Foi
bem no início dos anos setenta. Este cronista era um jovem de alma tenra, anos
ainda feitos de pouquíssimas descobertas, quando caiu nos olhos, pela primeira
vez, um livro de poucas páginas, a capa tingida de um vermelho acenourado. Uma
publicação do governo do Amazonas, com um título assim: ‘O mundo de Clarice
Lispector’. Acima, um nome desconhecido: Bendito Nunes. Abaixo, uma palavra
entre parêntesis: (ensaio). Dentro, um mundo impenetrável mesmo para um jovem
curioso.
Menino do interior quando chega aqui não é
nunca como menino de cidade. É tanto que arrasta no matolão uma ingenuidade
que, mesmo na idade adulta, aqui e ali, luta para sobreviver entre feras. Anos
depois, o livro guardado e sem uso, ouvi outra vez o nome daquela escritora,
mas já tocada do primeiro encanto, na voz de Caetano Veloso, a perguntar nos
ouvidos deste país tropical: ‘Que mistério tem Clarice?’. Os anos sessenta
ainda ardiam. De Paris a Natal, a Londres Nordestina à beira de mar.
E veio um último encantamento, no Rio, nos belos
salões do Centro Cultural Banco do Brasil, ali na Rua Primeiro de Março, de
espaços ovalados sob uma abóbada dourada e solene. A primeira grande exposição
dedicada a Clarice Lispector com frases cintilando em neons pelas paredes,
fotografias, e aqueles seus olhos amendoados, misteriosos e encantadores.
Descobri ali, naquela manhã, a beleza da mulher e da escritora. E tive inveja
de Diva Cunha que um dia a conheceu, conversou, ouviu sua voz.
Clarice
já estava morta, mas nunca mais deixei de amar Clarice. Do pequeno livro que
guardei sem ler, parti como um descobridor de olhos gulosos. Reuni o que pude
de Benedito Nunes não só sobre a sua obra, seus ensaios que fazem da filosofia
uma ferramenta para olhar a literatura e, sobretudo, olhar Clarice. Hoje tenho
tudo ou quase tudo. De perto e de longe. E sonhei escrever um ensaio sobre suas
reticências, sua incompletude, como se todas as coisas fossem inacabadas. Mas
confesso: cadê tutano?
Não teria a pretensão de descomplicar Clarice.
Pra quê? Um ensaio intencionalmente superado, feito daquela argamassa
impressionista e sem método, longe dos crivos acadêmicos. Uma conversa na sala
de Clarice. Ali, onde ficava com sua máquina de escrever no colo, o cachorro
enroscado nas pernas do sofá, cigarro aceso. Sem medo do seu olhar tão temido,
de falar em bruxas e bruxarias. Talvez sobre a sua paixão impossível por Lúcio
Cardozo a quem, ardendo de desejos, chamou de Corcel de fogo.
Voltaria,
uma a uma, como um rastejador, a todas as suas biografias. Para medir cada olhar,
cada toque sobre a pele. De Nadia Battella Gotlib – Uma História que se Conta –
a Benjamin Moser naquele seu olhar misterioso, com vírgula e sem mais nada,
assim – Clarice, – como se fosse continuar a dizer mais alguma coisa e onde
afirma que o macaibense Renard Perez um dia fez aquela que pode ser a mais
longa e confessional das entrevistas de Clarice. Conversa que Perez incluiu no
segundo volume dos seus Escritores Contemporâneos, Civilização Brasileira, Rio,
1971. Até chegar ao recente olhar português de Carlos Mendes de Souza com as
figuras da escrita.
E
depois, como a cobrir suas pegadas no baixo-relevo das suas leituras e
releituras, percorreria os livros do grande Bendito Nunes. O filósofo do povo
da floresta que faleceu ano passado, aos 81 anos, o primeiro a perceber em
Lispector o tudo pronto, mas inacabado. Só Clarice seria capaz de avisar que
cada pessoa se inventa um dia depois de nascer. Uma pessoa, diz Clarice no seu
grito surdo, nunca é ela mesma. Precisa sempre se reinventar. Ou, numa estocada bem no rosto do leitor: uma
pessoa é outra.
E, a partir daí, misturaria tudo. Sem nenhum
pudor acadêmico, só por não acreditar que seria possível separá-las,
compreendê-las longe uma da outra, distantes como realidades desiguais. A vida
e a obra. Sem nenhuma obrigação de ser original. Talvez com aquele mesmo tom da
magoada frustração que um dia li em André Maurois na abertura do seu ensaio
tristemente belo sobre Catherine Mansfield ao lembrar seu desejo de conversar
com Tchekhov, à noite, num grande quarto um pouco sombrio…
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