorreram e ocorrem ainda hoje no samba-de-roda do Recôncavo?) E os pesquisadores acabam por reafirmar como particular e mesmo emblemático aquilo que é, de fato, corriqueiro (Velho, 1995). Além disso, ao inverterem-se os sinais, colagens e profanações podem instituir-se como as novas formas autênticas. Não se trata de concordar ou discordar da posição dos autores, mas de discutir se e como ela enviesa as análises. O tema volta no artigo de Leinimar Alves Pires que, tendo Chico Buarque como mote, defende a legitimidade das transformações do samba e critica a posição “preservacionista” que valoriza a fidelidade às supostas origens.

O artigo de Frederico Coelho atenta para a explosão que pulverizou a música popular em muitas cenas (ou talvez tornou visível o que já se desenrolava fora do alcance dos ouvidos dos pesquisadores), mais ou menos restritas em termos de adesões, mais ou menos integradas aos circuitos comerciais, com ou sem discos gravados. Alta rotatividade das bandas, crítica jornalística breve ou inexistente, a Internet como canal de contato entre músicos e públicos caracterizam as cenas. Mas esse quadro é apreendido, curiosamente, pelos jornais e revistas, a partir da oposição entre Zona Sul e Zona Norte do Rio de Janeiro.

O artigo é uma transição para o segundo bloco, todo ele fruto de etnografias em mundos artísticos, a maioria deles ligados aos congêneres transnacionais, ainda que assumam feições bastante particulares nos lugares em que enraizam (funk, música eletrônica, gospel, hip hop, metal). Os artigos trazem à baila duas questões recorrentes nos estudos de música popular, a saber, a coagulação de estilos de vida em torno de gêneros musicais, e a transfiguração de experiências em canções, ilustrada pelo caso dos fãs do “Legião Urbana”.

O poder das canções nos conduz ao terceiro bloco, “Música e textualidades”. Paulo Costa e Silva contrasta canções de Tom Jobim com as dos anos 1940/50, observando especificamente como o sujeito romântico muda paralelamente ao modo de vida e papéis sociais femininos. Stella Caymmi examina a recepção da música de Dorival Caymmi para revelar as condições que permitiram sua incorporação entre os ancestrais da bossa nova. Alvaro Néder pergunta quem é o sujeito da MPB nos anos 1960. Esse aglomerado de gêneros em que convivem protesto político, nacionalismo, regionalismo, informações oriundas da bossa nova e da música erudita, essa “peculiar mistura”, diz o autor, permitiu aos “sujeitos transitar entre diferentes modelos identitários e ocupar múltiplas posições” (p. 274), o que ajudaria a explicar seu impacto na cultura.

No último bloco, Júlio Naves e Elizete Ignácio, a partir do rock nacional e da música caipira, mostram outras dimensões da autenticidade, um valor diversamente elaborado, em cada caso, mas bem estabelecido entre músicos e seus públicos. Luzimar Paulo Pereira quis mais do que recontar as histórias de pacto de violeiros com o diabo, e foi ao Norte e Noroeste mineiro em busca dos Faustos nativos, cuja perícia no instrumento foi obtida no contrato terrível. Encontrou, na noção de fama, uma pista para entender as histórias, sempre reproduzidas por terceiros e negadas pelos protagonistas, daqueles que se aliam ao diabo, cedendo ao impulso anti-social da vaidade. Sua alma é roubada, efetivamente, pela boca do povo, para a qual serão sempre pactários de má-fama. Quem se interessa pelo tema não pode deixar de ler o artigo. Seria interessante confrontar a análise com outros cenários etnográficos, verificando, por exemplo, se ela é adequada ao caso dos cantadores que, ao contrário dos discretos violeiros, se gabam de ter cantado em desafio com o diabo. Ainda no mesmo bloco, Frederico Barros analisa as especificidades da representação da cultura e música nacionais pelo Movimento Armorial, a partir do comentário dos Cds e, mais especificamente, das obras de Antônio Madureira. A representação, conclui o autor, é sempre uma “escolha discricionária de elementos” – ou seja, tudo aquilo que Mário de Andrade (1972, p.16) queria desesperadamente evitar – orientada pelo desejo, nesse caso, de recuar ao barroco ibérico enquistado no sertão.

Para encerrar a resenha, reservo uma observação sobre o ótimo artigo de Tatiana Bacal, “Produzindo sonoridades: a ambiguidade de uma categoria ou a destruição do nome”, que oferece matéria para muita discussão. A autora quer apreender as marcas de uma sensibilidade contemporânea, os novos modos de construir objetos sonoros e de orientar-se nos mundos sônicos, que já não podem ser confortavelmente delimitados pelas categorias ‘música’, ‘músico’, ‘compositor’, ‘artesanato musical’ etc. Talvez uma era de “autoprodução” que força as fronteiras entre música, ruído e fala, entre compositor, intérprete, técnico de som. Tal reorganização, se consumada, instalaria, na melhor das hipóteses, a utópica era da “composição” (Attali, 1977). Já não é a estratificação entre erudito e popular que falece, sob a força do mercado. Pula dos bastidores para a cena a manipulação de sons produzidos por instrumentos eletrônicos; as atividades artesanais da escrita musical e da performance em instrumentos acústicos e acústico-elétricos concorrem com outras que, há pouco, eram consideradas “técnicas”. Nessa dança das categorias, e na reconfiguração do mercado de produtos musicais, “música” perde a antiga autoevidência; tentando afinar nosso discurso, falamos em “som” e “sonoridades” (tal como no título do artigo e no subtítulo da coletânea). Enquanto não temos certeza do alcance desses rearranjos, muito menos de seu desfecho temporário, continuamos saciando nossa curiososidade de fãs, autoprodutores ou velhos diletantes em obras como Leituras sobre música popular.


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