quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

População negra, principal vítima das armas de fogo, precisa de mais atenção do Estado, afirmam especialistas.

Direcionar recursos não só da área de segurança, mas principalmente da área social, para segmentos da população historicamente marginalizados é um dos principais fatores que poderão contribuir para a redução do índice de homicídios nestes segmentos e dos homicídios em geral, concordam os especialistas que participaram do terceiro painel do Seminário de Desarmamento, Controle de Armas e Prevenção à Violência, com o tema “Gênero, Raça/Etnia e Violência Armada”.

O evento foi promovido pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) e pelo Sistema das Nações Unidas no Brasil em comemoração do Dia dos Direitos Humanos 2011.

Durante o evento, a capitã da Polícia Militar e analista criminal do Instituto de Segurança Pública (ISP/RJ), Cláudia Moraes, ressaltou a importância simbólica da luta de Maria da Penha Maia Fernandes, farmacêutica cearense conhecida como Maria da Penha, que recebeu em 1983 um tiro de seu marido, um professor universitário, enquanto dormia.

Em consequência, ela perdeu os movimentos das pernas. Seu marido tentou acobertar o crime, afirmando que o disparo havia sido cometido por um ladrão. Após voltar do hospital, no mesmo ano, sofreu mais agressões e iniciou, no ano seguinte, uma longa jornada em busca de justiça. Ela dá nome à mais importante lei brasileira na luta contra a violência de gênero, em vigor desde 22 de setembro de 2006.

Cláudia Moraes é uma das autoras do ‘Dossiê Mulher’, relatório do ISP que traz informações relativas à violência contra a mulher no Estado do Rio de Janeiro. “Muitas das mortes das mulheres são causadas pelo fato de serem mulheres. Por mais que ainda não utilizemos esta categoria, trata-se de femicídio”, afirmou. Ela lembra que existe os dados de violência contra as mulheres são de baixa qualidade, talvez por uma questão cultural que ainda persiste.

Segundo a pesquisadora, oficialmente 206 mulheres foram vítimas de homicídio doloso por armas de fogo (armas de porte, principalmente) em 2010. Cláudia concluiu que a maior parte dos homicídios de mulheres se dão no espaço público, são realizados com armas de fogo e as vítimas são pardas e negras.

Tatiana Moura, Diretora Executiva do Instituto Promundo, lembrou a omissão do Estado em oferecer espaços de participação para as mulheres, identificando uma série de deficiências históricas, como o não cruzamento entre dados das esferas pública e privada. Ela apontou como um importante marco a resolução 1325 do Conselho de Segurança da ONU, de 31 de outubro de 2000, que reafirmou o papel das mulheres na prevenção e resolução de conflitos, negociações de paz, construção da paz, manutenção da paz, resposta humanitária e reconstrução num cenário de pós-conflito.

Em tempos de guerra ou de paz, violência é semelhante

“Se olharmos bem, determinados fenômenos de guerra na violência contra as mulheres se articulam com violências em tempos de paz”, afirmou Tatiana. Ela apontou ainda que 75% das armas pequenas (leves) estão nas mãos de civis, o que ocorre também em contextos de paz, situação que gera grandes riscos para as mulheres. “Essa realidade é frequentemente negligenciada nos contextos de violência de gênero em países como o Brasil ou a África do Sul”. Para além das mortes e ferimentos de mulheres por armas de fogo, explica Tatiana, existem outros impactos diretos, como a perda de um parente ou conhecido próximo.

Nos primeiros dez anos da resolução 1325, afirma, mais de 20 países fizeram planos para colocar em prática a resolução. “O Brasil ainda não”, destacou, lembrando que ainda há muito a ser feito. “A resolução 1325 não é apenas um instrumento de política internacional, e sim de políticas nacionais para a prevenção da violência”.

Racismo institucionalizado gera distorções, mesmo quando há melhorias

Lúcia Xavier, coordenadora da organização não governamental Criola, trouxe dados do sistema de saúde que, segundo argumentou, precisam ser utilizados e comparados com os da segurança. Para Lúcia, os homicídios masculinos apresentam dados muito importantes e a questão racial é igualmente central, conforme ela demonstrou por meio de gráficos com os índices de homicídios no Estado. “Se essas vítimas têm cor, significa que existe aí um outro argumento. São dados ‘coloridos’ pelo racismo institucionalizado”, afirmou.

Utilizando dados do Ministério da Saúde, a especialista aponta que tanto os homens negros quanto as mulheres negras são os mais atingidos por armas de fogo.

Após o início da campanha do desarmamento liderada pelo Ministério da Justiça, apontou Lúcia Xavier, aumentaram os riscos de morte da população parda e negra e diminuiu os da população branca. “Esta política não atinge a população negra, não dá conta das principais vítimas da violência, historicamente. Não traz resultado”, criticou.

 “Se há práticas institucionalizadas de racismo”, completou Lúcia, “o que devemos fazer?”. Segundo ela, garantir direitos deve passar por uma política pública que divida as riquezas nacionais. São políticas em áreas como educação, saúde e moradia, entre outras. A especialista lembrou que R$ 635 bilhões vão para a amortização da dívida, por exemplo. “É preciso redistribuir poder para que recursos sejam redistribuídos. As políticas públicas devem ser voltadas para a redistribuição de renda, do contrário as vítimas permanecerão as mesmas.”

Respondendo a uma observação do público sobre o aumento de registros de casos, a coordenadora da ONG Criola lembrou que a violência contra mulheres negras não é um fenômeno recente. “Se elas denunciam mais hoje, é porque se sentem mais seguras. As mulheres negras têm mais experiência nesse tema e, por vezes, não denunciam à polícia por não considerar esta a melhor via.”

Já Cláudia Moraes afirmou que o aumento de registros da violência contra as mulheres no Rio é, em parte, consequência da pacificação promovida pelo Governo do Estado.

Verônica dos Anjos, Coordenadora de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres do ONU Mulheres Brasil e Cone Sul e mediadora do terceiro painel, ressaltou que as mortes se dão tanto em países em conflito quanto países considerados em paz. “Mulheres morrem muito mais por armas de fogo do que por qualquer outro objeto, e a maioria são negras. Este é o cenário.”

O Diretor do Centro de Informação das Nações Unidas para o Brasil (UNIC Rio), Giancarlo Summa, encerrou o seminário afirmando que o evento fortalece a estratégia da ONU sobre o tema e fundamenta o trabalho em questões como Segurança Cidadã e Raça, Gênero e Etnia, duas áreas de forte atuação do Sistema das Nações Unidas.

Summa lembrou que as organizações podem contar com as Nações Unidas, que estão de portas abertas para realizar parcerias e cooperações com a sociedade, como já acontece com diversas das iniciativas junto com as agências, fundos e programas da ONU que atuam no Brasil.

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