Na
edição de 3 de março de 1954, em A República, Eloy de Souza publicou o artigo
‘Um meu homônimo’ sobre Jacinto
Canela de Ferro, pseudônimo que adotou para assinar suas cartas sertanejas. Relembra
uns dias que passou em Currais Novos a convite de Vivaldo Pereira, uma
vaquejada em Santana do Matos, terras de Aristófanes Fernandes, e de como era
feita a carne de sol naqueles sertões velhos. A transcrição é uma homenagem a
Adriana Lucena que pesquisa sobre a iguaria nascida na civilização do calor
para ser uma das mais perfeitas técnicas de conservação da mesa nordestina.
Vivaldo
Pereira, jornalista nato e orador precavido e agradável, maneja a ironia com
esperteza de letrado.
Certa vez, ao proferir palavras de saudação
numa vaquejada que me foi oferecida por Aristófanes Fernandes, anfitrião cuja
medida no obsequiar consiste em não ter nenhuma, sintetizou os laços que me
prendem aos sertanejos nas seguintes palavras de carinhosa gentileza: Eloy de
Souza, pseudônimo de Jacinto Canela de Ferro…
Ele falava, realmente, a um mal nascido escritor regionalista que tinha
vestido casaca e melhor vestira e ainda vestia gibão, guarda peito e perneiras
de couro. A ironia instantânea garantiu
o êxito do discurso, que foi enorme, e deixou perplexo o político conterrâneo,
de pernas moles pela emoção, felizmente amparado a um mourão da porteira de uma
velha fazenda no município de Santana do Matos.
Recordando o episódio, peço ao meu prezado
amigo que também o recorde quando despertar no decorrer da noite pela música da
chuva sobre as telhas da sua casa hospitaleira de Currais Novos. Nada precisa responder sobre a carne-de-sol,
a sapiência dos veterinários e o mais que consta de laudas antigas e passadas,
que diziam assim.
Todos os homens ilustrados que, de certo tempo
a esta parte, passam pelo rancho do seu amigo, falam muito contra o uso
constante da carne no sertão. Vai nisto
um grande erro. Há muitíssimos anos que o sertanejo quase que não come carne,
nem de gado nem de ovelha, nem de bode.
Tanto a cabra como a ovelha, que por aqui chamamos criação ou miunça,
estão se acabando por causa do avanço da agricultura do algodão; e assim sendo,
o seu preço é tão caro que só os abastados podem comprá-la. Mesmo a carne de cabra, que não vale nada
como sustento, se vende pela hora da morte.
Não fala a verdade, quem disser que carne de
boi faz mal à gente. Mal faz, e grande,
não comê-la. Também no sertão essa perlenga entra por um ouvido e sai pelo
outro. Ninguém acredita nela e não há
sertanejo que não se ria de tal besteira. O que todo mundo sabe, pelo exemplo,
e pela tradição dos mais velhos, é que sem carne e sem tutano de corredor de
boi, não existe homem forte, nem vida longa.
Antigamente, quando o gado era muito e a carne
barata, os sertanejos eram muito mais altos e tinham força dobrada. Dava gosto
ver-lhes o lagarto do braço; e a largura do peito não tinha comparação com as
titelas de hoje.
Sou desse tempo e vi muito vaqueiro já idoso,
pegar boi erado por um chifre, meter-lhe os dedos da mão desocupada pelos
buracos da venta, apertar o mole que os divide e com uma reviravolta da cabeça,
derrubá-lo mais depressa, do que não se consegue fazer, com um macaco de corda
passado na cintura, moda introduzida no sertão pelos senhores veterinários, a
respeito de quem pretendo falar mais adiante.
A carne de boi que vai agora aos açougues, nem
ao menos alegra a vista da gente, pela cor das postas e da gordura. Uma deixou de ser encarnada e passou a roxa,
e a outra perdeu aquele alaranjado de outrora e tornou-se quase parecida com a
banha de tejuaçu, tudo isso obra do zebu.
Este bicho, que até parece de uma raça diferente, fortaleceu muito o
gado crioulo e aumentou-lhe o peso e o valor. Até as vacas mestiças dão mais leite.
Quanto, porém, à qualidade da carne, foi um desastre. Fresca ou de sol não se
fez para a dentadura de velhos. Os
próprios moços quando topam com uma tora de chã de fora ou da volta da pá,
cansam os queixos e acabam engolindo sempre uma parte que não foi mastigada.
Desde que os fazendeiros, com o fim de
conseguirem gado mais resistente às secas e mais pesado, começaram a castear as
raças que os portugueses nos trouxeram nos seus barcos, como o zebu, nunca mais
provamos carne de sol, verdadeiramente gostosa. Por outro lado a fome de ganhar
dinheiro, acabou com essa especialidade do nosso sertão. Em outros tempos, o seu preparo era uma
habilidade que todo mundo não tinha. Havia
até homens conhecidos como tendo boa mão para salgar as mantas, empilhá-las e
estendê-las nos caibros armados altos, sobre forquilhas. Muitos não admitiam ajudantes. Somente eles
despencavam quartos traseiros e dianteiros da rês, suspensos no alpendre da
casa, ou em outro lugar sombreado. O sal era pilado muito fino, em pilão de
aroeira, por braço de homem e não de mulher, criatura muito da cisma de alguns
abridores de carne, que, quando estavam nesse trabalho, não gostavam que a
nossa cara-metade passasse por perto, e muito menos tocassem nas mantas abertas
ou por abrir.
Estas depois de ficarem durante algum tempo,
umas sobre as outras para embeber o sal, eram estendidas nos caibros já
referidos e separadas por travessas que evitavam o contato de uma banda com a
outra. O cuidado em virá-las, de modo a
que o sol beneficiasse igualmente os dois lados, era vigilante.
A carne para ser chamada boa, precisava
apanhar sereno, pelo menos durante duas noites. Alguns sertanejos mais antigos,
e que sabiam apreciar um pedaço de carne de sol, davam-se ao trabalho de dobrar
as mantas no devido tempo, e guardá-las em malas de couro cru, que eram, por
assim dizer, a dispensa da carne de sol. Quando se abria uma dessas malas, na
camarinha mais próxima da cozinha, o cheiro tresandava no alpendre e fazia água
na boca dos que sentiam esse cheiro, muito mais ativo quando o pedaço da
gordura da chã de fora e do patinho
estava chiando na brasa. Nessa hora o
fastio de quem estava doente acabava, pelo menos em pensamento, no desejo de
comer um bocado, com farofa escaldada e tempero de cebolinha e coentro.
Hoje o preceito de fazer a carne de sol
acabou. Nem mesmo existe mais carne de sol. A que se vende hoje é de gado morto
de tarde e retalhado no dia seguinte, com esse nome que merecia muito mais
respeito, em honra à tradição do nosso paladar.
As mantas são grossas, cor de sangue, e tão salgadas que não há água
fervendo que as escalde. A questão do marchante é o peso, que dá mais dinheiro,
pouco lhe importando que o freguês goste ou não goste, viso que a competência
por esse lado acabou, por acordo entre eles.
Realmente, o cuidado com a criação é agora
muito maior do que há algumas eras passadas. Hoje, há remédio contra o
mal-triste, quarto inchado, o carbúnculo, só não há, pelo menos por aqui ainda
não apareceu, contra a tal de aftosa moléstia que nos foi trazida do sul por
desgraça nossa.
De vez em quando somos visitados pelos
veterinários, moços delicados, muito atenciosos e amigos de servir aos
sertanejos. Tratam o gado com as vacinas que trazem, e eu reconheço que elas
são boas para prevenir aqueles dois males terríveis.
Velho caturra que sou, não deixo todavia, de
achar muita graça na questão que eles fazem de ferver a agulha e a seringa e
desinfetarem com creolina o lugar da injeção.
Cá para mim, a esse respeito, bicho não é gente para andar se
infeccionando a toa. Deus já os fez com uma resistência muito grande às
infecções. Se não fosse assim, não
haveria mais nem gado nem criação no sertão, onde não há bicho que pelo menor,
não se espete uma e mais vezes todos os dias.
Mesmo espinho de xique-xique, que é reimoso como nenhum outro, mata o
animal que nele se fere Se a parte do corpo ferida foi alguma junta da mão ou
do pé, vem a inchação, que muitas vezes não desaparece e até aleija o animal.
Porém matar nunca vi.
O veterinário, entretanto, não está fazendo
caso dessa resistência natural e faz questão de ferver a agulha e a seringa, o
mais que pode, com perda de tempo, que também é dinheiro.
Não deixei, igualmente de achar muita graça em
certos remédios que eles aplicam para determinar moléstias. Outro dia vi dar ao cavalo, que estava
sofrendo de catarro, injeção de óleo canforado. Nós aqui pelo sertão em vez
desse remédio que custa muito dinheiro, resolvemos o caso com um defumador de
pimenta, falha de catingueira e fumo, que faz o animal espirrar até botar para
fora grande parte do catarro que lhe entope as ventas e os gorgomilos.
Os sertanejos muito mais antigos, os do tempo
do onça, como se costuma dizer, empregavam um processo que consistia em meter
na venta do cavalo doente, uma certa parte do corpo humano, secreta e por via
de regra mal asseada, que produziria a mesma espirradeira e curava do mesmo
modo. Isso era, porém, puro abusão, que
desapareceu na prática, mas ainda existe na tradição.
Não sou contra os veterinários. Que Deus os
traga em grande número com as suas
vacinas e a sua ambulância de remédios estrangeiros. Eu, porém, não dispenso tal amargo, clister
de semente verde de carrapateira branca; quando os meus cavalos aparecem com
sangue, caso em que também costumo sangrá-los na veia do pescoço, ou mesmo no
céu da boca.
Noto que esta já está mais extensa do que
devia ficando adiada a minha medicina dos bichos para outra vez.
Nenhum comentário:
Postar um comentário