quarta-feira, 6 de junho de 2012

SEREJO: Um meu homônimo – Eloy de Souza

Por: Vicente Serejo

Na edição de 3 de março de 1954, em A República, Eloy de Souza publicou o artigo ‘Um meu homônimo’ sobre Jacinto Canela de Ferro, pseudônimo que adotou para assinar suas cartas sertanejas. Relembra uns dias que passou em Currais Novos a convite de Vivaldo Pereira, uma vaquejada em Santana do Matos, terras de Aristófanes Fernandes, e de como era feita a carne de sol naqueles sertões velhos. A transcrição é uma homenagem a Adriana Lucena que pesquisa sobre a iguaria nascida na civilização do calor para ser uma das mais perfeitas técnicas de conservação da mesa nordestina.

Vivaldo Pereira, jornalista nato e orador precavido e agradável, maneja a ironia com esperteza de letrado.

 Certa vez, ao proferir palavras de saudação numa vaquejada que me foi oferecida por Aristófanes Fernandes, anfitrião cuja medida no obsequiar consiste em não ter nenhuma, sintetizou os laços que me prendem aos sertanejos nas seguintes palavras de carinhosa gentileza: Eloy de Souza, pseudônimo de Jacinto Canela de Ferro…  Ele falava, realmente, a um mal nascido escritor regionalista que tinha vestido casaca e melhor vestira e ainda vestia gibão, guarda peito e perneiras de couro.  A ironia instantânea garantiu o êxito do discurso, que foi enorme, e deixou perplexo o político conterrâneo, de pernas moles pela emoção, felizmente amparado a um mourão da porteira de uma velha fazenda no município de Santana do Matos.

 Recordando o episódio, peço ao meu prezado amigo que também o recorde quando despertar no decorrer da noite pela música da chuva sobre as telhas da sua casa hospitaleira de Currais Novos.  Nada precisa responder sobre a carne-de-sol, a sapiência dos veterinários e o mais que consta de laudas antigas e passadas, que diziam assim.

 Todos os homens ilustrados que, de certo tempo a esta parte, passam pelo rancho do seu amigo, falam muito contra o uso constante da carne no sertão.  Vai nisto um grande erro. Há muitíssimos anos que o sertanejo quase que não come carne, nem de gado nem de ovelha, nem de bode.  Tanto a cabra como a ovelha, que por aqui chamamos criação ou miunça, estão se acabando por causa do avanço da agricultura do algodão; e assim sendo, o seu preço é tão caro que só os abastados podem comprá-la.  Mesmo a carne de cabra, que não vale nada como sustento, se vende pela hora da morte.

 Não fala a verdade, quem disser que carne de boi faz mal à gente.  Mal faz, e grande, não comê-la. Também no sertão essa perlenga entra por um ouvido e sai pelo outro.  Ninguém acredita nela e não há sertanejo que não se ria de tal besteira. O que todo mundo sabe, pelo exemplo, e pela tradição dos mais velhos, é que sem carne e sem tutano de corredor de boi, não existe homem forte, nem vida longa.

 Antigamente, quando o gado era muito e a carne barata, os sertanejos eram muito mais altos e tinham força dobrada. Dava gosto ver-lhes o lagarto do braço; e a largura do peito não tinha comparação com as titelas de hoje.

 Sou desse tempo e vi muito vaqueiro já idoso, pegar boi erado por um chifre, meter-lhe os dedos da mão desocupada pelos buracos da venta, apertar o mole que os divide e com uma reviravolta da cabeça, derrubá-lo mais depressa, do que não se consegue fazer, com um macaco de corda passado na cintura, moda introduzida no sertão pelos senhores veterinários, a respeito de quem pretendo falar mais adiante.

 A carne de boi que vai agora aos açougues, nem ao menos alegra a vista da gente, pela cor das postas e da gordura.  Uma deixou de ser encarnada e passou a roxa, e a outra perdeu aquele alaranjado de outrora e tornou-se quase parecida com a banha de tejuaçu, tudo isso obra do zebu.  Este bicho, que até parece de uma raça diferente, fortaleceu muito o gado crioulo e aumentou-lhe o peso e o valor. Até as vacas mestiças dão mais leite. Quanto, porém, à qualidade da carne, foi um desastre. Fresca ou de sol não se fez para a dentadura de velhos.  Os próprios moços quando topam com uma tora de chã de fora ou da volta da pá, cansam os queixos e acabam engolindo sempre uma parte que não foi mastigada.

 Desde que os fazendeiros, com o fim de conseguirem gado mais resistente às secas e mais pesado, começaram a castear as raças que os portugueses nos trouxeram nos seus barcos, como o zebu, nunca mais provamos carne de sol, verdadeiramente gostosa. Por outro lado a fome de ganhar dinheiro, acabou com essa especialidade do nosso sertão.  Em outros tempos, o seu preparo era uma habilidade que todo mundo não tinha.  Havia até homens conhecidos como tendo boa mão para salgar as mantas, empilhá-las e estendê-las nos caibros armados altos, sobre forquilhas.  Muitos não admitiam ajudantes. Somente eles despencavam quartos traseiros e dianteiros da rês, suspensos no alpendre da casa, ou em outro lugar sombreado. O sal era pilado muito fino, em pilão de aroeira, por braço de homem e não de mulher, criatura muito da cisma de alguns abridores de carne, que, quando estavam nesse trabalho, não gostavam que a nossa cara-metade passasse por perto, e muito menos tocassem nas mantas abertas ou por abrir.

 Estas depois de ficarem durante algum tempo, umas sobre as outras para embeber o sal, eram estendidas nos caibros já referidos e separadas por travessas que evitavam o contato de uma banda com a outra.  O cuidado em virá-las, de modo a que o sol beneficiasse igualmente os dois lados, era vigilante.

 A carne para ser chamada boa, precisava apanhar sereno, pelo menos durante duas noites. Alguns sertanejos mais antigos, e que sabiam apreciar um pedaço de carne de sol, davam-se ao trabalho de dobrar as mantas no devido tempo, e guardá-las em malas de couro cru, que eram, por assim dizer, a dispensa da carne de sol. Quando se abria uma dessas malas, na camarinha mais próxima da cozinha, o cheiro tresandava no alpendre e fazia água na boca dos que sentiam esse cheiro, muito mais ativo quando o pedaço da gordura da chã de fora e  do patinho estava chiando na brasa.  Nessa hora o fastio de quem estava doente acabava, pelo menos em pensamento, no desejo de comer um bocado, com farofa escaldada e tempero de cebolinha e coentro.

 Hoje o preceito de fazer a carne de sol acabou. Nem mesmo existe mais carne de sol. A que se vende hoje é de gado morto de tarde e retalhado no dia seguinte, com esse nome que merecia muito mais respeito, em honra à tradição do nosso paladar.  As mantas são grossas, cor de sangue, e tão salgadas que não há água fervendo que as escalde. A questão do marchante é o peso, que dá mais dinheiro, pouco lhe importando que o freguês goste ou não goste, viso que a competência por esse lado acabou, por acordo entre eles.

 Realmente, o cuidado com a criação é agora muito maior do que há algumas eras passadas. Hoje, há remédio contra o mal-triste, quarto inchado, o carbúnculo, só não há, pelo menos por aqui ainda não apareceu, contra a tal de aftosa moléstia que nos foi trazida do sul por desgraça nossa.

 De vez em quando somos visitados pelos veterinários, moços delicados, muito atenciosos e amigos de servir aos sertanejos. Tratam o gado com as vacinas que trazem, e eu reconheço que elas são boas para prevenir aqueles dois males terríveis.

 Velho caturra que sou, não deixo todavia, de achar muita graça na questão que eles fazem de ferver a agulha e a seringa e desinfetarem com creolina o lugar da injeção.  Cá para mim, a esse respeito, bicho não é gente para andar se infeccionando a toa. Deus já os fez com uma resistência muito grande às infecções.  Se não fosse assim, não haveria mais nem gado nem criação no sertão, onde não há bicho que pelo menor, não se espete uma e mais vezes todos os dias.  Mesmo espinho de xique-xique, que é reimoso como nenhum outro, mata o animal que nele se fere Se a parte do corpo ferida foi alguma junta da mão ou do pé, vem a inchação, que muitas vezes não desaparece e até aleija o animal. Porém matar nunca vi.

 O veterinário, entretanto, não está fazendo caso dessa resistência natural e faz questão de ferver a agulha e a seringa, o mais que pode, com perda de tempo, que também é dinheiro.

 Não deixei, igualmente de achar muita graça em certos remédios que eles aplicam para determinar moléstias.  Outro dia vi dar ao cavalo, que estava sofrendo de catarro, injeção de óleo canforado. Nós aqui pelo sertão em vez desse remédio que custa muito dinheiro, resolvemos o caso com um defumador de pimenta, falha de catingueira e fumo, que faz o animal espirrar até botar para fora grande parte do catarro que lhe entope as ventas e os gorgomilos.

 Os sertanejos muito mais antigos, os do tempo do onça, como se costuma dizer, empregavam um processo que consistia em meter na venta do cavalo doente, uma certa parte do corpo humano, secreta e por via de regra mal asseada, que produziria a mesma espirradeira e curava do mesmo modo.   Isso era, porém, puro abusão, que desapareceu na prática, mas ainda existe na tradição.

 Não sou contra os veterinários. Que Deus os traga em grande número com as  suas vacinas e a sua ambulância de remédios estrangeiros.  Eu, porém, não dispenso tal amargo, clister de semente verde de carrapateira branca; quando os meus cavalos aparecem com sangue, caso em que também costumo sangrá-los na veia do pescoço, ou mesmo no céu da boca.

 Noto que esta já está mais extensa do que devia ficando adiada a minha medicina dos bichos para outra vez.

Nenhum comentário:

Postar um comentário