domingo, 3 de junho de 2012

SEREJO: O destino das águas

Por: Vicente Serejo

Ainda bem, Senhor Redator, que a ciência não nos foi dada como uma herança. Por mais que sejamos curiosos, há sempre uma pedra no meio do caminho, como no poema de Drummond. E fica ali, na passagem, impedindo nossos arroubos, fronteiriços que somos na compreensão do mistério. Coisas há que compreendemos com o tempo. Outras, nem tanto. Assim como Deus é servido e, algumas vezes, nas horas de danação, como o Diabo gosta. O belo segredo de viver é não ter segredos. É só um caminho.

 Nas horas bem cedo das manhãs gosto de caminhar na beira do mar. Com aquela sensação inútil de não ir a lugar nenhum, como nas hercúleas e saudáveis caminhadas dos praticantes do Cooper. Para não andar sem rumo, sigo o desenho sinuoso das espumas fazendo rendas na beira da praia. Nem noto que a distância engole os meus passos e não procuro um destino. Quando a alma acorda do sono mágico, dou meia-volta e ando tudo de novo. Como se tudo fosse igual, mas como se tudo, principalmente, começasse. 

 É essa sensação mágica que faz nascer no caminhante o doce engano de que a vida começa a cada manhã de um novo sol. Como se o sol fosse novo e inaugurasse os dias. Como se já não fosse longa a caminhada, e como se os cabelos brancos não tingissem no espelho do banheiro os caminhos do tempo que passou. Ora, Senhor Redator, se de tudo fica um pouco, do seu olhar no olhar de sua filha, como nos resíduos poéticos de Drummond, a cada passo também cai, como um fruto maduro, um pedaço da vida.

Caminhar é viver a vida passo a passo. Naquele esvair-se como um rio na lição poética de Manuel Bandeira. Num quadro a quadro de cinematográficas visões. Espelhos que se cruzam numa conjunção de reflexos. Ou, como o mar nas suas marés de sizígia, na conjunção das luas. Nas tardes calmas de um encantar-se e um desencantar-se sem angústia. Na calada promessa das noites feitas de um descobrir e um descobrir-se, porque tudo está no meio do caminho. Na solidão dos seus silêncios e das suas revelações.

Cada passo é um passo, se preciso explicar. Ou um tempo que é apenas um instante, e como todos os instantes, têm um ciclo de vida e de morte. Sim, tudo nasce e tudo morre ao longo da caminhada. Menos o caminho. Porque nada começa e nada acaba para quem caminha se o caminho segue o mapa das revelações. Andar é viver, ensinam os manuais da vida saudável. Então o que fazer das grandes urgências do coração se nem sempre são dores clínicas, e se da sua alegria e da sua dor também nascem lírios?

Um dia, estou certo Senhor Redator, os sonhos inventarão um reinado e um rei muito bom e muito pobre. E lá todos esses sonhos chegarão como caminhantes cansados e felizes. Fatigados não do caminho, mas do desejo. E como numa fábula do bem, serão amigos do rei e dele farão o rei mais feliz do mundo. E a todos ensinarão a grande lição da caminhada. Aquele ir-se como um rio, ternamente, para viver no mar. Porque tudo acaba. Tudo. Até o destino. Menos o caminho. Quando é preciso viver sem precisar chegar.

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