segunda-feira, 30 de julho de 2012

Serejo: Dona Chloris

Por: Vicente Serejo

Era assim, com uma grafia luxuosa e antiga que seu nome está escrito na certidão de nascimento original. Inspirado numa Ninfa dos Campos Elísios que segundo a mitologia casou com Zéfiro e foi pintada por Boticelli. Anos depois, muito jovem, e logo que terminou o curso na Escola Doméstica, na primeira turma, posando, fardada e elegante, como a aluna-modelo no livro histórico da história da ED, fundada por Henrique Castriciano, casou com Omar Lopes Cardoso. Farmacêutico natalense, formado no Recife, mas já na época tenente do Exército, revolucionário de trinta e fundador da Farmácia Natal.

Conheci D. Cloris em 1970 quando comecei a namorar Rejane, aluna do curso de jornalismo, de espírito rebelde, temporã de três irmãos – Otomar, o mais velho; e Selma que foi uma das moças bonitas do seu tempo, desfilando nos clubes. Rejane vinha de uma temporada na França, e lá viveu seis meses. Assistiu ao vivo o Maio de 68, onde viu a juventude chorando lacrimogêneo num Boulevard de Paris, como no título que Daillor Varela escolheu ao publicar uma entrevista de duas páginas na Tribuna.

D. Chloris era baixinha, bem humorada – ficou muito magra depois do enfarto – e sabia fazer tudo muito bem, como era comum na sua geração de mulheres prendadas. Sabia cozinhar, costurar e fazia renda irlandesa considerada uma arte de tão difícil. Destilava licor e aos domingos servia empadas de camarão e casquinhos de caranguejo pra ninguém botar defeito. Selma herdou suas habilidades, mas Rejane é só consumidora, nesses tempos modernos, de todos esses bufês e quituteiras de cada esquina.

Cozinhava tão bem que um dia, precisando reavivar com doutor Omar episódios da Revolução de 30 para o depoimento que gravava na Fundação Getúlio Vargas, Dinarte Mariz foi visitá-los. E perguntou, vendo que aquela conversa seria comprida: Clóris, você ainda faz aquele peixe gostoso? Ela confirmou e ele convidou-se para almoçar no dia seguinte. Foi. Não era casado com Rejane, mas já era jornalista, e estava lá. Veio o cozido com pirão mexido na hora e postas de peixe ao forno, impecáveis.

Já com falhas de memória, pediu a mim para ver Aluizio Alves. Ele foi comigo e Agnelo à casa da Afonso Pena. Demorou quinze minutos. Não conseguiu esconder a emoção diante daquela velhinha frágil, olhos vivos, fixos na fisionomia dele. Rompido o silêncio do reencontro, depois de tantos anos, disse como se exclamasse e ao mesmo tempo perguntasse para ter certeza: ‘É Aluizio!’ Ele, pra disfarçar, lembrou: ‘Você e Alice – mãe de D. Cloris – eram alcoviteiras do meu namoro com Ivone’.

Fui o último a quem chamou pelo nome no hospital, horas antes de fechar os olhos para sempre. Respirava forte, como se puxasse dos pulmões as últimas forças para ver o filho Otomar que voava de Brasília. Fui apanhá-lo no aeroporto, início da tarde. Ainda vivia, mas não sei se sentiu sua presença. Cloris Lopes Cardoso, como depois passou a assinar, sem o h antigo, era minha sogra, personagem das minhas afeições. Hoje, sete de julho, se estivesse viva, faria cem anos. É por isso que escrevo sobre ela.

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