quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

O problema do racismo à brasileira

Entrevista com ANTÔNIO SÉRGIO ALFREDO GUIMARÃES

O Sr. poderia se apresentar aos leitores?

Meu nome é Antônio Sérgio Alfredo Guimarães, nascido em fevereiro de 1949, na cidade de Salvador, Bahia. Sou Livre-Docente aqui no Departamento de Sociologia desde 1997, não faz muito tempo portanto, mas passei 18 anos como professor na Universidade Federal da Bahia.

Eu me formei em Ciências Sociais em 72, indo trabalhar como técnico de planejamento para o governo do estado da Bahia, cargo que ocupei por 8 anos. Logo depois, fiz mestrado na Universidade Federal da Bahia, entre 79 e 82, e, ainda nesse ano, viajei para fazer meu doutorado nos Estados Unidos, na Universidade de Wisconsin. Quando retornei ao Brasil, em 85, desliguei-me do estado e voltei a ensinar.
Durante o mestrado, trabalhei em uma dissertação sobre planejamento regional como um instrumento de formação de uma nova ideologia de classes, na verdade, um estudo sobre a formação de uma classe burguesa industrial na Bahia. No doutorado continuei a trabalhar com a questão da formação de classes só que, dessa vez, com a formação de classes trabalhadoras. Esse período, entre o final dos anos 70 e os anos 80, foi de muita efervescência nos meios operários de Salvador, principalmente na indústria petroquímica. Era a época do novo sindicalismo e, dentro dessa mobilização, é que aparece toda esse movimento de reestruturação do trabalho, de sua gestão e de seus processos. Então, comecei a trabalhar com a formação de classes na perspectiva da Sociologia do Trabalho.

Esse trabalho continuou até os anos 90, quando me deparei com um problema interessante ao realizar um estudo no qual tive que olhar, não apenas para as relações que eu normalmente estudava, mas também para a questão da cor. Era um estudo para a Fundação Ford onde se queria saber se os trabalhadores negros tinham as mesmas chances dos trabalhadores brancos na indústria petroquímica.
A partir daí comecei a mexer com relações raciais e, de 1991 para cá, tenho trabalhado com a Sociologia das Relações Raciais.

Quais as principais constatações desse estudo para a Fundação Ford que o Sr. citou?

O achado principal daquele estudo é que existia um problema da população negra de Salvador no ingresso na indústria, visível nos dados. Em uma das fábricas, estatal, você via que os negros ocupavam principalmente os cargos mais mal pagos, que exigiam menor educação, no entanto, não consegui ver nenhum tipo de problema maior de discriminação pois tinha-se uma gestão universal em termos de concursos, sem diferenciação de raça. Já na fábrica de propriedade privada, eu encontrava problemas que não eram só de acesso, lá o negro tinha muito mais dificuldade para fazer uma carreira, portanto existia realmente um problema racial.

Essas constatações me despertaram para a necessidade de estudar esses fatos que eu não conseguia explicar, teoricamente, de maneira convincente. O que eu fazia era repetir os argumentos comuns nas décadas de 50 e 60, não havia nada novo. Por isso eu investi um ano para refletir sobre essa situação.

E a que conclusão chegou?

Eu vi que existia no Brasil um tipo de problema racial tão importante como o de outros países, só que ele era diferente. Grande parte dessa especificidade vem do fato de que, da década de 20 para cá, criou-se uma identidade nacional onde nos vemos como um produto de três raças, uma nação mestiça, na qual o problema racial foi resolvido. Então aceitamos uma definição de branco muito ampla, incluindo nessa categoria pes- soas com pele escura e traços africanos, sem problema algum. Não queremos classificar essas pessoas, mas, paralelamente, não deixamos de enquadrar os outros como negros ou índios. Esses indivíduos sentem alguns problemas no trabalho, sentem problemas com os padrões de beleza, não sendo considerados bonitos. Toda uma série de estereótipos e de estigmas permanecem nas relações entre a sociedade dominante e a comunidade negra, apesar de grande parte da população não estar abarcada nessa definição.

Quais as principais diferenças nessa situação? Ela melhorou ou não nesses últimos 10 anos?

Melhorou, no sentido de que esses fatos se tornaram um problema e passaram a ser discutidos. A grande dificuldade da população negra no Brasil, pelo que eu vejo, era justamente a questão do preconceito não ser considerado um problema, continuando a situação como sempre foi. Hoje você tem o discurso da Presidência da República, da mídia e das pessoas ilustradas reconhecendo a existência do problema. Isso, com certeza, é um avanço.

Qual a sua avaliação dos movimentos de consciência negra?

Há um grande leque de ação no movimento negro, desde uma postura mais política, de denúncia, até um movimento de afirmação que abrange vários ângulos. Do ponto de vista da identidade negra, da apresentação de si mesma, têm-se manifestações como o Bloco Afro, organizações que trabalham com o judiciário para coibir casos de discriminação, pessoas preocupadas com a educação e outras com a desigualdade entre brancos e negros em termos de renda. Existe um grande número de ações muito propositivas.

Em alguns casos não se pode sentir um certo grau de radicalização desses movimentos, como é o caso daqueles seguimentos que estão exigindo indenizações pelo período de escravidão no Brasil?

Junto com essas ações propositivas, voltadas para atacar os mais diversos problemas da comunidade negra, você tem, às vezes, posturas mais políticas, que eu diria, muito mais de marketing político. Eu enxergo esse tipo de ação muito mais como uma estratégia de choque, para criar impacto, fazendo propaganda. Como existem pessoas que acreditam que a sociedade brasileira está muito quieta, conformada, achando que já não existem mais problemas raciais, então surgem essas estratégias para balançar um pouco os valores consolidados, trazendo para a sociedade a idéia de um passado com o qual precisamos ser responsáveis.

E sobre o Censo Étnico e Racial que está sendo desenvolvido na Universidade?

Essa foi uma idéia da Comissão Permanente de Políticas Públicas para a População Negra da USP, criada na gestão do Reitor Jacques Marcovich. Qual é a idéia do Reitor, tal como eu a vejo? É que se sente, por parte da comunidade negra de São Paulo, um certo ressentimento com o fato de que a Universidade de São Paulo é uma universidade de elite. É lógico que a USP deve ser de elite porque, uma universidade que quer ser excelente, precisa ser formada por uma elite intelectual, agora não é correto que só esteja aberta a um certo grupo de cor. Dessa forma, ele criou a comissão para orientá-lo e uma das nossas primeiras constatações foi que não se conhecia a situação USP.

Veja, as pessoas dizem que há menos de 1% de negros dentro da USP, mas não existem dados, não se sabe nada a esse respeito. Logo, para que pudéssemos pensar em como agir, a primeira coisa a fazer é saber, exatamente, quantos negros estudam na USP, onde eles estão, quantos entram, etc.
A primeira medida que tomamos foi conseguir que a Fuvest introduzisse a questão da cor no formulário sócio-econômico dado aos vestibulandos. Agora já sabemos quantos se inscrevem e quantos entram. O passo seguinte é saber como as pessoas, na USP, identificam-se étnica ou racialmente e estamos nesse pé, pesquisando essa informação.

Já existe algum resultado, mesmo que preliminar?

Na verdade, até o momento, o censo não teve a abrangência que nós queríamos. A Comissão distribuiu formulários que deveriam ser preenchidos pelos alunos na ocasião da matrícula mas, em algumas escolas, isso não funcionou tão bem. Conseguimos apenas 30% de respostas entre os estudantes de graduação, muito pouco para se dizer alguma coisa. O que está sendo feito nesse momento é preparar uma pesquisa amostral mais simplificada para realmente podermos fazer uma estimativa.
Veja bem, quando falamos em brancos e negros dentro da USP, na realidade, estamos falando na auto-identificação dessas pessoas, não quer dizer mais nada além disso, no entanto já é um bom termômetro para se desenhar algum tipo de política.
Realmente esperamos que o número de negros seja muito pequeno, isso deve levar a Reitoria a propor algumas medidas de modo a ampliar a participação dos negros na Universidade, ou de outras minorias, caso se revelem.

Isso pode caminhar até uma política de cotas?

Quem sabe? Essa é uma decisão política. Pode ser que alguém tenha essa idéia, mas pode ser que a maioria não queira. Fazer alguma coisa não significa, necessariamente, que precisamos adotar as cotas. Podemos, por exemplo, fazer um esforço na Universidade no sentido de dar melhores condições de funcionamento para os cursinhos alternativos. A Universidade já isentou 10 mil pessoas da taxa de inscrição para o vestibular. Pode-se, também, promover algum tipo de bolsa para os estudantes que já entraram. Há várias maneiras de implementar essas políticas.

O Sr. disse que a pesquisa foi baseada na auto-imagem dos estudantes da Universidade que, em sua grande maioria, saem da classe média. Como fica esse dado uma vez que muitos negros da classe média não se assumem como negro?

Temos aí um dado interessante. Em nossa sociedade existem várias maneiras de ser negro e talvez essa seja a grande diferença entre o Brasil e os Estados Unidos do passado. Nos Estados Unidos praticamente só existia aquela maneira combativa de ser negro. No Brasil sempre houve muitas maneiras de ser negro, uma delas é essa, a pessoa realmente achar que o domínio de uma determinada cultura depende do esforço pessoal dele e acabou-se.

Agora cada vez mais vemos, e eu falo isso pelos estudos que temos, que a classe média negra se assume como tal justamente quando entra na universidade. Ao chegar aqui sente que ser negro lhe dá autenticidade. Cada vez mais no Brasil isso é verdade.
Ao começarem a competir no mercado de trabalho e terem oportunidades de emprego recusadas uma primeira, segunda e terceira vez, lá pela quinta vez começam a se perguntar se isso não tem nada a ver com a cor. Aí, aquele discurso da identidade racial começa a fazer sentido.

Falando em classe média negra, como está a situação sócio-econômica do negro no Brasil?

Os estudos sobre a mobilidade social dos negros mostram que o Brasil é um país de grande mobilidade, o que não significa que a mobilidade seja só ascendente, tem uma grande mobilidade descendente também. O que acontece com as classes médias negras é que elas não estão muito consolidadas. Isso significa que se o seu pai é um operário e você tira um diploma de nível superior, às vezes, seu filho pode não conseguir se manter nessa classe média e volta a ser operário. Não existe uma classe média negra estabilizada, ascende e volta de uma forma mais intensa do que acontece com a população branca.

De um modo geral, nós continuamos em um país com uma desigualdade de classes muito grande e essa desigualdade tem muito haver com a raça. Negros e pardos de um lado, brancos do outro.

Um clichê que sempre ouvimos é que no Brasil o preconceito tem um caráter muito mais econômico do que racial. O caso mais citado é o do Pelé que praticamente não sofre preconceito por ser negro pelo fato de ser rico, isso é um fato?

Vamos pensar nisso de uma forma racional. Quando você tem uma diferença muito grande de riqueza entre brancos e negros, a cor, paradoxalmente, deve contar menos, porque ser negro significa que você é pobre, então se algum deles, eventualmente, ganha dinheiro pode ser facilmente absorvido.

Quando é que começa o problema? Quando muitos negros começam a querer ter dinheiro. Foi nesse sentido que a sociedade brasileira mudou. Um maior número de pessoas negras se sentem discriminadas justamente porque estão querendo chegar lá e ser tratadas daquele jeito.

É como quando o Pelé foi à Suécia. As mulheres de lá queriam beijá-lo, pensando que ele era de chocolate, mas na hora que começou uma migração de nigerianos para a Europa ninguém mais queria ficar beijando os negros na rua. Estamos vendo um grupo grande de pessoas competindo por uma coisa que é delas também, aí é que se instala o problema racial. O mesmo está acontecendo no Brasil. Aquela sociedade tradicional acabou e hoje os negros, se são advogados, querem ser ministros.

Fábio P. RodriguêsFONTE: INFORME FFLCH Nº 24 - SETEMBRO/2001

Nenhum comentário:

Postar um comentário