No
Brasil já foram identificadas cerca de 3.000 comunidades quilombolas. Destas,
mais de 1.826 são certificadas pela Fundação Cultural Palmares (FCP), totalizando
cerca de 2,2 milhões de pessoas.
Os
exemplos de titulações concluídas devem-se à luta persistente dos movimentos em
favor dos direitos quilombolas do Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (Incra) – órgão da esfera federal, competente pela delimitação e
titulação das terras ocupadas pelos remanescentes de quilombos.
A
autodefinição de uma comunidade quilombola está diretamente ligada com a
relação que esse grupo étnico possui com a terra, território, ancestralidade,
tradições e práticas culturais. A importância da preservação desse patrimônio
assegura a potencialização de sua capacidade autônoma, seu desenvolvimento
econômico, etnodesenvolvimento e a garantia de seus direitos territoriais.
Ex-consultor-geral
da Advocacia-Geral da União e atual consultor legislativo do Senado Federal,
Ronaldo Jorge Araujo Vieira Júnior afirma que o Decreto nº 4.887/2003 é
fundamental para consolidar o direito constitucionalmente assegurado aos
remanescentes das comunidades de quilombos. E destaca que o documento é o
“coração” da política pública de identificação e de demarcação de terras
quilombolas.
A
proteção dessas comunidades por meio da titulação de suas terras significa,
ainda, a preservação da identidade nacional e também de importantes áreas de
proteção ambiental, uma vez que são as comunidades tradicionais (indígenas e
quilombolas) as maiores cuidadoras desses espaços.
Nesta
terceira entrevista do especial Decreto 4887/2003 – constitucionalidade da
regulamentação quilombola, o mestre em Direito e Estado avalia a legislação em
defesa da população negra no país e reforça a importância da Constituição de
1988 por assegurar e entender que a terra, coletivamente apropriada, é a base
da cultura desses povos tradicionais bem como espaços de preservação ambiental.
Confira:
Ascom/FCP
– No Brasil, os direitos quilombolas partem da certificação por autodefinição e
da titulação do território até que se aprove o contrário. Diante disso, como
avalia a importância do Decreto 4887/2003?
Vieira
Jr - O Decreto nº 4.887/2003 é fundamental para dar concretude ao direito
constitucionalmente assegurado aos remanescentes das comunidades de quilombos,
visto que regulamenta o disposto no art. 68 do Ato das Disposição
Constitucionais Transitórias (ADCT). A regra da autodefinição, alvo de inúmeras
críticas, não é absoluta, submete-se à avaliação do Governo Federal, por
intermédio da Fundação Palmares e é adequada com os tratados internacionais
firmados pelo Brasil e que já integram o ordenamento jurídico nacional. O Decreto
é o “coração” da política pública de identificação e de demarcação de terras
aos remanescentes de quilombos, elaborado ainda no primeiro ano do Governo
Lula, com o apoio de amplos segmentos da sociedade brasileira.
Ascom/FCP
– O Decreto observa as normas da Convenção 169 da Organização Internacional do
Trabalho (OIT). Isto não o torna suficiente para cumprir o que é previsto pela
Constituição?
Vieira
Jr - Mais do que isto. O Governo Federal, desde o primeiro Governo do
ex-Presidente Lula, adota as ferramentas disponíveis da interpretação
constitucional para considerar que o art. 68 do ADCT é auto-aplicável e,
portanto, não há que se falar na necessidade de lei para regulamentar o
dispositivo constitucional. Basta que o Decreto fixe, como fixa, regras objetivas
para identificação e demarcação de terras. Essa, inclusive, é a tese central
defendida pelo Governo Federal na ação direta de inconstitucionalidade proposta
pelo Democratas em face do Decreto 4.887/2003.
Ascom/FCP
– A Proposta de Emenda Constitucional 215 propõe que passe a ser competência
exclusiva do Congresso Nacional a aprovação da demarcação de “terras
tradicionalmente ocupadas pelos indígenas” (artigo 49, inciso XVIII, acrescido)
e quilombolas. Política e juridicamente, o que isso significa?
Vieira
Jr - A PEC 215, de 2000, transfere do Poder Executivo para o Congresso Nacional
a competência para aprovar a demarcação das terras indígenas e, também,
ratificar as terras já homologadas. Registre-se que a possibilidade de revisão
das terras já demarcadas caiu com o parecer aprovado na Comissão de
Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. A primeira impropriedade de
natureza jurídico-constitucional, a meu ver, é atribuir competência
eminentemente administrativa ao Poder Legislativo, o que definitivamente
transborda de suas atribuições e viola o princípio da independência e harmonia
dos Poderes. Politicamente, a proposta de alteração da Constituição Federal
objetiva criar novas instâncias de deliberação sobre a matéria com o intuito de
retardar ao máximo e, em algumas circunstâncias, até inviabilizar os
procedimentos de demarcação de terras indígenas e quilombolas. Já existe
legislação de referência suficiente sobre o tema e as balizas já estão
colocadas, no caso das terras indígenas, pelo Supremo Tribunal Federal com o
julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. A PEC nº 161, de 2007, foi
apensada e trata da limitação ao exercício dos direitos dos quilombolas.
Trata-se, enfim, de obstáculo à regularização fundiária no país e à garantia do
exercício de direitos constitucionalmente assegurados aos índios e aos
quilombolas.
Ascom/FCP
– E quanto à consideração feita pelo Partido Democratas (DEM) de que somente
após a aprovação legislativa é que as terras ocupadas por esses grupos sejam
inalienáveis e indisponíveis (artigo 231, parágrafo 4º, alterado), como avalia?
Vieira
Jr - Essa interpretação somente será possível se aprovada a PEC 215, de 2000, e
as outras que lhe estão apensadas. Todo o procedimento de demarcação somente
estaria concluído com a aprovação do Congresso Nacional, mas o processo
legislativo para aprovação de emenda à Constituição é bastante longo e
complexo.
Ascom/FCP
– O que pensa dos critérios e procedimentos vigentes para a demarcação de áreas
indígenas e quilombolas?
Vieira
Jr - São critérios adequados, à luz da Constituição Federal e dos tratados
internacionais firmados e incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro.
Ressalto que o Governo Federal, ainda em 2008, preocupou-se em eliminar
distorções existentes na sistemática em vigor à época. Então, por determinação
do então Presidente Lula, a Advocacia-Geral da União coordenou um grupo de
trabalho composto por inúmeros órgãos e entidades federais que possuíam
interface com a questão e promoveu significativas alterações nas instruções
normativas do INCRA e da Fundação Palmares. Estas interfaces detalhavam o
procedimento de identificação e demarcação das terras das comunidades
remanescentes de quilombos para tornar o procedimento mais objetivo e mais
sustentável juridicamente. O coroamento de todo esse processo se deu com a
consulta pública a representantes de trezentas comunidades remanescentes de
quilombos, primeira realizada no Brasil com base na Convenção nº 169, da OIT.
Nela, a despeito de todas as divergências e críticas, caminhou-se para uma
maior racionalidade de todo o procedimento sem que fosse necessário alterar uma
vírgula sequer do Decreto nº 4.887, de 2003.
Ascom/FCP
– Quanto ao julgamento do Decreto 4887/2003 a ser realizado pelo Supremo
Tribunal Federal no dia 18 de abril, existe previsão quanto ao que pode ser
decidido?
Vieira
Jr - O que posso afirmar é que o esforço de aprimoramento da legislação, de
modo a torná-la mais objetiva e razoável, levado a cabo ainda em 2008 pelo
Governo Federal é uma sinalização de que alterações e melhoramentos são sempre
possíveis sem que, contudo, a essência dos direitos fundamentais seja afetada.
Ascom/FCP
– Outras considerações que gostaria de fazer?
Vieira
Jr - Quero parabenizar o esforço de mobilização que vem sendo feito pelo
Governo Federal, em especial pela Fundação Cultural Palmares, em defesa do
Decreto nº 4.887, de 2003, por acreditar que a sistemática ali posta transforma
em realidade a intenção do constituinte de 1988 de assegurar a propriedade da
terra aos remanescentes das comunidades de quilombos, e por entender que a
terra, coletivamente apropriada, é a base da cultura desses povos tradicionais.
O Brasil lhes deve respeito.
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