Coisa medonha, Senhor Redator, é viver sem sossego. Quanto mais se o cristão escolheu para viver numa vila antiga, sem riqueza e sem soberba. É como se o medo nascesse dos becos e das ruas quietas e saísse andando como um fantasma do mal. É assim que vive o povo da Redinha nesses tempos de danações. É o que resta aos que moram nesta cidade tão bonita, entre o rio, o mar e os morros, numa sucessão de notícias que hoje fazem deste lugar do mundo um assombrado exercício de sobrevivência.
Sou de outros tempos. De quando nas manhãs e
tardes antigas seu povo pescava e pastorava as nuvens. Os alpendres eram uma
extensão natural das casas, uma sombra doce que espantava o mormaço, e nas
latadas as conversas ajudavam a viver. De uns anos hoje adocicados na lembrança
com a fartura de peixes – das tainhas nas redes e dos xaréus que vinham ainda
vivos no tresmalho do arrastão. A vida não chegava pela tevê, para fazer a
paráfrase do verso bandeiriano, mas era vivida como se fosse poesia.
Esta vila, Senhor Redator, que recebeu Mário
de Andrade e Câmara Cascudo na velha casa de Barôncio Guerra, numa peixada
homérica, servida com um zambê de côco dançado na beira da praia, teve verões
imensos. Aqui o poeta Henrique Castriciano renovava os pulmões cheios de
cavernas que anunciavam a morte com sua tuberculose. E o professor Antônio
Soares, de olhos abertos para o céu e alma delirante, viu duas luas, um
mistério tão grande que nem a Nasa, com toda ciência, conseguiu ver.
Ora,
quem, senão uma vila assim, com o riso franco da vida sem perigo, por acaso
teria um time com o nome de Morte Futebol Clube, e com a presença de um jovem
craque chamado Lenine Pinto? E a gargalhada de Dalila que para Berilo
Wanderley, e como aquelas irmãs Boninas, lá de Goianinha, eram corredores de
ternura? E Cutruca, personagem de Newton Navarro que vencia suas ruas de areias
alvas como as dunas cantando canções que ninguém entendia, como se viver fosse
um jeito de amar os dias?
E a Redinha que veio depois, e viveu em nós na
sua última geração boêmia, como se fosse uma ilha a abrigar os deserdados da
tristeza, de tão felizes? E as suas casas de janelas acesas pelo sol das
manhãs? E as tardes, abertas para que a lua e as estrelas entrassem sem pedir
licença? E a cachaça que ainda vi brilhando nas mesas, entre volutas de cajus
vermelhos e abacaxis dourados, resplandecendo nos olhos mornos dos seus últimos
boêmios? E a vida que, de tão íntima, não se sabia se um dia acabava?
O medo hoje mora nestas ruas. Os dias de chuva
não afagam com ternura de mãos aveludadas o rosto da gente. É perigoso, muito
perigoso, tomar banho de chuva no beiral dos seus telhados. É arriscado andar
nos becos desertos, bares e lugares. É desaconselhável abrir as portas e
esperar a noite chegar. Foi-se o tempo, diria mesmo, que era bonito repetir o
verso do poema de Mário da Silva Brito e para abrir as janelas para encher a
casa de nuvens. Como, Senhor Redator, se o medo pode entrar?
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