sexta-feira, 27 de julho de 2012

SEREJO: Relatório do inverno


Por: Vicente Serejo

Não gostaria, Senhor Redator, de parecer vaidoso, mas não vou negar: sou pastor de nuvens numa vila muito velha e muito pobre. Não que quisesse, fosse candidato ao cargo ou lutasse para ser. Foi por destino e não por escolha. Fui ficando, esquecido e sozinho na sua solidão sem mágoa, como no poema de Ferreira Gullar, e quando cuidei de mim já não sabia sair. E se pastoro nuvens como se fossem ovelhas é porque nada além de um pequeno rebanho me foi dado ter nestas ruas de cachorros magros e famintos.

Outros, como no soneto de Lêdo Ivo, viriam bêbados e enlutados. Eu venho lúcido abrir as janelas das manhãs e muito cedo deixo a primeira nuvem entrar. No inverno, são longos e quietos seus silêncios. Adornados pelo melão de São Caetano subindo nas cercas dos quintais adormecidos e as ramagens das buchas que se enroscam nas latadas. Tão pobre é minha vila que não tem nem aquelas mulheres de vida besta, entre laranjeiras sonolentas, que um dia descobri num poema de Carlos Drummond de Andrade.

 Para ser pastor de nuvens não precisei ser dono de nada. Só ser íntimo. Das suas manhãs, das suas tardes, das suas noites. De mais nada. Que as nuvens todas vão chegando suaves, e, lentamente, como se balissem. E ficam ali, acocoradas, no frio manso da noite, chamando o dia. No máximo, o latido magro de um cão vadio e triste rasga o silêncio escuro e pobre da noite. E os gatos sem dono que repetem sobre os muros a geometria dos quintais cheios de sono, de malvões e espadas de São Jorge no último orvalho.

Temos poucas coisas, Senhor Redator. E nenhuma riqueza. A não ser o grasnado estridente das gaivotas quando passam em pequenos bandos nos seus vôos rasantes sobre o mar. Ou o trinado banal dos pardais que parecem cair dos beirais em vôos rápidos e desajeitados nos pequenos abismos até o chão. Desconfio, mas só desconfio, é de andorinhas pelo leque de suas caldas a passarada ruidosa que festeja a manhã, antes do sol. E uns poucos bem-te-vis que vão indo embora nesta vila hoje de tão poucas árvores.

Ainda vive aqui um pequeno e envelhecido povo feito de pescadores, talvez o último neste beiço de rio e mar. Um tresmalho resiste na pesca de arrastão trazendo gingas, pequenos bagres, algumas vezes, e raramente, um camurim. Os xaréus que eram fartos desapareceram. E mesmo as varas modernas de pescadores de fim de semana só fisgam os pobres barbudos como passatempo. E caícos, Senhor Redator, que é como o pescador chama a miunça dos peixes miúdos e sem valor que sobram no fundo do samburá.

Acabou-se o tempo da fartura neste mar antigo. Dos peixes e dos risos fartos que enchiam a vida dos viventes da aqui. O inverno faz medo. Todas as casas vizinhas do mar apagam suas janelas e acendem sensores de olhos vermelhos e miúdos espreitando a noite. Os casais não mais ocupam os alpendres nas horas calmas e clandestinas, feitas para o mormaço do amor. Tudo pode acontecer. De repente soa uma sirene, grita um alarme, ladra um cão raivoso. E o vigia apita, rasgando o silêncio e a solidão da noite.

Nenhum comentário:

Postar um comentário