terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Minha casa da infância, de Moacyr Góes,

Publicado por Vicente Serejo


Não é um texto de Moacyr Góes, o pai. O grande professor e educador que se projetou nacionalmente. É do filho que recebeu o mesmo nome do pai e é um dos diretores mais consagrados do moderno teatro brasileiro. É um texto lavado nas águas da memória, nascido das lembranças da casa da infância. Está no livro \'Achados\',
reunião de textos de nomes como Antônio Callado, Millôr Fernandes, Tom Jobim, Vinícius de Morais, Ziraldo, Yan Michalski, Fernando Gabeira, Fausto Wolff. Um livro bonito, criado e imaginado pelo premiadíssimo compositor de trilhas para teatro e cinema - Caíque Botkay, e publicado pela Nova Fronteira, em 1972.
E o texto de Moacyr, o filho, é belíssimo. Foi para um livro de memória que nunca escreveu

Lembro-me de coisas saltadas, sem ordem. Isso é uma coisa boa da memória, não precisar botar em regra.

Lembro de uma primeira infância feliz, vivida numa casa com um quintal arborizado, cercado de irmãos por todos os lados. Meu pai e minha mãe sempre por ali, cuidando, brincando e me dando bordoadas, também. Adorava o quintal, que tinha árvores que davam frutos irresistíveis.

Manga, cajá e uma pitombeira que me saciava até quase à dor de barriga. A casa tinha dois andares e moravam meus pais, nós, os cinco filhos, minha avó Idália, mãe de meu pai, nossa babá preta que chamávamos carinhosamente de Nena e algumas empregadas. Nena já tinha sido babá de meu pai, que nós herdamos como se herdam as coisas da família. Filha de pescador, Nena era tão querida que as relações de trabalho eram escamoteadas pelo afeto, pelo tempo e pela proximidade com a sala e os quartos. Ela fazia comidas maravilhosas, mas não era da cozinha. Foi entregue a minha avó quando tinha uns sete anos, acho, e passou toda a sua vida em devoção a nós todos.

Somente uma coisa me amedrontava, a chegada de meu padrinho Newton. Ele sempre vivia bêbado, aos tropeços, e me pegava para passear. Era sempre para um bar o nosso destino. Ou no cais ou no Hotel dos Reis Magos, em frente à praia do Meio.
Eu ficava sentado numa mesa tentando adivinhar que gosto tinha aquela bebida vermelha que ele tomava. Devia ser muito boa, pensava, pois não haveria outro motivo para emborcar daquele jeito. Acho que gostava de mim, me dava atenção, entre uma conversa ou outra com os garçons. Depois de muitos anos soube que gostava de ir ao cais para admirar os marinheiros. Mas eu não tinha nada a ver com isso. Quando Dadá, minha irmã menor, ia conosco a aflição era compartilhada. Bom sujeito, meu padrinho. Pintor de qualidade surpreendente, era um desajustado naquela cidade. A bebida deve tê-lo livrado de uma existência mais penosa. Gostar de marinheiros não devia ser fácil.

Quando levaram meu pai, eu não me lembro.

Lembro de ficar sentado na ponta de um banco, conversando com um soldado, enquanto minha mãe e meus irmãos ficavam com meu pai, na outra extremidade do imenso banco. O lugar era quente, a brisa sofria para cumprir sua missão de dar um refresco. Era muito grande o 16 RI, décimo sexto Regimento de Infantaria.

Muita areia, pouca grama, um campo inculto. Ao fundo, olhando de onde ficava sentado, tinha uma construção que não se parecia com nenhuma casa que conhecesse. Larga, baixa, inteira, possuía várias portas e poucas janelas, se haviam. Alguns poucos coqueiros, que envergavam sob o jugo do vento quente, tentavam dar alguma sombra.

Aquele lugar era estranho, somente a conversa com o soldado me situava, dava sentido para aquela rápida estadia em tão esquisito ambiente. Mas minha irmã mais velha, Clara, não gostava e não deixava que nosso palavreado continuasse. Lembro que ela me carregava para perto dos meus.

Do cheiro das roupas de meu pai, que minha mãe trazia quando voltava da prisão onde ele penava, me lembro. Ela colocava o cesto cheio em cima da mesa da sala, se tivesse mesa na sala, e quando todos estavam em outro lugar, eu me deliciava enterrando o nariz em suas roupas sujas, as roupas de meu pai. Aquela era uma coisa que me deixava seguro. O cesto, o cheiro, o meu pai, ou o que para mim era sua presença. Respirava fundo, deixava o ar dentro dos pulmões até não aguentar mais, até o ponto em que o cheiro imbuísse tudo.

Por muito tempo na vida, a procura da sensação daquele cheiro de um cesto de roupa suja. Depois ia brincar no quintal de areia com um gatinho de lata de doce de goiaba, feito a canivete, por meu pai, na prisão do quartel do Exército. Ele, antes, tinha me dado muitos presentes. Uma vez me trouxe uma caixa cheia de coelhos, quando voltou de alguma viagem pelo interior do estado.

Mas gostava do gato, que acho que não era nem meu, mas de minha irmã menor, Dadá. Ficava muito tempo por lá, no quintal, com a latinha em forma de gato, fazendo não sei o quê, talvez olhando formigas passarem em direção a lugar nenhum. Adorava observar formigas carregando pedacinhos de folha, em fila indiana.

Uma vez, me lembro, do desespero de minha avó, que me apertava com muita força contra seu próprio corpo, quando os soldados entraram, fardados lindamente, e subiram para o andar de cima à procura de alguma coisa que não tinha a mínima idéia do que era. Ficamos sentados num sofá, naquela sala grande. Minhas mãos doíam, apertadas pelas mãos de minha avó, que rezava sem parar e sem me dizer coisa alguma sobre o que estava acontecendo. A minha vontade era subir as escadas correndo e procurar com os soldados aquilo que eles estavam catando, mas minha avó me segurava, me torturando os dedos e a alma com as suas mãos em pânico e com sua reza desesperada. Ela me prendia muito perto dela e o cheiro de sua reza me deixava meio tonto, irritado, querendo sair dali de qualquer maneira. Enquanto meu combate se desenvolvia no silêncio de minha timidez, os soldados faziam muito barulho, jogando tudo no chão.

O trabalho que ia dar para arrumar... era o que me afligia, depois que me dei por derrotado na peleja com minha avó. Ela tinha ganhado, e o que me restava era saber que em alguma hora aquele cheiro ia passar, que o quintal ia estar me aguardando e as formigas continuariam em direção a lugar nenhum. O cheiro da reza de minha avó me afastava dela. Sempre que me colocava no colo e começava, um aperreio tomava conta de mim. Só conseguia pensar em me escafeder para fora dali. E ela me amava muito.

Os soldados, chateados por não terem encontrado o que buscavam, se é que sabiam o que procuravam, saíram sem arrumar coisa alguma. Passaram por mim e minha avó sem dizerem uma palavra, era como se não estivéssemos ali. Olhei nos olhos de cada um que passou por nós, procurando um sinal, uma revelação ou uma possibilidade de cumplicidade. Nada. Saíam em retirada com a mesma disposição e impessoalidade com que entraram. Com os olhos secos.

Iria encontrar esses olhos muitas vezes na vida. Foi o que me deixou com raiva deles, não terem olhado para mim nem para minha avó, não terem dito nada, nem um sorriso. Se isso tivesse acontecido, teria me debandado para eles e me convidado para a brincadeira. Mas eles, muito mais do que eu, sabiam que existe lado, e que o meu era outro. Podia ter aprendido ali.


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