sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

"Negro ou preto, eis a questão"

O nosso entrevistado do mês, Nei Lopes, é autor de artigos, ensaios, contos e poemas no Brasil e outros países; publicou também diversos livros: Bantos, Malês e identidade negra; O negro no Rio de Janeiro e sua tradição musical; Sambeabá e Novo Dicionário Banto do Brasil. Mais recentemente, publicou uma obra monumental, intitulada Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana (S.Paulo: Selo Negro, 2004, 720 p.), objeto desta entrevista.

Nei Lopes nasceu em 1942, no subúrbio carioca. Formado em Direito nos anos de 1960, na década seguinte abandonou a advocacia para entrar no mundo artístico como compositor profissional de música popular brasileira. Aí, tornou-se consagrado, gravado por todos os grandes intérpretes do segmento samba e por ícones da MPB, como Chico Buarque, Djavan, Ed Motta, Gilberto Gil, Milton Nascimento e Zélia Duncan, entre outros. Sempre fiel em seu viés de brasileiro afro-descendente, a partir dos anos de 1980 destacou-se na militância pelos direitos dos negros.

A Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana é uma obra de referência para alunos, pesquisadores, professores e militantes dos direitos civis da população negra, e traz uma enorme contribuição para todos aqueles que se interessam pela cultura africana e afrodescendente, e reconhecem sua importância para a sociedade brasileira. A Enciclopédia é o resultado de longos anos de pesquisa independente de vínculos acadêmicos, fruto da sua paixão e engajamento com a problemática negra, além de sua experiência de vida. Seguindo um rigoroso critério de pesquisa, o livro contém cerca de nove mil verbetes, abordando os mais diversos assuntos, que vão de biografias a vestuário, de fatos históricos e contemporâneos a acidentes geográficos, referências à flora, fauna, festas, divertimentos, profissões e atividades ligadas à matriz cultural do mundo africano.

>> CVA - Na introdução da sua obra o senhor comenta sobre um equívoco que gera desencontros e divergências: as distinções feitas ora pela etnia ora pela cor na classificação dos brasileiros. Quer dizer, os movimentos negros usam as categorias “branco” e “negro”, enquanto o IBGE usa as categorias “branco”, “preto”, “pardo” e “amarelo”. Gostaria que o senhor nos esclarecesse a origem deste equívoco. Como acontece lá fora? E qual o melhor critério a ser adotado aqui no Brasil? Como caracterizar o afrodescendente?

Nei Lopes - Acho que vale a pena um intróito para esta conversa, que é o seguinte: à época da escravidão, a classificação dos africanos e descendentes no Brasil já não era fácil. Categorizava-se por local de nascimento (africanos ou crioulos); grau de instrução (boçais ou ladinos); condição jurídica (escravos, libertos e livres); e por cor também (pretos, mulatos, cabras, etc). Com a abolição e a subseqüente promoção da imigração européia, restou a aparência externa como única distinção válida, e aí o grande e prejudicial equívoco. Eu entendo que a categorização das pessoas, no Brasil, a partir da cor da pele e da tessitura dos cabelos é prejudicial porque contribui para desafricanizar a população brasileira. E porque essa desafricanização baseia-se em estereótipos, como aquele de que todo africano é inferior, e os perpetua. Quando se esconde a ascendência africana de um grande personagem do passado, a pretexto de “limpar” sua biografia e preservá-lo da pecha de inferior, sonega-se um tipo de informação que pode ser muito útil à emocionalidade e à construção da auto-estima do afro-brasileiro de hoje. Da mesma forma como se nega as origens núbias (negras) do Egito faraônico ou não se acredita nelas; e que se prefere estudar a África a partir do advento do tráfico atlântico e não de sua rica Antigüidade e de sua pujante Idade Média. Agora, entrando efetivamente no cerne da pergunta, sei que definir com precisão quem é descendente de africano no Brasil é extremamente difícil, por várias razões. Uma delas é que, por conta da presença maciça de africanos negros em Portugal desde o século XV, descendentes de portugueses, por exemplo, são também afrodescendentes, embora remotos. O termo “afrodescendente”, entretanto, aqui só se aplica tecnicamente, como sabemos, àquelas pessoas comprovada ou supostamente descendentes daqueles africanos que chegaram ao Brasil, escravizados ou não, no contexto do tráfico atlântico ou índico de escravos. E essa comprovação é tão difícil quanto a suposição. Supõe-se pela fenotipia (pele pigmentada, nariz largo, lábios grossos, cabelo crespo), mas quem sabe se uma pessoa assim caracterizada não descende de um drávida indiano, de um árabe meridional ou até mesmo de um melanésio, aqui chegado no “bolo” do tráfico da contracosta? Restam os relatos familiares, do tipo clássico do “minha bisavó foi pega a laço”, “meu tetravô lutou na Revolta dos Malês”... Mas quantos de nós – pelo menos na minha idade, 63 anos – temos acesso à nossa genealogia, além de umas três gerações? Trata-se de um impasse. Mas é preciso resolvê-lo. Foi por isso que, na nossa Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana que tem por objetivo tornar visível a importante participação da matriz africana na formação da sociedade brasileira e na civilização universal, usamos um artifício. E assim, procuramos definir um “negro” como todo descendente de negros-africanos, em qualquer grau de mestiçagem, desde que essa origem possa ser identificada historicamente e, no caso de pessoas vivas, ela seja reconhecida ou autodeclarada pela pessoa, objeto da classificação. Não sabemos se é boa a definição; mas ela aponta um caminho, que se aproxima do critério adotado nos Estados Unidos. A partir dela, acho que, no Brasil, enquanto não acharmos uma melhor, a categorização dos nossos afro-descendentes como “afro-brasileiros”, entre os quais me incluo, é boa.

>> CVA - Pode parecer óbvia esta minha questão, mas eu gostaria que o senhor desvelasse objetivamente para os nossos internautas o interesse da nossa sociedade em representar o Brasil com maioria branca; e também que nos respondesse e explicasse se a “teoria do branqueamento” no Brasil ainda está em vigor.

Nei Lopes - Agora já dá para ser mais conciso. Os núcleos familiares que, no Brasil, se revezam no poder há quase 500 anos, sempre buscaram seus referenciais (bons e maus exemplos) lá fora, nos países de população caucásica, mediterrânea ou mesmo nórdica: primeiro na Inglaterra, depois na França, mais tarde nos Estados Unidos e, hoje, na mistura cultural pop de viés anglo-saxão que sufoca o mundo inteiro. Dentro dessas referências, o padrão de comportamento diante do negro sempre foi senhorial, do tipo europeu ou norte-americano: de inglês e francês na África ocidental; de belga no Congo; de português em Angola; de dixie no sul dos Estado Unidos. Observe-se que até mesmo o misticismo oriental em moda nos anos 70 veio através da Inglaterra. Aí, as “elites” só se orgulham de ser “morenas e bronzeadas”, com “ginga e samba no pé”, quando interessa ao Departamento de Estado (caso do sucesso de Carmem Miranda, após a 2ª Guerra) ou em hora de Copa do Mundo, o que a psicanálise talvez explique melhor. Então, acho que a resposta a essa pergunta pode estar na observação de um conhecido país, aqui, vizinho ao nosso. Lá, segundo até mesmo alguns de seus historiadores, a estratégia do branqueamento, através da eliminação programada de índios e negros, foi concluída com sucesso. Aqui, apesar das antigas iniciativas oficiais e do comportamento ainda ao mesmo tempo colonizado (em relação ao exterior) e colonizador (dentro de casa) das elites, a estratégia de branqueamento, pelo menos em termos biológicos, se frustrou. Basta comparar as últimas estatísticas do IBGE.

>> CVA - Sobre a questão da auto-estima dos afrodescendentes, consciência e confiança identitária, afora em movimentos negros, como é que elas andam no Brasil e em que diferem em relação aos negros americanos?

Nei Lopes - Alguma coisa melhorou dos anos 70 para cá, algumas conquistas ocorreram, temos senadores e um ministro no STF... Mas aí vem a indústria cultural e começa a dizer que o bom lugar do negro é a “dança de rua”, a “cultura do gueto”, a “periferia”. E tome de filmes com jovens negros de arma na mão, um atrás do outro, porque esse voyeurismo da tragédia dá dinheiro. Negro nos espaços de excelência (em museus, exposições, lançamentos de livros, óperas, balés, concertos, restaurantes, etc.) na “Alta Cultura”, enfim, o cinema e a tevê não mostram. E aí, não há auto-estima que resista. Na época imperial, e até mesmo durante o escravismo, havia mais possibilidades de ascensão econômica e até social do que agora. Os Rebouças, Teodoro Sampaio, Juliano Moreira, Soares de Meireles, os bispos Dom Silvério Gomes Pimenta e Helvécio Gomes de Oliveira etc, nenhum deles precisou ser atleta ou entertainer para se tornar célebre e respeitado. Hoje, você vai assistir a um desfile militar e vê milhares de músicos negros integrando as bandas das corporações. Mas não vê esses músicos nos espaços de excelência da música, como se viu até os anos 60. Isso é só um exemplo, mas, é um tipo de exclusão e precisamos refletir sobre ele.

>> CVA - É interessante a crítica que o senhor faz em relação aos estudiosos das culturas africanas e afrodescendentes que tratam da contribuição da cultura africana para o povo brasileiro. O senhor diz que a maior parte destes pesquisadores é branca, oriunda de famílias com situação social e econômica privilegiadas, que toma as culturas africana e afrodescendente por um interesse etnográfico, uma categoria social, um número estatístico, escrevem grossas dissertações e teses, as quais não rendem nada para a consciência popular. Trata-se, sem dúvida, de uma complexa problemática. O senhor coloca como contraponto para este pesquisador, o intelectual negro militante. Aparentemente são práticas ou funções diferentes, quando não deveria sê-lo... O senhor poderia nos expor melhor o seu ponto de vista e apontar alguma saída desejável?

Nei Lopes - Assim como hoje quase não se vêem mais negros nos palcos prestigiosos da música instrumental brasileira ( música formatada por afro-descendentes como Henrique de Mesquita, Callado, Viriato, Anacleto de Medeiros, Pixinguinha ...); nem como mestres de capoeira; como sacerdotes das religiões de matriz africana – por conta de uma exclusão de fundo puramente econômico – os “especialistas” em cultura afro-originada, com espaço nos meios de comunicação, também raramente são negros. Então, eu acho apenas que os afro-brasileiros devem ser os agentes e atores principais do seu discurso e da cultura que herdaram de seus antepassados. Só isso.

>> CVA - O caderno “Prosa & Verso” do jornal O Globo, de 18/06/2005, trouxe uma entrevista com o antropólogo inglês Peter Fry, que trata da divulgação e exposição de algumas de suas idéias que estão na sua última obra “A persistência da raça – Ensaios antropológicos sobre o Brasil e a África austral” recém publicada pela Civ. Brasileira. Entre outras idéias, este antropólogo se coloca contra a polêmica política de ação afirmativa do governo em relação às cotas de afrodescendentes nas universidades públicas. Ele argumenta que, apesar destas políticas públicas serem teoricamente implementadas para reduzir as desigualdades sociais, elas só fazem reafirmar a crença em raças, na medida em que se exige uma identidade racial dos candidatos. O senhor concorda com este argumento? O senhor é contra ou a favor das cotas?

Nei Lopes - Eu penso que os bons colégios e universidades, mesmo as públicas, são também espaços privilegiados onde se perpetuam as relações de cumplicidade que mantém o “tecido social brasileiro” cada vez mais impermeável e inflexível. Aí, forma-se o círculo: o filho do banqueiro de ontem, hoje ministro da área econômica, foi colega de escola do filho do industrial que hoje é presidente da federação do seu setor, o qual foi colega do cineasta que estudou com o alto funcionário da Cultura, que é da turma do produtor cinematográfico, que é primo do executivo da gravadora, que é filho daquele banqueiro lá de cima. E por aí vai. Como diz o samba do Billy Blanco “quem está fora não entra, quem está dentro não sai”. Então eu, filho de operário, que não sou antropólogo nem sociológo e muito menos inglês; que sou apenas um afro-brasileiro que emergiu de uma condição social adversa e conseguiu, isoladamente, romper a barreira da baixa escolaridade; eu, então, sou a favor de qualquer política de ação afirmativa que repare a exclusão da massa afro-brasileira, como um todo, dentro desse contexto imobilizante.

 >> CVA - Ainda referindo-me à obra de Peter Fry, este antropólogo diz que, numa atitude extrema, as vítimas podem tornar-se algozes, o que o senhor acha disso?

Nei Lopes - Toda vítima um dia pode se tornar algoz, é lógico. E o que se costuma chamar de “racismo ao contrário”, Abdias Nascimento chama de “estratégia de imobilização”, ou seja, quando o negro reage à discriminação, ele é chamado de racista, para assim ter imobilizado e anulado o seu discurso. Aí eu me lembro de alguns relatos de exploradores coloniais portugueses como Capello & Ivens, Serpa Pinto, etc. No inferno das selvas africanas, quando seus batedores ou carregadores, submetidos à piores condições, fugiam ou lhes roubavam, eles lamentavam a “ingratidão, a “maldade”, vistas como características inatas dos pretos.

>> CVA - O senhor poderia nos falar um pouco genericamente se temos racismo no Brasil? Que tipo de racismo é esse? ou talvez tenhamos discriminação social? Ou as duas coisas? Como o racismo se impõe no Brasil e como ele é percebido pelas populações afrodescendentes?

Nei Lopes - Veja as chanchadas da Atlântida, na década de 50, e analise os papéis recorrentemente desempenhados por Grande Otelo, ator de muitas possibilidades, mas que só fazia papel de “crioulo”. Acompanhe as seções “Há 50 anos atrás” de O Globo, por exemplo, e você vai ver o que era racismo explícito. Informe-se sobre a publicação, em 1970, no boletim do Hospital dos Servidores do Estado, instituição do governo federal no Rio, de uma monografia sobre cirurgia para correção estética do “nariz negróide”. Isso é que era racismo! O de hoje é aquele insidioso – que, em nome do mercado, não escala atores negros nas telenovelas do horário nobre nem em comerciais de produtos Classe A; que não programa samba nas rádios da linha “MPB”, mas toca bossa-nova que é uma forma de samba gerada no seio da burguesia; que proibe shows de samba nas programações musicais dos shoppings, porque atrairia um público indesejado; que só valoriza o escritor afro-brasileiro quando ele escreve sobre favela e crime; que diz que Paulinho da Viola é o “príncipe do samba” mas paga a ele um cachê menor que o dos artistas alinhados com o pop, mesmo esses artistas sendo afro-descendentes também. O programa de cidadania que, ao invés de preparar para o mercado de trabalho só ensina a bater tambor, dançar “afro” e jogar capoeira, no meu entender também é racialmente discriminatório. Esse é o racismo de hoje no Brasil. Racismo de mercado. Cujas sutilezas a maior parte dos afro-brasileiros quase não percebe.

>> CVA - A Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana é uma obra monumental que visa à popularização dos conhecimentos afro-brasileiros, ampliando grandemente a nossa informação estereotipada, esta obra pretende também contribuir para a auto-estima do negro. Conte-nos: quanto tempo foi preciso para realizar uma obra com tamanho fôlego? Como surgiu a idéia? O senhor teve apoio, colaboradores, como foi isso?

Nei Lopes - Levei uns 10 anos organizando-a como livro, uns cinco formatando como Enciclopédia... mas, o conteúdo é acumulação de uma vida inteira. E como se trata de uma obra absolutamente pessoal, a não ser uma e outra contribuições trazidas por alguns amigos e amigas, fiz tudo, contando apenas com a força dos meus Orixás. Sem bolsa, sem patrocínio, com a cara e a coragem. Como disse o Geraldo Vandré naquele festival, “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. Mas, para terminar, eu gostaria de voltar um pouquinho à questão da adjetivação a ser usada para os brasileiros de origem africana. O parâmetro ideal para essa reflexão talvez seja Cuba, país com quem temos, nesse particular, afinidades históricas e sociais absolutas. Lá, está provado que a população afrodescendente alcançou, da década de 1960 até o bloqueio econômico americano, níveis de desenvolvimento humano que a puseram no caminho da inclusão completa. O que resta de racismo lá é herança da época anterior a Castro. E as estatísticas sobre a população negra, que antes eram informadas com números da ordem de 25%, hoje chegam assim: eurafricanos: 51%; europeus ibéricos 37%; afro-americanos 11% ; chineses 1%. (dados de 1996). Onde se lê “eurafricanos” e “afro-americanos”, leia-se, respectivamente, mulatos e negros (62%). Não é bem mais elucidativo?

>> CVA - Parabéns pela obra e obrigada pelos esclarecimentos. Em nome da CVA, agradeço a entrevista e desejo sucesso e coragem para o senhor dar continuidade a esta que, na falta de uma palavra melhor, parece uma missão política e social. Um abraço cordial, Gláucia.






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