quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

A gente pega no ar

 Por Joca de Souza Leão

“Que tipo de mistério é esse, que faz com que o simples desejo de contar histórias se transforme numa paixão, e que um ser humano seja capaz de morrer por essa paixão, morrer de fome, de frio ou do que for desde que seja capaz de fazer uma coisa que não pode ser vista nem tocada, e que afinal, pensando bem, não serve para nada? Algumas vezes acreditei – ou melhor, tive a ilusão de estar acreditando – que ia descobrir de repente, o mistério da criação, o momento exato em que uma história surge. Mas agora acho cada vez mais difícil que isso aconteça. (…) Ouvi e li um sem-fim de conclusões, tentando ver se descubro o momento exato em que a ideia surge. Nada. Não consigo saber quando isso acontece.”

A elucubração é de Gabriel García Márquez, um craque, especulando sobre o lampejo, o insight, a centelha que dispara a ideia de uma história. Mas, aí, claro, falando de quem escreve ficção, coisa de gente grande, graúda, e não de escribazinhos de coisas miúdas e cotidianas quinem este, aqui, que o leitor tem diante dos olhos.

Gabo se referia a onde – que danado – um José Saramago da vida ia buscar ideias tão alucinadas quanto a de um país se desprender do continente e virar uma ilha flutuante, uma jangada de pedra, a percorrer diferentes latitudes e longitudes; hoje aqui, amanhã acolá. Nem ele, Saramago, saberia dizer, creia. Sua natureza peninsular, por certo, o ajudou. Mas por que outros peninsulares não tiveram a mesma ideia? Simples: porque não eram escritores. Ou porque não eram Saramago.

A história do escritor de ficção está no ar, no éter, na quinta-essência, na cabeça (aliás, não está; só está na cabeça depois que surge, sabe-se lá como, nem García Márquez sabe “quando isso acontece”); enquanto a história do cronista está na rua, no mercado, no jornal, no velório, na livraria, em casa, na mesa do bar. Seu mérito, reconhecê-la. Pegá-la no ar.

Homero Fonseca contou numa crônica que estava num bar em Caruaru nos anos 60, quando um camarada chegou e apresentou o cara que estava com ele: “Pessoal! Este aqui é Fulano, um ladrão amigo meu.” Todas as atenções se voltaram para o ladrão, “na expectativa de narrativas eletrizantes” de roubos e furtos ou, na pior das hipóteses, de estelionatos e golpes. Mas, nada! O cara comeu e bebeu a noite toda de graça por conta de uma única e repetida frase: “O bom cabrito não berra.” O cronista Homero registrou o episódio. Os outros à mesa, necas. Pagaram a conta do ladrão sem lhe ouvir a odisseia.


Eu, mesmo, estava num bar no Pátio de Santa Cruz, depois de longa caminhada com um grupo de amigos, quando, duas mesas adiante, um camarada começou a contar a história de um criador de passarinho que trocou a mulher, “uma galega nova e viçosa”, por um canário de briga que morreu na primeira rinha. “Foi uma bicada só.” Se mais não sei, foi por que o camarada não contou. Nem eu perguntei. E não sou mentiroso nem ficcionista pra inventar.

Faz tempo, uns 30 anos, creio, eu estava na praia com meu amigo Aécio Gomes de Matos. Verão brabo. Céu azul, maré seca e mar absolutamente verde. Comendo ostra viva e tomando cerveja bunda de foca. Aécio me perguntou: “Joquinha, se Dostoiévski morasse aqui, você acha que teria escrito Crime e Castigo?” E ele mesmo respondeu: “No máximo, Capitães de Areia, né?” É certo. A vida do escritor o persegue na ficção. A história inventada se mira na geografia da crônica. Mas não se contenta. E dana-se pelos escaninhos e ocos do mundo.

Caro leitor: vou aproveitar as férias e ir até ali pegar umas histórias no ar, pra ter o que contar quando voltar. Dia 7 de janeiro. Até lá, então. E um ótimo Ano Novo pra você e os seus.

* * *

Carlos Pena deu a receita de como fazer um soneto; mas eu acho que a receita serve pra prosa também:

Tome um pouco de azul, se a tarde é clara,
E espere um instante ocasional.
Neste curto intervalo Deus prepara
E lhe oferta a palavra inicial.

Aí, adote uma atitude avara:
Se você preferir a cor local,
Não use mais que o sol da sua cara
E um pedaço de fundo de quintal.

Se não, procure o cinza e essa vagueza
Das lembranças da infância, e não se apresse,
Antes, deixe levá-lo a correnteza.

Mas ao chegar ao ponto em que se tece
Dentro da escuridão a vã certeza,
Ponha tudo de lado… e então comece.


Nenhum comentário:

Postar um comentário