quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Resenha do livro "Espinho: a desconstrução da racialização negra da escravidão", de Miriam Virgínia Ramos Rosa

 Por Elielma Ayres Machado (*)
O livro de autoria de Miriam Rosa resultou da sua dissertação de mestrado, escrita em 2000 e apresentada ao Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília. O livro, assim como a dissertação, tem por finalidade apresentar impressões da autora sobre o chamado povo do Espinho - Gouveia (MG). As impressões relatadas derivam do contato travado, em três ocasiões diferentes, entre a autora e os moradores da “comunidade de Espinho”. Miriam Rosa conheceu o local em 1996 e depois desse primeiro encontro, esteve lá duas outras vezes, totalizando 61 dias de contato.

O livro se subdivide em seis partes: uma breve introdução e cinco capítulos. Não há conclusão. Logo na introdução, a autora adverte ao leitor que quando esteve pela primeira vez em Gouveia, soube que havia um local que era conhecido como “lugar onde só tem preto” ou “resto de quilombo”. Mas ela afirma que a “comunidade” de Espinho não se reconhece como remanescente de quilombo. No entanto, Miriam Rosa tem opinião diversa. Para ela a comunidade seria mesmo remanescente de quilombo. Para resolver este impasse, a autora adotou a seguinte medida: “o objeto [de estudo] deslocou-se para análise das estratégias da comunidade frente ao preconceito e das narrativas, contos que recontam sua própria história. Assim é que este trabalho procura utilizar de forma superficial a idéia derrideana de desconstrução que neste trabalho diz respeito à desconstrução da racialização negra, presente no discurso, narrativas míticas e na vida cotidiana do povo de Espinho” (p. 13 e 14).

Dessa forma, nas páginas seguintes, a autora procede com a “desconstrução da racialização negra”. A “desconstrução” tem como base apontar e valorizar os aspectos que, por vezes, encontram-se dissimulados em muitas narrativas etnográficas.

Para alcançar tal intento, Miriam Rosa cita entre as referências bibliográficas, autores e etnografias considerados clássicos da Antropologia, tais como: Evans-Pritchard, Edmund Leach, Marcel Mauss, Lévi-Strauss e Clifford Geertz, ao lado de outros como Homi Bhabha, Stanley Tambiah, James Clifford, considerados pós-Modernos; além de Jacques Derrida, de quem toma de empréstimo a noção de desconstrução. O processo de escrita adotado no livro é uma demonstração da adesão da autora à perspectiva da escrita etnográfica como um processo “polifônico”. Tanto assim que um capítulo foi escrito na primeira pessoa do singular, dois outros de forma impessoal, alternando formas de escrita. Dentro dessa perspectiva a etnografia é constituída por “muitas vozes”. Assim seria revelada a percepção da autora acerca das ações e relações simbólicas vivenciadas por “outros” e também seria possível identificar “o ponto de vista do nativo”. Este estilo narrativo tem sido utilizado por muitos antropólogos nos dias atuais e, por vezes, tem possibilitado identificar outras dimensões da relação sujeito-objeto, principalmente os aspectos subjetivos inerentes à relação “pesquisador-pesquisado". Esta relação está presente nos textos antropológicos, de forma indireta desde Bronislaw Malinowski, no livro “Argonautas do Pacífico Ocidental”, com as notas sobre os “imponderáveis da pesquisa etnográfica” e, de maneira direta no “Diário no Sentido Estrito do Termo”[1]. Ou seja, este tema perpassa grande parte da produção etnográfica há quase um século e, a considerar a produção etnográfica atual, não há sinais de esgotamento do assunto. Ao contrário, a ênfase nos aspectos subjetivos tem dado possibilidade de surgirem outros temas correlatos. Nesse sentido, cito como exemplo as relações de gênero e “raça”. Quando mulheres[2] e antropólogos (as) com diferentes características físicas (não-brancos) vão a campo, outras relações e temas eclodem em decorrência do contato com os “nativos”. Em seu livro, Miriam Rosa parece indicar estas relações, mas há poucos relatos de como suas características influenciaram a pesquisa. E fica no ar ainda a questão sobre qual racialização precisa ser desconstruída: a “racialização negra” ou a “escrava”?

Como descrita no trabalho, “a categoria remanescente de quilombo foi criada para “garantir” direitos (fundiários e “culturais”). Dessa forma, o “artigo 68” da Seção dos Atos das Disposições Transitórias da Constituição Federal de 1988, não apenas reconheceu o direito que as “comunidades remanescentes de quilombos” têm às terras que ocupam, como criou esta categoria política e sociológica. “Remanescente” e “quilombo”, são categorias sociais e, como tal, podem adquirir diferentes significados.

Faltam no trabalho análises importantes sobre “comunidades remanescentes de quilombo”, especialmente as obras de Fry & Vogt e Arruti. Para estes autores, a articulação entre linguagem e identidade étnica é um ponto central na imbricada relação entre estas comunidades específicas e os mecanismos adotados por elas frente a outros segmentos e grupos sociais.

A partir da indicação de Arruti pode-se perceber como nos estudos antropológicos sobre “comunidades remanescentes de quilombo” torna-se necessário demonstrar como as categorias sociais são articuladas por indivíduos e grupos sociais. Com tal procedimento é possível descrever e analisar as formas de classificação e de autoclassificação de cor/“raça”. Revela-se assim, a importância de se estabelecer genealogias como método de investigação sobre os usos das categorias sociais. Ao se recuperar os “nomes”, também se reconstrói a história dos indivíduos, dos grupos e das instituições que eles nomeiam.

Na minha opinião, a categoria “Espinho” presente no título do livro de Miriam Rosa mereceria uma genealogia, posto que esta categoria é central na experiência narrada, por nomear a comunidade em foco. O mesmo ocorre com outras categorias “nativas”, tais como: bichos do mato, tipuca, além das categorias de cor utilizadas pelos moradores de Espinho. Algo similar ocorre com a “trucagem”. Ao descrever a “trucagem” como sendo o “achado” da pesquisa de campo, tal prática adquire ainda mais importância . Posto que a “trucagem” ou “trucar não é apenas jogar em momentos de lazer, é também uma linguagem própria, que se utiliza de gestualidade performática e de uma verbalização exuberante...” (p.43). Assim, caberia demonstrar detalhadamente como tal prática é feita. A “trucagem” parece ser algo de fundamental importância na articulação dos indivíduos como comunidade organizada. Mas como esta categoria é apenas mencionada, não há como saber quais os seus significados. O mesmo ocorreu com outras informações e dados relativos à comunidade pesquisada. Cito como exemplo o fato de que além da parte textual, há ilustrações entre os capítulos do livro. Trata-se de imagens de pessoas com aparência – cor da pele – “negra”, as quais suponho que representem os moradores de Espinho. No entanto, não há como saber, uma vez que não têm legendas. Este e outros aspectos são indicativos de como a autora preferiu guardar para si e não desvelar o significado do “Espinho”.

O livro de Miriam Rosa, não tem conclusão e apenas no último parágrafo aparece a afirmação de que não pretendeu chegar a uma conclusão definitiva. Dessa forma, como se trata de uma dissertação de mestrado, fica a expectativa de um outro trabalho da autora mais elucidativo sobre a comunidade de Espinho.

 [1] - Sobre o tema ver CLIFFORD, J. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX (org. Gonçalves, J. R.), Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1998. e CLIFFORD, J. “Travelling cultures: Spatial pratices: fieldwork, travel, and the disciplining of anthropology” In---. Routes: travel and translation is the late twentieth century, Harvard University Press, 1997 (17-46; 52-91).

[2] - Nesse sentido ver Ruth Landes (1962).

ARRUTI, José Maurício. (2000). "Direitos Étnicos no Brasil e na Colômbia: Notas Comparativas sobre Hibridação, Segmentação e Mobilização Política de Índios e Negros". Horizontes Antropológicos, ano 6, nº 14, novembro, pp. 93-123.
___(1997). "A Emergência dos Remanescentes: Notas para o Diálogo entre Indígenas e Quilombolas". Mana — Estudos de Antropologia Social, nº 3/2, outubro, pp. 7-38.
CLIFFORD, J. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no sáculo XX (org.
Gonçalves, J. R.), Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1998.
___. “Travelling cultures: Spatial pratices: fieldwork, travel, and the disciplining of anthropology” In---. Routes: travel and translation is the late twentieth century, Harvard University Press, 1997 (17-46; 52-91)
LANDES, Ruth.
(1942) Cidade das Mulheres. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
MALINOWSKI, B. (1976) Argonautas do Pacífico Ocidental. (Col. Os Pensadores). São Paulo: Abril.
___. (1997) Um Diário no sentido estrito do termo. Rio de Janeiro: Record.
VOGT, Carlos & FRY, Peter. (1996). Cafundó - A África no Brasil. Editora da Unicamp, Campinas.

(*) Elielma Ayres Machado é doutora em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ e professora de Antropologia Cultural da PUC-Rio e de Sociologia da Universidade Estácio de Sá.


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