quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Entrevista: “Antropologia do Corpo”

O nosso entrevistado desta edição é Jose Carlos Rodrigues. Na sua formação, ele fez Graduação em Ciências Sociais (1970) e em Direito pela Universidade Federal Fluminense (1972), é Mestre em Antropologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (1975), é Doutor também em Antropologia pela Université Paris VII (1981) e tem Pós-Doutorado na Indiana University (1987). José Carlos é Professor Associado na Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), foi Professor Titular de Antropologia na UFF e pesquisador do CNPq. Tem vários artigos, capítulos e sete livros publicados: Comunicação e significado (2006); O corpo na História (1999); Higiene e ilusão (1995); Ensaios em Antropologia do Poder (1992); Antropologia e Comunicação (1989); Tabu da morte (1983) e Tabu do corpo (1979). Nesta entrevista, ele vai nos falar um pouco sobre a sua produção intelectual e, de forma privilegiada, sobre uma antropologia do corpo e sua relação com outras disciplinas. Contamos aqui com a participação de Fátima Cecchetto (Fiocruz) na elaboração das perguntas.

>> CVA - A sua obra Tabu do corpo se apresenta como a primeira publicação brasileira que tratou da análise do corpo enquanto sistema simbólico. Como você chegou a uma antropologia do corpo nos seus estudos acadêmicos?


JCR - Bem... É preciso situar-nos no tempo. Eu precisava definir um tema para minha dissertação de mestrado. Queria que fosse um problema caracteristicamente antropológico, no sentido de apresentar ao mesmo tempo universalidade e especificidade culturais... Algo que girasse em torno de certos eixos de estruturação das sociedades, problematizados pela antropologia da época, sob forte influência de Lévi-Strauss: natureza e cultura, indivíduo e sociedade, conformismo e desvio, consciente e inconsciente, razão e afetividade e assim por diante.


Mas o gatilho que efetivamente desencadeou o tema e a pesquisa foi uma conversa com um amigo, em um botequim, em que ele descrevia situações nas quais tinha sentido nojo de corpos alheios e de manifestações corporais. Refletindo posteriormente sobre a conversa e incluindo nela os meus próprios sentimentos, veio-me a idéia: isto dá samba! Como costumo dizer, o laboratório do cientista social é (ou deveria ser) a própria vida social.

>> CVA - Como podemos caracterizar e distinguir os campos da Antropologia e da Sociologia do Corpo?


JCR - Os limites e distinções entre as ciências sociais constituem um problema insolucionável. Talvez uma dessas questões constitutivas, sem as quais o próprio campo deixaria de ter sentido. Pessoalmente, sempre que sou forçado a enfrentar essa questão – como agora – prefiro recorrer ao que Lévi-Strauss sugeriu no capítulo XVII de Antropologia estrutural.


Segundo seu pensamento, as ciências sociais poderiam ser sistematizadas a partir de cinco pontos de vista básicos, que chamou de etnografia, história, etnologia, sociologia e antropologia. Dessas, em torno das quais estariam situadas as demais disciplinas (economia, política, arqueologia, lingüística, etc.), as duas primeiras estariam voltadas preponderantemente para o trabalho empírico. As duas seguintes para o trabalho de teorização sobre os resultados das duas primeiras. A última estaria dedicada prioritariamente às grandes generalizações sobre as sociedades e os seres humanos. Além disso, Lévi-Strauss apontou que as duas primeiras preocupam-se principalmente com a sociedade do observado, com os pontos de vista nativos, ao passo que as duas outras se aplicam preferentemente à sociedade ocidental (da ciência, do observador). Por seu turno, a antropologia, alimentando-se de todas as outras perspectivas, estaria interessada em teorias de longuíssimo alcance.

Para suprimir polêmicas ociosas ou corporativas, poderíamos abandonar os nomes das disciplinas e ir adiante, dizendo que estes cinco pontos de vista não constituem disciplinas distintas. Configuram modos de raciocínio e habilidades que deveriam ser fundamentais, necessários e mesmo obrigatórios para os cientistas sociais, bem como para o ensino de ciências sociais, quaisquer que sejam as especialidades e as circunstâncias diversificadas de seus exercícios profissionais: não se teoriza sem dados, não se colhem dados sem teorias, não se concebe o outro sem contrastá-lo a si - e vice-versa -, não se particulariza sem pressupostos gerais, não se generaliza senão a partir de particularidades.

Pois bem, feito este intróito, retorno à pergunta para dizer que não vejo separação ou distinção de princípio entre os campos da antropologia e da sociologia do corpo. Se esta separação acontece aqui e ali, nunca pode se dar como questão de princípio. É como resultante circunstancial das escolhas dos pesquisadores individuais ou de suas filiações institucionais que pode ocorrer. O ofício de cientista social exige a conjunção das perspectivas mencionadas: qualquer que seja o registro na carteira profissional ou o departamento universitário a que se pertença, é preciso ser simultaneamente historiador, antropólogo, etnógrafo... Mais do que isto: querendo ou não, por ação ou omissão, consciente ou inconscientemente, todos praticamos estes pontos de vista. Ou, dito de outra forma, estes pontos de vista operam em nós.

>> CVA - Você deve ter encontrado muitas dificuldades na abordagem de uma antropologia do corpo... preconceito... resistência... Você pode nos contar um pouco sobre isso?


JCR - Voltemos ao tempo em que a antropologia no Brasil não desfrutava do reconhecimento e do prestígio que hoje lhe são tributados; um tempo em que antropologia e antropólogos ainda não haviam sido promovidos a instâncias de consagração cultural e de legitimação política, como tem acontecido com freqüência. Pois bem: naqueles idos em que se confundia antropologia com arqueologia, tempos nos quais os antropólogos eram vítimas do infame trocadilho com “antropófago”, os meios leigos encontravam compreensivelmente grande dificuldade em entender o que poderia pretender, estudando o corpo, um pesquisador que não fosse médico, biólogo nem enfermeiro.

Não acontecia muito diferente no ambiente dos cientistas sociais. Naquela época, em geral os cientistas sociais estavam preocupados com questões mais “sérias”, mais ostensivamente políticas ou institucionais. Entre antropólogos, contudo, a receptividade do tema normalmente foi bastante boa. Talvez isso se desse porque grande parte conhecesse bem o artigo clássico de Mauss sobre as técnicas corporais, assim como o grande reforço de Lévi-Strauss, no seu texto introdutório à obra do mestre, a propósito da relevância do tema “corpo” e da urgência de alguém se debruçar sobre o mesmo.

>> CVA - Como é a relação entre uma antropologia do corpo e a antropologia da saúde? Quais são as contribuições da primeira para a segunda?


JCR - O desconhecimento empírico sobre aspectos específicos da relação corpo-cultura ainda é muito grande. Contudo, os trabalhos existentes já nos permitem afirmar de modo bastante peremptório alguns princípios gerais norteadores, que podem ser úteis para uma reflexão sobre saúde: que o corpo humano é menos biológico do que normalmente se pensa; que ele é menos individual do que estamos acostumados a pensar; que ele é socialmente construído e variável cultural, historicamente; que existe uma espécie de concretude visceral da cultura; que uma sociedade se faz fazendo os corpos em que existe e que, portanto, a questão do corpo é indissociável da do poder...


Em relação à antropologia dita “da saúde”, primeiro é preciso cuidado com o qualificativo. Há o perigo de o termo qualificador prevalecer sobre o qualificado, como parece ter acontecido algumas vezes com domínios como antropologia política, econômica, médica, clínica, visual, com a antropologia do consumo, do corpo, da literatura, etc. Freqüentemente perde-se a perspectiva própria de antropologia e pratica-se muito mais economia, política, medicina, literatura, fotografia...

Dito isso, penso que seja possível uma colaboração entre os domínios. Por exemplo, é possível ir bem além do já sabido, de que as medicinas e os tratamentos variam culturalmente e tentar compreender também como e por que são quase sempre eficazes. Pode-se ser incisivo na direção de superar a crença tácita de que as doenças, por serem “biológicas” ou “naturais”, sejam idênticas por toda parte. É possível considerar que as doenças também são variáveis com as culturas e ir bem fundo nesta direção. É possível ir muito mais longe na teoria e na prática em assuntos como eficácia simbólica e aspectos mágicos ou rituais dos tratamentos, dos remédios e do pessoal médico. É importante aprofundar o conhecimento de como certas doenças estão articuladas com signos de identidade social. Enfim, entre muitos temas é desafiador compreender melhor o papel do suicídio na vida e na saúde dos seres humanos. Sobretudo, é possível combater preconceitos e discriminações, a partir da consciência da diversidade cultural relativa a corpo, doença, tratamento, saúde, etc. explicitando as relações de poder. Na outra direção, a antropologia dita “da saúde” pode municiar a antropologia – “do corpo” ou tout court: é interessante verificar como as práticas de saúde podem ser reveladoras de princípios e crenças morais, políticos e cosmológicos de uma sociedade; igualmente, o consumo de medicamentos na nossa sociedade, por exemplo, pode ser visto quase como uma sintomatologia sociológica.

>> CVA - E sobre a aproximação destes estudos com aqueles sobre magia? Existe? Esses dois campos estabelecem diálogo? Representam contribuição um para o outro?

JCR - Quando comecei a pesquisar sobre o corpo, lá pelos idos de 1972, não havia muitos trabalhos sistemáticos sobre o assunto. Ainda por cima, eu era muito jovem e não conhecia grandes coisas da teoria antropológica. Tentei fazer uma espécie de adaptação, meio improvisada, buscando aproximação entre a análise simbólica do corpo e a literatura antropológica sobre magia – esta, sim, já bastante madura e consistente (Mauss, Hertz, Lévi-Strauss, Leach, Mary Douglas, Evans-Pritchard, Victor Turner, entre outros). Na época, este me pareceu o melhor caminho. Vigiar e punir, que muito influenciou meus trabalhos posteriores e os desviou um pouco da literatura sobre magia, foi publicado em 1975 - se a memória não me trai.


>> CVA - Uma contribuição importante do seu trabalho é a abordagem simbólica, você poderia situá-la no campo das representações sociais?


JCR - Sem dúvida. Mas, pelo menos no caso específico dos estudos sobre corpo, é necessário ter muito cuidado com a idéia de “representação”. Uma coisa que acredito ter aprendido é que com as culturas variam não apenas as representações sobre o corpo, isto é, as imagens, os conceitos, as teorias, os pontos de vista, as idéias, as premissas, as opiniões, os discursos... Variam também muitas vezes os próprios corpos em sua materialidade: os limites de resistência, de força, os automatismos corporais, a precisão dos órgãos dos sentidos, as habilidades corporais, a dor, o prazer, as doenças... O perigo, portanto, está em que a noção de representação aplicada aos estudos sobre corpo muitas vezes convida a esquecer a concretude da cultura, a minimizar a solidariedade entre o inteligível e o sensível, a desprezar o fato de que freqüentemente o “abstrato” existe de modo visceral.


>> CVA - Além do marco que representa a tua obra, você poderia nos apresentar um pequeno panorama dos estudos sobre a antropologia do corpo no Brasil?


JCR - Desculpem-me, não tenho esta competência.


>> CVA - Você identifica alguma concentração desses estudos nalguma universidade ou região brasileira, em especial?


JCR - No momento, não. Tenho a impressão de que houve uma concentração importante de trabalhos em Porto Alegre, durante os anos 90, que resultaram em artigos e coletâneas bastante interessantes.


>> CVA - Os estudos sobre a antropologia do corpo no Brasil têm relevância lá fora?


JCR - Talvez no âmbito dos pesquisadores que costumam freqüentar as reuniões de antropologia do Mercosul.


>> CVA - O que é e como você pensa o embodiment?

JCR - Não estou seguro de que haja necessidade de importar neologismos, ou de traduções esquisitas (“corporificação”, por exemplo) para pensar a relação corpo-cultura. Em geral sugerem novidades não tão novas assim. Também não estou certo de que esta noção seja muito útil além do estrito contexto de perspectiva fenomenológica em que nasceu. Em algumas apropriações, mais radicais, parece-me que a idéia de embodiment beira o determinismo biológico; em outras, mais brandas, namora com o individualismo sociológico.


>> CVA - José Carlos, eu, Fátima e a CVA agradecemos imensamente esta entrevista, Gláucia.

JCR - Eu é que agradeço a honra.


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