Ainda
bem, Senhor Redator, que a ciência não nos foi dada como uma herança. Por mais
que sejamos curiosos, há sempre uma pedra no meio do caminho, como no poema de
Drummond. E fica ali, na passagem, impedindo nossos arroubos, fronteiriços que
somos na compreensão do mistério. Coisas há que compreendemos com o tempo.
Outras, nem tanto. Assim como Deus é servido e, algumas vezes, nas horas de
danação, como o Diabo gosta. O belo segredo de viver é não ter segredos. É só
um caminho.
Nas horas bem cedo das manhãs gosto de
caminhar na beira do mar. Com aquela sensação inútil de não ir a lugar nenhum,
como nas hercúleas e saudáveis caminhadas dos praticantes do Cooper. Para não andar
sem rumo, sigo o desenho sinuoso das espumas fazendo rendas na beira da praia.
Nem noto que a distância engole os meus passos e não procuro um destino. Quando
a alma acorda do sono mágico, dou meia-volta e ando tudo de novo. Como se tudo
fosse igual, mas como se tudo, principalmente, começasse.
É essa sensação mágica que faz nascer no
caminhante o doce engano de que a vida começa a cada manhã de um novo sol. Como
se o sol fosse novo e inaugurasse os dias. Como se já não fosse longa a
caminhada, e como se os cabelos brancos não tingissem no espelho do banheiro os
caminhos do tempo que passou. Ora, Senhor Redator, se de tudo fica um pouco, do
seu olhar no olhar de sua filha, como nos resíduos poéticos de Drummond, a cada
passo também cai, como um fruto maduro, um pedaço da vida.
Caminhar
é viver a vida passo a passo. Naquele esvair-se como um rio na lição poética de
Manuel Bandeira. Num quadro a quadro de cinematográficas visões. Espelhos que
se cruzam numa conjunção de reflexos. Ou, como o mar nas suas marés de sizígia,
na conjunção das luas. Nas tardes calmas de um encantar-se e um desencantar-se
sem angústia. Na calada promessa das noites feitas de um descobrir e um
descobrir-se, porque tudo está no meio do caminho. Na solidão dos seus
silêncios e das suas revelações.
Cada
passo é um passo, se preciso explicar. Ou um tempo que é apenas um instante, e
como todos os instantes, têm um ciclo de vida e de morte. Sim, tudo nasce e
tudo morre ao longo da caminhada. Menos o caminho. Porque nada começa e nada
acaba para quem caminha se o caminho segue o mapa das revelações. Andar é
viver, ensinam os manuais da vida saudável. Então o que fazer das grandes
urgências do coração se nem sempre são dores clínicas, e se da sua alegria e da
sua dor também nascem lírios?
Um
dia, estou certo Senhor Redator, os sonhos inventarão um reinado e um rei muito
bom e muito pobre. E lá todos esses sonhos chegarão como caminhantes cansados e
felizes. Fatigados não do caminho, mas do desejo. E como numa fábula do bem,
serão amigos do rei e dele farão o rei mais feliz do mundo. E a todos ensinarão
a grande lição da caminhada. Aquele ir-se como um rio, ternamente, para viver
no mar. Porque tudo acaba. Tudo. Até o destino. Menos o caminho. Quando é
preciso viver sem precisar chegar.
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