segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Entrevista: "A invenção das raças" (*)

A nossa entrevista desta edição é com o geneticista italiano Guido Barbujani, que vai nos falar um pouco sobre o seu livro recém-publicado na Itália e no Brasil (BARBUJANI, Guido. A invenção das raças. S. Paulo: Contexto, 2007, 175p; trad. Rodolfo Illari; originalmente publicado na Itália, L’invenzione delle razze. Libri SPA, Milan, 2006).

Guido Barbujani é um dos mais importantes geneticistas contemporâneos. É professor de Genética da Universidade de Ferrara. Dá conferências e publicou: Questione di razza (2003); Dilettanti, quattro viaggi nei dintorni de Charles Darwin (2004).


No seu livro, ele sustenta que o conceito de raça (diferenças genéticas marcadas entre grupos humanos) é uma construção social e não um dado biológico; que nós as inventamos e as levamos a sério por séculos. Ele argumenta que “a palavra raça não identifica nenhuma realidade biológica reconhecível no DNA da nossa espécie” e que, hoje em dia, não é possível ver em nenhum de nós um membro de uma espécie diferente. Portanto, no seu entender, resta conhecermos até que ponto somos diferentes no interior de uma única espécie e o que significam essas diferenças. Ele não vê nenhum motivo prático, concreto, para continuar usando categorias raciais.


>> CVA - O senhor argumenta com base científica que, geneticamente, somos todos iguais, pertencentes à mesma raça humana. Podemos falar em identidade racial e diferenças étnicas?


Barbujani - Não. Etnia e raça são realmente a mesma coisa. Ambos os conceitos estão baseados em uma idéia que se provou errada, ou seja, que nós podemos representar a diversidade genética humana como um conjunto de unidades distintas, cada uma diferente das outras e homogêneas em si mesmas. Isto é verdade com relação aos orangotangos, cujas populações de Borneo e Sumatra são bem distintas e são, na realidade, raças. Como os orangotangos, nós, os humanos, somos geneticamente diferentes e às vezes muito diferentes. Porém, diferente dos orangotangos, em nós humanos, estas diferenças não vêm em pacotes raciais nítidos, sendo cada um geneticamente diferente. Diferenças humanas formam uma série contínua em espaço, e cada população humana abriga uma grande fração (85% em média) da diversidade genética global das espécies. Assim, nós podemos dizer que todas as populações humanas em grande parte compartilham as variantes genéticas transmitidas a nós por nossos antepassados africanos, e diferem-se principalmente pela freqüência destas variantes.

>> CVA - Quais são os fatores determinantes para as diferenças físicas entre as populações?

Barbujani - Genes têm uma importância determinante em nosso aspecto físico. Exemplo claro disso é o fato de que as crianças se assemelham aos seus pais. Entretanto, nós temos dietas, exercícios físicos e também muitos outros fatores que são parte de nosso ambiente, não de nosso genoma. Como resultado, uma vez mais, diferenças físicas são freqüentemente grandes entre membros da mesma população (compare Prince e Ella Fitzgerald), e são geralmente pequenas entre as médias de populações diferentes.


>> CVA - O senhor argumenta no seu livro que a idéia de raça é uma construção social e não um dado biológico. Temos visto, no entanto, como a idéia de raça é ainda vigorosa e tem justificado práticas de xenofobia e racismo. Como o senhor entende a militância de segmentos sociais marginalizados, como aquela dos movimentos sociais negros, que se afirmam no resgate da identidade negra?


Barbujani - Uma vez mais isto mostra como a idéia de subdivisão racial tem suas raízes mais na política, na economia e na psicologia do que na biologia. Defender os movimentos negros (ou gays) me parece a resposta de setores da sociedade que vêm sendo discriminados há muito tempo. Se, como acontece no EUA, o rótulo racial é acompanhado por pequenos privilégios, como o acesso mais fácil à universidade (para negros e latinos) ou a possibilidade de se abrir um cassino (para os nativos dos EUA), é compreensível que estes grupos aderirão a estes rótulos. Mas este é um fenômeno norte americano e às vezes conduz a um paradoxo. Para entender isto, eu recomendo a leitura do extraordinário romance de Philp Roth, A Marca Humana (Cia. Das Letras).


>> CVA - Nas fronteiras de identidade e nacionalidade, vemos, sobretudo nos países europeus, os critérios de solo e sangue como diferenciadores e classificadores de populações humanas geograficamente localizadas. O senhor concorda com esses critérios?

Barbujani - Eu concordo que um dos piores legados que nós europeus deixamos para o mundo é a ênfase na identidade nacional, geralmente entendida para representar uma pessoa, um idioma, um território e uma bandeira. Neste contexto, “povo” quer dizer que o território é ocupado pelos descendentes de antepassados, que têm vivido ali por muito tempo. Estudos modernos de DNA demonstram claramente que esse conceito está incorreto porque todas as populações, e europeus em particular, são altamente misturadas. Eu não posso concordar com critérios que perpetuam tal mito. Ao invés disso, eu concordo com Amin Maalouf, (que nasceu no Líbano e mora na França, é árabe mas não muçulmano) quando ele defende suas identidades múltiplas e insiste que cada de nós tem identidades múltiplas que não são e nem precisam ser correlatas. Se nós reduzimos nossa riqueza cultural a uma única identidade (" eu sou um escocês " ou " eu sou inglês ", " eu sou um católico " ou " eu sou um muçulmano ", etc.), nós perdemos muito e não ganhamos nada.


>> CVA - A nossa história nos ensina como arbitrariedades e injustiças sociais e culturais têm sido cometidas e justificadas por colonialismos com base na “diferença racial”. Podemos dizer que a construção social da idéia de raça seja uma invenção dos regimes e governos fanáticos, despóticos ou totalitários?


Barbujani - Eu diria que os governos provavelmente não são tão poderosos para criar problemas globais como racismo e xenofobia. De certo modo, o potencial para o racismo está em todos nós. Nós naturalmente suspeitamos das pessoas que não se parecem conosco; pense na distinção clássica entre os gregos e bárbaros. Porém, aumentar o conhecimento também significa, em geral, um aumento na compreensão mútua; a desconfiança em pessoas que não se parecem muito conosco desaparece quando percebemos que temos algo em comum. Então eu diria que, nestes anos, os que dizem que uma guerra de civilizações está acontecendo, que falam de barreiras profundas entre grupos humanos, sejam elas biológicas ou culturais, têm uma meta política em mente, que não vai trazer qualquer benefício para a humanidade.


>> CVA - E quanto aos cientistas? Por que um segmento deles insiste em conservar a idéia de raça, quando as pesquisas mostram que este conceito não se sustenta cientificamente, que essa noção reforça a violência e a injustiça sociais e não traz contribuição científica alguma?


Barbujani - Primeiro quero esclarecer que se nosso DNA mostrasse evidências para diferenças raciais, os cientistas deveriam dizer isto. Aqueles que, como eu, pensam que preconceito e discriminação são uma coisa ruim não mudariam de idéia por isso. Porém, nosso DNA mostra evidências para o contrário. O problema é que estas evidências estão em conflito com estereótipos que vêm há muito tempo influenciando o modo como muitos de nós vê o mundo. Segundo Jonathan Marks, hoje, convencer as pessoas que as raças humanas não são uma realidade biológica é tão difícil quanto convencer as pessoas no século 17 que a Terra gira em torno do sol e não vice-versa.


>> CVA - O senhor argumenta no seu livro que a biodiversidade humana deriva em uma pequena parte da nossa herança biológica e muito das nossas relações sociais, o que nos leva a entender a responsabilidade da antropologia para os estudos sobre as diferenças entre as populações. Efetivamente, os estudos sobre identidade e diversidade culturais são centrais para os antropólogos. O senhor considera que, na prática, a antropologia e a biologia têm andado juntas? A antropologia tem realizado bem a sua tarefa?


Barbujani - No último capítulo de meu livro eu tento dizer que o que nós percebemos como nossa identidade só depende, em pequena escala, de nossas diferenças biológicas, e está arraigado muito mais em nossa cultura e em nosso caráter individual. Em outras palavras, nós não somos escravos de nossos genes. Eu penso que alguns biólogos e antropólogos estão fazendo bem o seu trabalho, alguns um pouco menos, e alguns não estão realmente fazendo um ótimo trabalho: bem como qualquer outro grupo humano profissional.


 >> CVA - Dr. Guido, em nome da Comunidade Virtual de Antropologia, agradeço imensamente a tua participação e desejo sucesso crescente nas tuas pesquisas. Parabéns pelo importante trabalho realizado! Gláucia.

Barbujani - Muito obrigado

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