segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

RESENHA DE LIVRO: "Civilização e revolta: os Botocudos e a catequese na Província de Minas", de Izabel Missagia de Matos

Por Carmen Lúcia Silva Lima (*)    


Civilização e revolta situa a história dos índios Botocudos numa teia de complexas relações interétnicas, marcadas pela implantação de um processo civilizador de administração indígena. Em meio as estas relações, revela singularidades capazes de demonstrar e de caracterizar a especificidade da experiência histórica deste grupo indígena em seus aspectos sóciocosmológicos. O recorte cronológico adotado compreende os anos de 1873 a 1911, período de funcionamento da missão do Itambacuri. Ao longo deste intervalo, é válido ressaltar, a sociedade brasileira passou por intensas transformações e instabilidades ocasionadas pela abolição da escravidão, proclamação da república, separação oficial entre a Igreja e o Estado e as migrações ocasionadas pelas secas. Empreendida pelos indígenas aldeados, a revolta de Itambacuri, ocorrida em 1893, torna-se uma metáfora da relação de contradição existente entre as forças atuantes para a integração nacionalizadora e as que deflagraram movimentos de divisão, buscando a recuperação da autonomia local.
Inicialmente, a autora discute as especificidades lingüísticas e culturais dos Botocudos através de um exame das fontes históricas e etnográficas. Os documentos analisados possibilitaram a apreciação dos sistemas de conhecimento e de organização política dos nativos e a conformação dos serviços de catequese na Província de Minas. Já a etnografia histórica, evidenciou que no interior da trama interétnica instaurada pelo indigenismo, verifica-se a sustentação histórica de formas e estratégias indígenas articuladas a partir dos esquemas etnopolíticos nativos.
A mestiçagem é abordada por uma descrição e análise dos mecanismos sócio-simbólicos, tendo como locus privilegiado desta observação os aldeamentos. Os relatos dos missionários, dos viajantes, dos administradores de índios e dos inspetores das políticas territoriais, assim como as notícias propagadas pela impressa, permitiram a apreciação da transformação dos indígenas e do impacto da catequese sobre sua organização política nestes espaços.
No exercício interpretativo empreendido, merece destaque o fato que ao olhar para as identidades indígenas, a autora, soube articular perspectivas analíticas aparentemente antagônicas: estrutura e processo. Assim, a direção teórico-metodológica adotada na descrição dos eventos contemplou aspectos do universo simbólico dos atores particulares e da história. Em conjunto, estes aspectos, endógenos e exógenos, possibilitaram o conhecimento do campo de forças atuantes sobre a constituição das formas assumidas pelos grupos indígenas em suas interações. À luz da documentação oficial, as situações de aldeamento foram examinadas a partir de uma metodologia processual que possibilitou a contextualização histórica dos acontecimentos, auxiliados por um instrumental etnológico bastante adequado para a apreensão das lógicas de conhecimento e organização sóciopolítico nativa. As freqüentes mobilizações das populações indígenas, presentes na vida cotidiana dos aldeamentos missionários na Província de Minas, estão sugestivamente relacionadas aos sistemas sociocosmológicos nativos. Contudo, através do esforço teórico de articulação da perspectiva processual e estrutural, verifica-se que as formas indígenas não podem ser definidas de maneira autônoma. A mistura e a incorporação da história devem ser devidamente equacionadas a esta configuração.
É significativo o esforço da autora em não limitar a dinâmica da identidade dos Botocudos a uma mera resposta à prática evangelizadora dos missionários. Para não cair neste equívoco, oportunamente, são abordadas as transformações ocorridas nas relações sociais no interior da missão, privilegiando as dimensões simbólicas pré-existentes no universo indígena, articulando, assim, os princípios sociocosmológicos dos Botocudos na história.
O xamanismo, visto como a articulação de uma “consciência histórica” no pensamento indígena, estaria intimamente relacionado às formas e às estratégias políticas e guerreiras tradicionais dos povos nativos. Segundo Missagia de Mattos, o idioma do xamanismo forneceu os elementos para a interpretação da experiência histórica das situações de aldeamento e norteou as estratégias de sobrevivência coletiva. Através do relato etnográfico das situações de rebeldia das populações aldeadas, o compartilhamento deste idioma pelos diversos subgrupos Botocudos é atestado. A sustentação das formas identificáveis ao longo do processo de colonização era orientada por líderes respeitados como xamãs e curadores, detentores de poderes sobrenaturais capazes de propiciar o ideal de solidariedade necessário à existência da coletividade indígena. Com propriedade, ela mostra como os movimentos de rebeldia identificados nos aldeamentos foram promovidos e alimentados por categorias do xamanismo, que definiam a compreensão do outro.
Elementos da civilização cristã são apropriados pelos indígenas. Associados à dimensão sobrenatural e ao poder político estes elementos passam a integrar o universo indígena. Entre as fronteiras étnicas verifica-se, então, o trânsito da força mágica (yikég) e de símbolos cristãos. Esta abordagem nos permite vislumbrar a atualização dos princípios sociocosmológicos dos Botocudos de Itambacuri, inovados em meio a esta movimentação.
Estamos diante de um estudo sobre as fronteiras. Abrangendo os vários sentidos abrigados por este termo (geográfico, simbólico, étnico e disciplinar), o enfoque adotado privilegiou os deslocamentos e as transgressões presentes neste espaço propício para as resignificações simbólicas e reformulações das estratégias sóciopolíticas indígenas. Este é, ainda, o locus privilegiado para análise dos recursos dialógicos utilizados pelos diferentes atores envolvidos em constantes negociações dos diversos sentidos da sedução e da conversão civilizatória, instrumento principal do indigenismo na Província de Minas Gerais e de todo o Império brasileiro. Na fronteira, a história vai sendo tecida por imigrantes europeus, romeiros, aventureiros, missionários, retirantes, ex-escravos e índios revoltosos. Inseridos nesta situação de contato, eles promoveram o diálogo, as trocas, os trânsitos entre os diversos mundos por eles habitados, entrecruzando estatutos, negociando significados, configurando identidades e construindo utopias.
O exame lingüístico e etnológico acurado empreendido pela autora nos permite contemplar as formas indígenas em movimento constante de dissolução, mistura e reconstituição. Sua abordagem não se limita ao relato, tão corriqueiro, de embate entre índios e brancos. Superando esta interpretação, são evidenciadas as teias de relações interétnicas, marcadas por divergência de interesses, mostrando como se constrói a história dos Botocudos.
Esta história é tecida em um contexto em transformação. Os empreendimentos extrativistas, agrários e pecuários vão prevalecendo nas matas de Mecuri, do Doce e adjacências. Junto com o crescimento populacional decorrente destas atividades, aparecem interesses distintos: dos índios, dos missionários, dos soldados, dos latifundiários, dos sitiantes, dos escravos africanos, dos migrantes europeus e dos nordestinos retirantes da seca de 1877. Ao acompanhar a dinâmica social dos grupos indígenas ao longo do processo histórico de colonização e de implantação das políticas indigenistas, a autora nos apresenta situações etnográficas privilegiadas para a investigação antropológica. Através da análise da trajetória dos Botocudos, os atores indígenas ganham visibilidade enquanto participantes deste processo.
As lideranças indígenas, as línguas, os sertanistas e os missionários são abordados como operadores da mediação, cujo idioma abarcou o xamanismo, a simbologia cristã, o discurso civilizador e a mestiçagem. Estes distintos registros e linguagens possibilitaram a escrita de uma história distinta da empreendida por missionários e pela política indigenista da época, que considera os indígenas apenas como derrotados, passivos ou assimilados.
Ao se ocupar do passado, a autora nos permite entender melhor o presente dos povos indígenas. O período focalizado pela pesquisa corresponde ao momento em que ocorre o desaparecimento das populações indígenas não apenas em Minas Gerais, mas também em todo o Brasil. Possibilitando a compreensão deste fato, esta obra nos sugere que o desaparecimento dos indígenas está mais relacionado à imposição de um modelo civilizador do que às situações e práticas do cotidiano.
Em síntese, Civilização e revolta, produto da reconfiguração da tese de doutoramento de Izabel Missagia de Mattos, defendida na UNICAMP, sob a orientação de John Manuel Monteiro, atenta para a complexidade dos contextos e a diversidade dos atores sociais neles presentes, sem desconsiderar a imposição do discurso civilizatório e das práticas evangelizadoras. A partir da análise das fontes, resgatou as vozes indígenas, que foram muitas vezes, ou quase sempre, silenciadas por uma escrita unilateral da história.
Esta publicação comprova a fecundidade da aproximação entre a antropologia e a história, uma vez que desta relação brotam interpretações diferenciadas, que nos oferecem elementos oportunos para a desconstrução das visões equivocadas a cerca da existência indígena. Denominados de etno-história ou antropologia histórica, os estudos desta natureza focalizam os indígenas como protagonistas de sua história, sujeitos capazes, mesmo em condições adversas, de fazer suas escolhas e forjar estratégias políticas. Por considerar este protagonismo, eles se opõem à crônica da destruição e do desaparecimento que privilegiou a perspectiva do colonizador e que prevaleceu na interpretação da realidade nativa.

(*) Carmen Lúcia Silva Lima é bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Ceará - UFC e mestre e doutoranda em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Étnicas – GEPE da UFC

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