Por:
Vicente Serejo
Não
gostaria, Senhor Redator, de parecer vaidoso, mas não vou negar: sou pastor de
nuvens numa vila muito velha e muito pobre. Não que quisesse, fosse candidato
ao cargo ou lutasse para ser. Foi por destino e não por escolha. Fui ficando,
esquecido e sozinho na sua solidão sem mágoa, como no poema de Ferreira Gullar,
e quando cuidei de mim já não sabia sair. E se pastoro nuvens como se fossem
ovelhas é porque nada além de um pequeno rebanho me foi dado ter nestas ruas de
cachorros magros e famintos.
Outros,
como no soneto de Lêdo Ivo, viriam bêbados e enlutados. Eu venho lúcido abrir
as janelas das manhãs e muito cedo deixo a primeira nuvem entrar. No inverno,
são longos e quietos seus silêncios. Adornados pelo melão de São Caetano
subindo nas cercas dos quintais adormecidos e as ramagens das buchas que se
enroscam nas latadas. Tão pobre é minha vila que não tem nem aquelas mulheres
de vida besta, entre laranjeiras sonolentas, que um dia descobri num poema de
Carlos Drummond de Andrade.
Para
ser pastor de nuvens não precisei ser dono de nada. Só ser íntimo. Das suas
manhãs, das suas tardes, das suas noites. De mais nada. Que as nuvens todas vão
chegando suaves, e, lentamente, como se balissem. E ficam ali, acocoradas, no
frio manso da noite, chamando o dia. No máximo, o latido magro de um cão vadio
e triste rasga o silêncio escuro e pobre da noite. E os gatos sem dono que
repetem sobre os muros a geometria dos quintais cheios de sono, de malvões e espadas
de São Jorge no último orvalho.
Temos
poucas coisas, Senhor Redator. E nenhuma riqueza. A não ser o grasnado
estridente das gaivotas quando passam em pequenos bandos nos seus vôos rasantes
sobre o mar. Ou o trinado banal dos pardais que parecem cair dos beirais em
vôos rápidos e desajeitados nos pequenos abismos até o chão. Desconfio, mas só
desconfio, é de andorinhas pelo leque de suas caldas a passarada ruidosa que
festeja a manhã, antes do sol. E uns poucos bem-te-vis que vão indo embora
nesta vila hoje de tão poucas árvores.
Ainda
vive aqui um pequeno e envelhecido povo feito de pescadores, talvez o último
neste beiço de rio e mar. Um tresmalho resiste na pesca de arrastão trazendo
gingas, pequenos bagres, algumas vezes, e raramente, um camurim. Os xaréus que
eram fartos desapareceram. E mesmo as varas modernas de pescadores de fim de
semana só fisgam os pobres barbudos como passatempo. E caícos, Senhor Redator,
que é como o pescador chama a miunça dos peixes miúdos e sem valor que sobram
no fundo do samburá.
Acabou-se
o tempo da fartura neste mar antigo. Dos peixes e dos risos fartos que enchiam
a vida dos viventes da aqui. O inverno faz medo. Todas as casas vizinhas do mar
apagam suas janelas e acendem sensores de olhos vermelhos e miúdos espreitando
a noite. Os casais não mais ocupam os alpendres nas horas calmas e
clandestinas, feitas para o mormaço do amor. Tudo pode acontecer. De repente
soa uma sirene, grita um alarme, ladra um cão raivoso. E o vigia apita,
rasgando o silêncio e a solidão da noite.
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