sábado, 30 de junho de 2012

SEREJO: O encanto de Clarice

 Por: Vicente Serejo

Foi bem no início dos anos setenta. Este cronista era um jovem de alma tenra, anos ainda feitos de pouquíssimas descobertas, quando caiu nos olhos, pela primeira vez, um livro de poucas páginas, a capa tingida de um vermelho acenourado. Uma publicação do governo do Amazonas, com um título assim: ‘O mundo de Clarice Lispector’. Acima, um nome desconhecido: Bendito Nunes. Abaixo, uma palavra entre parêntesis: (ensaio). Dentro, um mundo impenetrável mesmo para um jovem curioso. 

 Menino do interior quando chega aqui não é nunca como menino de cidade. É tanto que arrasta no matolão uma ingenuidade que, mesmo na idade adulta, aqui e ali, luta para sobreviver entre feras. Anos depois, o livro guardado e sem uso, ouvi outra vez o nome daquela escritora, mas já tocada do primeiro encanto, na voz de Caetano Veloso, a perguntar nos ouvidos deste país tropical: ‘Que mistério tem Clarice?’. Os anos sessenta ainda ardiam. De Paris a Natal, a Londres Nordestina à beira de mar.

 E veio um último encantamento, no Rio, nos belos salões do Centro Cultural Banco do Brasil, ali na Rua Primeiro de Março, de espaços ovalados sob uma abóbada dourada e solene. A primeira grande exposição dedicada a Clarice Lispector com frases cintilando em neons pelas paredes, fotografias, e aqueles seus olhos amendoados, misteriosos e encantadores. Descobri ali, naquela manhã, a beleza da mulher e da escritora. E tive inveja de Diva Cunha que um dia a conheceu, conversou, ouviu sua voz.

Clarice já estava morta, mas nunca mais deixei de amar Clarice. Do pequeno livro que guardei sem ler, parti como um descobridor de olhos gulosos. Reuni o que pude de Benedito Nunes não só sobre a sua obra, seus ensaios que fazem da filosofia uma ferramenta para olhar a literatura e, sobretudo, olhar Clarice. Hoje tenho tudo ou quase tudo. De perto e de longe. E sonhei escrever um ensaio sobre suas reticências, sua incompletude, como se todas as coisas fossem inacabadas. Mas confesso: cadê tutano?

 Não teria a pretensão de descomplicar Clarice. Pra quê? Um ensaio intencionalmente superado, feito daquela argamassa impressionista e sem método, longe dos crivos acadêmicos. Uma conversa na sala de Clarice. Ali, onde ficava com sua máquina de escrever no colo, o cachorro enroscado nas pernas do sofá, cigarro aceso. Sem medo do seu olhar tão temido, de falar em bruxas e bruxarias. Talvez sobre a sua paixão impossível por Lúcio Cardozo a quem, ardendo de desejos, chamou de Corcel de fogo.

Voltaria, uma a uma, como um rastejador, a todas as suas biografias. Para medir cada olhar, cada toque sobre a pele. De Nadia Battella Gotlib – Uma História que se Conta – a Benjamin Moser naquele seu olhar misterioso, com vírgula e sem mais nada, assim – Clarice, – como se fosse continuar a dizer mais alguma coisa e onde afirma que o macaibense Renard Perez um dia fez aquela que pode ser a mais longa e confessional das entrevistas de Clarice. Conversa que Perez incluiu no segundo volume dos seus Escritores Contemporâneos, Civilização Brasileira, Rio, 1971. Até chegar ao recente olhar português de Carlos Mendes de Souza com as figuras da escrita.

E depois, como a cobrir suas pegadas no baixo-relevo das suas leituras e releituras, percorreria os livros do grande Bendito Nunes. O filósofo do povo da floresta que faleceu ano passado, aos 81 anos, o primeiro a perceber em Lispector o tudo pronto, mas inacabado. Só Clarice seria capaz de avisar que cada pessoa se inventa um dia depois de nascer. Uma pessoa, diz Clarice no seu grito surdo, nunca é ela mesma. Precisa sempre se reinventar.  Ou, numa estocada bem no rosto do leitor: uma pessoa é outra.

 E, a partir daí, misturaria tudo. Sem nenhum pudor acadêmico, só por não acreditar que seria possível separá-las, compreendê-las longe uma da outra, distantes como realidades desiguais. A vida e a obra. Sem nenhuma obrigação de ser original. Talvez com aquele mesmo tom da magoada frustração que um dia li em André Maurois na abertura do seu ensaio tristemente belo sobre Catherine Mansfield ao lembrar seu desejo de conversar com Tchekhov, à noite, num grande quarto um pouco sombrio…

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