sábado, 10 de dezembro de 2011

De profundis

Por Vicente Serejo, em 18/10/2009 - 18:27

Na véspera da viagem de férias chegou uma triste notícia: a morte de Alberto José Serejo de Araújo, atropelado nos Estados Unidos quando fotografava uma modelo nas ruas de Los Angeles. Era natalense, filho de Ediberto e Ceres, meu tio, o irmão mais velho de minha mãe. Residente no Rio, firme nos seus mais de oitenta anos. Alberto era engenheiro de formação e morava em Copenhague, na Dinamarca, há mais de vinte anos. Sua morte foi registrada pelo Google como um dos maiores fotógrafos da Europa. A crônica de Lobo Antunes é uma homenagem.

O meu pai tinha quatro irmãs mais novas e um irmão que morreu pequenino, de meningite, por volta da idade em que tive essa doença. Parece que comecei com muita febre e horas depois estava em coma. Inexplicavelmente sobrevivi. Há de certeza pessoas que, pelo que vou dizer, me acharão tonto, mas ninguém me tira da cabeça que Santo Antônio me salvou. E lá me levaram, aos sete anos, a Pádua, tocar no túmulo do santo e fazer a primeira comunhão. A minha relação com Deus tem sido sempre tumultuosa, cheia de desacordos e discussões: longos períodos em que me afasto, alturas em que me aproximo, amuos, quase insultos, discussões. Creio firmemente que, nos livros que escrevo, é ele que guia a minha mão e não passo de um instrumento de Sua vontade. Quantas vezes me vem à cabeça aquele pequenino poema de Sebastião da Gama: a corda tensa que eu sou o Senhor Deus é quem faz vibrar; ai linda longa melodia imensa: por mim os dedos passa Deus e então já sou apenas som e ninguém se lembra mais da corda tensa. É que não escrevo assim tão bem, trabalho sem plano e quase me limito a assistir ao que vai ficando no papel. O meu único mérito é fuçar o dia todo, até ser apenas som. Componho-os numa espécie de febre, no fundo de um abismo em que me perco, cego e surdo, não resultam nunca de uma deliberação mental, um propósito, um plano definido. Não concordo com Jean Daniel, quando afirma que a única desculpa de Deus é não existir: há alturas em que o sinto tão fortemente em mim, alturas em que o sei tão longe. O cancro, por exemplo: o Henrique, que é um homem de Fé, diz que me salvei porque nasci com um sistema imunitário fenomenal. Palavras dele. No meu modesto entender esse sistema imunitário fenomenal tem um nome, e esse nome entendeu que eu ainda era necessário aqui. Para escrever, julgo, porque fora dos livros nada valho: os meus defeitos e as minhas imperfeições são enormes. Tão inteligente para umas coisas e tão estúpido para outras, espantava-se a minha mãe. Aborrece-me admitir que é uma excelente definição do António. Nunca fui uma criatura estruturalmente má: na verdade não passo de uma aselha, um parvo, incapaz de lidar com as coisas mais simples do quotidiano, um imbecil desamparado. Se os meus amigos não tomassem conta de mim com tanto desvelo não estava aqui a escrever isto, pedia esmolas nos semáforos. Regressando ao princípio o meu pai teve um irmão que morreu pequenino, de meningite. Contou-me certa vez uma coisa que não esqueci nunca: era criança e tinha ido com o pai buscar os exames do irmão. Meningite tuberculosa, sentença de morte. Vieram para casa com o meu avô a guiar o automóvel, e o meu pai, sentado ao lado do meu avô, via as lágrimas descerem pela cara impassível. Todos os dias, na esperança do filho se salvar, a minha avó ia a pé das portas de Benfica à capelinha da Senhora da Saúde, o que nessa época e com o estado das ruas de Lisboa, exigia um esforço enorme. Depois dos meus avós morrerem as minhas tias encontraram toda a roupa do irmão guardada num armário: não foram capazes de se desfazer dela. Já nenhuma das pessoas de que falei se encontra neste mundo: os meus avós, o meu pai, as minhas tias. Sobro eu e, em certo sentido, enquanto cá estiver eles continuam. Para quem pensam que escreve o imbecil desamparado? Para as lágrimas de um homem pela agonia do filho, para uma mulher a caminhar diariamente quilômetros na esperança de que Deus o curasse. No jazigo dos meus avós lê-se

Ao nosso Antoninho

E, de vez quando, vou lá às escondidas. Podem pensar na minha cretinice, não me rala, sinto-me bem junto deles. Os meus livros são isso: as lágrimas daquele homem, os passos daquela mulher. No caso de se aproximarem mais das páginas é o que realmente verão, em lugar de palavras impressas. E talvez vejam também o cretino a espreitar, comovido, pelas grades da porta.



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