Douglas
Portari e João Claudio Garcia Rodrigues – de Brasília
Escritor,
membro da Academia Brasileira de Letras, autor de Auto da compadecida e Romance
d’a pedra do reino, Ariano Suassuna fala sobre globalização, manifestações
populares, literatura e das relações entre cultura e desenvolvimento. E
ressalta: “Eu faço uma distinção entre o sucesso e êxito. Eu não acredito que
nenhum artista verdadeiro procure o sucesso”.
Ariano
Suassuna é enfático. As palavras saem de sua boca como um texto já copidescado
e revisado. Mas não se trata de uma fala formal, ao contrário. As entonações e
a espontaneidade de suas frases exaltam a paixão de quem vê nas manifestações
populares a afirmação do que o Brasil tem de melhor.
Nascido
em João Pessoa (PB), em 1927, Ariano Villar Suassuna perdeu o pai, assassinado
por motivos políticos, aos nove anos de idade. João Suassuna havia sido
presidente – cargo equivalente ao de governador – da Paraíba e foi figura de
destaque nos acontecimentos que desembocaram na Revolução de 1930.
Ariano
viveu até os 15 anos na fazenda Acahuan, de propriedade de sua família, no
sertão. Ainda adolescente, foi morar no Recife (PE), onde se formou em direito.
A
carreira literária começou cedo, em 1947, com o lançamento de sua primeira
peça, Uma mulher vestida de sol. Oito anos depois seria encenado o espetáculo
que lhe deu projeção nacional, Auto da compadecida.
Professor
de estética na Universidade Federal de Pernambuco entre 1956 e 1994, Ariano
Suassuna construiu uma sólida carreira literária, materializada em 19 peças de
teatro, cinco livros de prosa – entre os quais se destaca Romance d’A Pedra do
Reino (1971) – além de vários volumes de poesia.
Entre
1975 e 1978 foi Secretário de Educação e Cultura do município do Recife e entre
1994 e 1998, foi Secretário de Cultura do Estado de Pernambuco, no Governo
Miguel Arraes.
O
vínculo com a alma popular o levou a estudar profundamente a Guerra de Canudos
(1896-97). O arraial, construído por camponeses pobres liderados por Antonio
Conselheiro, foi arrasado por forças federais, temerosas de uma organização
popular autônoma.
Em
seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, proferido em agosto de
1990, Ariano sintetizou as lições do episódio: “O que houve em Canudos, e
continua a acontecer hoje, no campo como nas grandes cidades brasileiras, foi o
choque do Brasil oficial e mais claro contra o Brasil real e mais escuro”. Mais
adiante, completou: “Na história recente, existem povos que souberam fazer de
suas respectivas culturas instrumentos de luta e de resistência, como
aconteceu, entre outros, com o Vietnã e a Argélia”.
Ariano
Suassuna proferiu uma palestra na abertura das comemorações do aniversário do
Ipea, em setembro último. Pouco depois, ele concedeu a entrevista que se pode
ler nas próximas páginas.
Desafios
do Desenvolvimento - O senhor diz que globalização é um novo tipo de
colonialismo. Outros países têm políticas mais direcionadas para proteção da
cultura nacional, como França, outras nações europeias e Estados Unidos. No
Brasil, falta política pública para defender a cultura nacional face à
globalização?
Ariano
Suassuna - Olha, está melhor que quando eu era jovem. Hoje, ainda há uma certa
preocupação. Com a criação do Ministério da Cultura, ele tem exercido um certo
papel nesse caminho. Eu destaco no Ministério da Cultura um dado que me parece
muito positivo, o estabelecimento dos chamados Pontos de Cultura, que serviram
muito para a interiorização da cultura. Antigamente, pensava-se em cultura como
uma espécie de perfumaria, quer dizer, algo que permanecia nas capitais. As
poucas iniciativas do poder público, no sentido de fomentar e defender a
cultura eram tomadas mais no litoral. Isso vem de um historiador baiano do
século XVI, frei Vicente do Salvador, que dizia que os portugueses chegaram
aqui e ficaram como caranguejos, arranhando a costa.
Desafios
do Desenvolvimento - O Brasil hoje é um país com projeção maior no mundo. Do
ponto de vista da cultura, não há benefício na globalização?
Ariano
Suassuna - Para conversar comigo, você precisa fazer uma distinção entre isso
que chamam de globalização e a universalidade da cultura. Veja bem, falo da
globalização nos termos em que ela é feita hoje. Desse ponto de vista, é um mal
terrível, porque é uma tentativa de uniformização das culturas, niveladas pelo
gosto médio, que é uma das coisas piores que pode acontecer à cultura. Vou
falar de um artista verdadeiro, como Villa-Lobos. Você está para me apresentar
um artista de fora que tenha a importância de Villa- -Lobos. Eu tenho grande
admiração por dois músicos franceses, Débussy e Erik Satie, que representam
para a França o que Villa-Lobos representou e representa para nós. Você tem de
fazer diferença entre um artista desse e um que atinge o sucesso, que é outra
distinção fundamental para se entender o que há comigo. Eu faço uma distinção
entre sucesso e êxito. Eu não acredito que nenhum artista verdadeiro procure o
sucesso. O sucesso é efêmero por natureza. Outro dia, eu estava falando da época
em que Michael Jackson ainda era vivo. Eu dizia que Michael Jackson e Madonna,
e hoje eu diria Lady Gaga, têm mais sucesso que Euclides da Cunha, Cervantes,
Dante ou Nero. E levando pro campo da música, têm mais sucesso que Mozart.
Agora, a música de Mozart foi um êxito e vai ser assim daqui a três séculos,
quando ninguém mais vai saber quem foi Lady Gaga. Mozart continuará sendo um
dos músicos mais importantes que já existiu. Quando eu falo contra a
globalização, é essa globalização de Lady Gaga, e não o valor universal de
Mozart.
Desenvolvimento
- Apesar de o movimento regionalista de literatura ser anterior ao século XX,
ele ganhou força no século XX, meio que como resposta ao movimento modernista.
O movimento modernista, essa coisa de tentar deglutir o que vem de fora,
estaria mais como uma aceitação da globalização ou uma universalização?
Suassuna
- Naquele tempo não se cuidava muito de globalização porque não existia ainda.
Mas eu não me considero um regionalista e, se você olhar bem, há distinções
fundamentais. Eu considero regionalismo um neonaturalismo. Quando eu estava
escrevendo a peça Auto da Compadecida, muita gente me perguntava se era uma
peça regionalista. Eu dizia que era, porque não tinha nem como explicar na
época. Mas eu sabia desde logo que haveria uma distinção fundamental. Porque eu
não sou um escritor naturalista. Existe no que escrevo uma dose de fantástico e
de poético que vem da literatura de cordel e de outros tipos de escritos pelos
quais eu tenho muita admiração. Eu gosto muito do Apocalipse de São João, eu o
considero uma obra prima literária. Eu acho a Bíblia, como um conjunto, a
epopeia mais importante que já foi escrita. Superior à Odisseia, à Ilíada, no
sentido literário, e não religioso. São João e o profeta Ezequiel são, para
mim, os maiores autores da Bíblia, aqueles com os quais eu mais simpatizo. São
grandes poetas e grandes escritores. Repare em São João, que coisa linda: “E
viu-se um grande sinal do céu. Uma mulher vestida de sol e a lua estava sob
seus pés, e uma coroa de doze estrelas sobre sua cabeça”. Jamais um naturalista
escreveria isso. E o fundamento poético da minha primeira peça são esses versos
de São João. Então, eu sabia que não era regionalista, mas entre o regionalismo
e o modernismo, eu me ligo mais ao regionalismo.
Desenvolvimento
- Mas, como Tolstói dizia: “Se queres ser universal, pinta a tua aldeia”...
Suassuna
- Isso aí já é outra coisa, você está discutindo a oposição local e universal.
Na minha opinião, não existe obra que seja universal, obra importante. Todas as
obras que eu conheço, e das quais eu gosto, de início são locais, nem
regionais, nem nacionais. Dom Quixote é um livro que só poderia ter sido
escrito na Espanha, em Castela e na Mancha. Quer dizer, Cervantes é um autor
que só poderia surgir na Espanha. Dostoiévski é um escritor que só poderia
nascer na Rússia. Eles são profundamente locais, mas eles são universais por
causa da quantidade de sonho humano que eles conseguiram captar em seus livros.
Eu não acredito em grande obra universal, mas em grande obra universalizada,
pela qualidade e pela grande quantidade de sonho humano que ela recebe.
Desenvolvimento
- Professor, uma expressão bastante comentada no Brasil recentemente é o
complexo de vira-lata, que Nelson Rodrigues já mencionava. Essa mania de
desprezar o que é nacional e exaltar o que é estrangeiro continua bastante
forte e arraigada no Brasil?
Suassuna
- Está começando a melhorar e a ser superada. Eu assisti a duas, três ou quatro
fases de desenvolvimento do Brasil. O pessoal da minha idade costuma dizer: “No
meu tempo, era melhor”. Mas é mentira deles, eu sou testemunha e era muito pior
no meu tempo. Eu estou com 84 anos, eu já recebi gente na minha casa. E tenho
muita falta de sorte quanto a isso, porque tem gente que vai para dizer o que
eu devo pensar e o que devo ler. Foi uma pessoa que disse: “Se você continuar
com essas posições, você vai ser execrado pela juventude”. E eu disse:
“Paciência, eu vou dizer o que penso, que é o que gosto e sei fazer. Se a
juventude gostar, para mim tá ótimo, se não gostar, paciência. Eu não vou
mentir”. Eu já posso dizer que percorri o Brasil inteiro, eu tenho ido do
Amazonas ao Rio Grande do Sul, do Nordeste ao Centro-Oeste, Mato Grosso e
Goiás, e em todos os lugares eu tenho dito isso, porque para mim a juventude
brasileira está ansiosa para ouvir falar do Brasil. Ela corre aos montes, a
grande maioria das pessoas que vão me ouvir é constituída por jovens.
Desenvolvimento
- Isso nos leva à próxima pergunta, exatamente sobre essas inf luências de
infância. Sua infância foi bastante marcada pelo circo, pelo mamulengo, pela
criança que brinca no campo, na terra. A criança de hoje é muito levada pelas
novas tecnologias, brinca mais dentro de casa, em contato remoto com outras
crianças. Haveria uma forma de as novas tecnologias recuperarem esse passado?
Suassuna
- Essa é uma mudança inevitável. Nunca houve um tempo que se congelasse. Outro
dia um jornalista escreveu um artigo e disse: “Ariano Suassuna precisa levar em
conta que o homem que andava a cavalo hoje anda de moto”. Aí eu disse: “E você
precisa levar em conta que o homem que anda a cavalo é o mesmo que anda de
moto”.
Desenvolvimento
- Mudou a ferramenta, não mudou o homem...
Suassuna
- É claro. O ser humano é o mesmo, em todos os lugares e em todas as épocas. Os
problemas do ser humano são os mesmos: fome, injustiça, ciúme, amor, paixão,
morte, que é o principal problema de todos e o mais democrático, que atinge
todo o mundo. Esses problemas, enquanto existir o ser humano, eles vão valer.
Já que eu falei no Dom Quixote, hoje não é mais o tempo de Cervantes. Acontece
que, quem escreve somente com os elementos de seu tempo, nas suas
circunstâncias, que são acidentais, está desgraçado, liquidado, fadado a ser
esquecido e deixado de lado. Do tempo de Cervantes, você sabe o nome de Lope de
Vega, Calderón de La Barca e Góngora. E quantas centenas de escritores não têm
hoje? Já desapareceram, e o Dom Quixote vai ficar. E a obrigação de Cervantes
era recriar, na literatura, a Espanha de sempre, o espanhol de sempre, pelo
espanhol de suas circunstâncias. Então, se Cervantes escrevesse hoje, o Dom
Quixote teria a mesma grandeza.
Desenvolvimento
- O que o senhor disse agora é uma resposta àqueles que atacam a defesa que o
senhor faz da cultura brasileira, afirmando que é a defesa de uma cultura
estática e fossilizada...
Suassuna
- Eu escrevo sobre a fase que eu conheci. Minha obra está praticamente
completa, estou agora escrevendo meu último livro. Então, ainda não aparece
moto, mas aparece uma bicicleta. E podia aparecer uma moto. Se ela for boa, ela
fica, se for ruim, não tem cavalo que a sustente. Nem moto. Eu acho muita graça
disso, do povo que ficou vaidoso. Porque além de antipáticos, eles são burros.
Nenhum escritor pode saber da importância de sua obra, se ela vai ficar ou não,
enquanto ele é vivo. O passar do tempo é que decanta isso. Tanto que eu tenho
grande admiração por Guimarães Rosa, fui amigo pessoal e tenho grande admiração
por ele como escritor. Mas quando eu vou falar de um escritor que falou sobre o
sertão, que apresentou os jagunços e o messianismo, eu prefiro falar de
Euclides da Cunha. Por um motivo muito simples: já se passaram mais de 100 anos
da publicação de Os Sertões, e Rosa foi meu contemporâneo. Tanto eu quanto ele temos
de esperar, apelar para o tempo.
Desenvolvimento
- O senhor disse que a juventude brasileira tem sede de conhecer o Brasil, que
ela quer conhecer o verdadeiro Brasil. Qual é o caminho para facilitar esse
conhecimento? Depende de uma ação da própria juventude, do governo?
Suassuna
- Isso eu não sei. Vocês estão me chamando de professor, mas eu não sou
sociólogo, nem antropólogo. Eu sou um escritor, eu estou fazendo o meu, porque
literatura é o que gosto. Eu acho que o problema do desenvolvimento do país não
pode ser olhado estritamente do ponto de vista econômico ou político, ele tem
que ser visto como um todo, e eu acho que a cultura tem um papel fundamental
nisso. Eu acho que a cultura é a ponta de lança, até do desenvolvimento. A
gente tem que colocar um sonho na frente. Porque se você for contar somente com
a razão e com a ciência, você fica quieto num canto e isso pode te levar para
um bom caminho ou para os piores cantos do mundo. Basta dizer que o progresso
científico do século XX levou para a bomba atômica.
Desenvolvimento
- O Ipea assumiu isso, que o desenvolvimento não é uma questão só econômica...
Suassuna
- É uma boa notícia. Eu acho que o sonho é o fundador da arte e da literatura.
Então, eu falo do Brasil que sonho e do Brasil que há de vir. Fiquei muito
satisfeito porque um escritor português falou que A pedra do reino era o
apocalipse do sertão do Brasil que há de vir. “Que está a vir”, como uma força
cósmica, semelhante à da Rússia. Do ponto de vista político, meu sonho é esse.
Desenvolvimento
- Como profundo conhecedor do sertão, como admirador de Euclides da Cunha, como
escritor que viajou o país inteiro: o que avançou do sertão que o senhor
conheceu na infância e na juventude, que o inspirou em A pedra do reino, até
hoje?
Suassuna
- Avançou muito. Primeiro, as telecomunicações avançaram muito, hoje você não
encontra mais aquele homem do sertão isolado, como Euclides da Cunha viu, como
se fosse um país estranho. Não foi defeito dele não. Machado de Assis já dizia
que existiam dois países no Brasil, o oficial e o real. Euclides da Cunha foi,
como eu, nascido, criado, formado e deformado pelo Brasil oficial, mas ele teve
a grandeza de perceber o Brasil real e se converteu para o Brasil real. Mas a
conversão foi rápida demais, e ele ficou meio perturbado. Tanto que ele não
conseguiu encarar e perceber o Brasil real das cidades. A favela é o sertão das
cidades. Ele passou a identificar como Brasil real apenas o sertanejo. E para
mim era até bom, porque eu sou sertanejo. Mas eu acho que, sem querer, ele foi
até injusto com o Brasil das cidades. Inclusive ele não percebeu que, em
Canudos, havia uma parcela do Brasil real recrutada pelo Brasil oficial para
tirar dos seus irmãos. Existe uma coisa certa, uma coisa do símbolo, que para
mim, como escritor, me toca muito. Eu não sei se você sabe, mas pra mim sempre
chamou atenção, que eu não sei por que se chamam os aglomerados urbanos das
grandes cidades brasileiras de favelas. Favela é o nome de um vegetal
sertanejo. Estava escrito em Os Sertões. É um vegetal sertanejo, espinhoso. Aí
eu disse: esse negócio só pode ter relação com a Guerra de Canudos. Fui
pesquisar e é mesmo. Canudos era situado em uma zona baixa. Euclides descreve:
Canudos era uma tapera situada dentro de uma furna, era cercada por um cinturão
de serras. No lugar dessa serra que circunda a cidade, havia um chamado morro
da favela, porque tinha muita favela nele. Então, quando acabou a guerra, os
soldados e oficiais voltaram para as cidades, para o Rio inclusive. E, quando
voltaram, os oficiais ficaram nas casas de baixo, como sempre. E os soldados
subiram para o morro, que começou a ser chamado de morro da favela. Canudos foi
o momento em que o Brasil real tentou levantar a cabeça e o Brasil oficial foi
lá e cortou essa cabeça. E veja como isso se tornou importante.
Desenvolvimento
- O tema do Sebastianismo, na obra do senhor, é bem recorrente. O senhor acha
que o povo brasileiro tem muito disso, de esperar o salvador da pátria?
Suassuna
- Teve e tem. Veja bem, eu tive de fazer uma reflexão crítica sobre mim mesmo.
Eu tenho grande admiração pela figura de Dom Sebastião. O que me seduz nele é
isso: o homem que procurou, além de si mesmo, ir atrás de um sonho. Mas hoje eu
noto uma coisa que me desagrada muito: ele é um integrante privilegiado e
diferenciado, mas é um integrante dessas pessoas que atacam o chamado terceiro
mundo. Ele não é um bruxo, que ficou trancado lá, encastelado, e mandou os
outros morrerem. Mas ele procurou alçar-se acima de si mesmo e, apesar de seus
erros e de tudo que ele fez, a morte bela sagra a inteira. Então, como ele
morreu belamente, depois de adulto eu notei que lá estava ele assaltando
Canudos também. Eu, quando menino, peguei os fragmentos de uma cantiga
sebastianista e decorei. Já depois de adulto, eu chamei meu amigo Antônio
Madureira e passei para ele a música, fiz uma reconstituição literária da
cantiga, da qual eu só tinha fragmentos esparsos. Fiz uma versão integral e dei
a ele, que musicou. E esse romance de cantiga sebastianista está no romance A Pedra
do Reino. E eu vou dizer para vocês a cantiga, porque ela é linda: “Nosso rei
foi se perder nas terras do mal passar”, é o Dom Sebastião; “deitam sortes
aventura quem o havia de ir buscar/ O cavaleiro escolhido não se cansa de
chorar/ Vai andando, vai andando sem nunca desanimar/ Até que encontrou um
mouro num areal a velar/ Por Deus te peço, bom mouro, me diga sem me enganar/
Cavaleiro de armas brancas, se o viste aqui passar/ Este cavaleiro, amigo,
diz-me tu, que sinal traz/ Brancas eram suas armas, seu cavalo é Tremedal/ Na
ponta de sua lança levava um branco sedal/ Que lhe bordou sua noiva, bordado a
ponto real/ Este cavaleiro amigo, morto está nesse pragal/ Com as pernas dentro
d’água e o corpo no areal/ Sete feridas no peito, cada uma mais mortal/ Por uma
lhe entra o sol, pela outra o luar/ Pela mais pequena delas, um gavião a voar”.
Esse gavião, para mim, é o símbolo da morte. O jovem rei morto ali, com sete
feridas – olha o número mágico. Aí dizia lá: “Mas é mentira do mouro, seu
desejo é me enganar/ O nosso rei encantou-se, nas terras do mal passar/ E um
dia, no seu cavalo, nosso rei há de voltar”.
Desenvolvimento
- O senhor está como secretário especial da Cultura, e o senhor já teve outras
experiências na administração pública. É mais difícil promover a cultura como
intelectual ou como gestor público?
Suassuna
- Para mim, o ideal seria permanecer como escritor. Eu sempre adverti as
pessoas que me chamaram: olha, vocês estão convidando uma pessoa que não tem
vocação, eu não tenho vocação administrativa. Ou seja, se vocês querem me pegar
como uma espécie de bandeira, então eu concordo, porque aí eu torno mais eficaz
a minha atuação de escritor. Eu tenho uma pena de político. O político decente
– que existe, vocês sabem –, porque eles ficam no meio de um bombardeio e eles
têm de ser astuciosos porque os do mal são mais astuciosos. Então, se eles
forem ingênuos, como eu sou... Qualquer vereador de uma cidade menor de
Pernambuco ou da Paraíba me enrola em dois minutos. Então, eu não posso. O
doutor Arraes queria me fazer prefeito do Recife. Eu disse: me desculpe, mas um
compromisso desse eu não aceito não. Eu gosto muito do Recife e não ia fazer um
mal desses. E eu poderia inclusive ser atingido na minha reputação, porque que
eu não ia roubar eu sei, porque não sou ladrão, mas se eu descobrisse que estão
roubando... Eu vi Getúlio Vargas, e eu tenho grande admiração por ele. Ele
tinha uma parte ruim que era o autoritarismo, mas também tinha projeto para o
país e uma preocupação com os mais pobres. Isso ficou evidente, tanto que
Fernando Henrique Cardoso se jactou, quando estava perto de terminar o governo,
e disse que tirou os últimos vestígios do getulismo no Brasil, que era a
legislação trabalhista, avançadíssima. E outra coisa, ele foi deposto não por
causa do que ele tinha de ruim não, mas do que ele tinha de bom. Por causa
exatamente dessa preocupação nacional e da preocupação com os mais pobres. A
embaixada americana liderou a derrubada dele, articulou. Então eu vi Getúlio,
que era honesto, honrado, e quando ele se viu cercado de ladrões e acuado pelos
adversários, disse: “nunca pensei que estivesse cercado por esse mar de lama”.
Aí deu um tiro no peito. Eu até falei em uma entrevista que, se os adversários
do Lula pensam que vai ser igual, eles estão enganados, porque Getúlio Vargas
não tinha, como Lula tem, a sabedoria, a astúcia e a paciência do povo
brasileiro, porque ele não vai dar tiro no peito nenhum.
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