Um livro, Senhor Redator, não precisa ser raro nem
caro para ser desejado. Mesmo em terras de uma aldeia assim como esta,
derramada entre
um rio, um mar e uns morros. Sei por experiência toda minha, pessoal e íntima.
Nunca desejei nada que estivesse fora do alcance das mãos, mas nunca proibi os
olhos de vê-los e admirá-los. Livros há aqui, alguns milhares, nestas salas, se
devo ser sincero. Cada um com sua pequena história. Mas, em nenhum deles, deixo
segredos que não possam ser revelados.
De alma parnasiana e incapaz de entender os mestres
e doutores do saber universitário, um dia descobri que a única vocação era ser
leitor dos velhos críticos impressionistas. Faz um bom tempo, mais de três
décadas. E entre eles, uma paixão já à época proibida pelas patrulhas das
vanguardas modernas com suas intolerâncias contra a tradição: Agripino Grieco.
Lia quase escondido. Sem nem ao menos dizer seu nome ou citar seus livros. Eram
inúteis como leitura e imprestáveis como fruição literária.
O sonho, sem nenhum valor de venda ou de troca, era
tê-lo completo na estante. E fui juntando aqui e ali, nas pequenas e esparsas
viagens que fazia a Recife, o lugar possível para minhas aventuras de juntador
de livros velhos. Saia à meia noite, num ônibus-leito, para ganhar
tempo e amanhecer a sexta-feira na estação rodoviária do Recife que naquele
tempo era perto dos armazéns do porto antigo. Um café, lá mesmo, e já ia
andando. A cidade acordava com o cheiro dos abacaxis no mercado São José.
O destino
era fácil. Caminhava até a ponte Buarque de Macedo, aquela antiga, de ferro,
que se estira de um lado a outro, atravessava e seguia em linha reta até a
Praça Maciel Pinheiro. Ali onde deságua como afluente do Capibaribe a velha Rua
da Matriz, esquina com o quarteirão do sobradinho onde morou Clarice Lispector
na sua chegada ao Brasil. Cedo, os sinos ainda tocavam, e da nave da matriz
rescendia o cheiro do incenso que vinha do altar na elevação do Santíssimo,
perfumando a rua.
É ali, ali mesmo, quase esquina com a praça, que
fica a Livraria Brandão com aquele aviso na placa de acrílico ao lado da pira
grega do saber, como uma marca: ‘Livros usados, raros e esgotados’.
Eurico Brandão ainda morava no Recife, não tinha a
filial de São Paulo, onde depois foi viver. Era com ele o torneio dos preços.
Dominava catálogos mais clássicos – Brasiliana, Documentos Brasileiros – as
edições raras do Recife, de Gilberto Freyre ao raríssimo Folclore Pernambucano
de Pereira
da Costa.
E tinha uma vantagem: não fechava na hora do almoço.
Era matar a fome ali por perto e voltar para a luta. Os olhos deslizando nos
dorsos dos volumes, os dedos puxando um ou outro num garimpo lento e prazeroso.
Qualquer dúvida maior de vencer era só deixar a decisão para o sábado pela
manhã. E logo depois fazer o trottoir da Rua da Roda, ali no centro. Os
sebistas numa pequena praça circular. Era lá o pequeno-grande reinado de
Melquisedec, livreiro experiente e abusado, contador de vantagens.
Foi numa viagem a Recife que descobri ser
verdadeira a lenda contada por Rubens Borba de Morais, o grande bibliófilo
brasileiro de que os livros esperam pelas mãos que os procuram. Um dia, em São
Paulo, encontrei as obras completas de Agripino Grieco em edições originais,
encadernadas em couro de porco, alguns volumes autografados. Encadernações de
época, douração a fogo, todos menos um que desapareceu antes de chegar ao
livreiro ou o dono anterior nunca conseguiu ter: ‘Anphoras’.
Os livros de Agripino estavam esquecidos, sem
procura, daí os preços comuns. E se ali não existia o ‘Anphoras’, assim mesmo,
com ph, paciência. Quando aparecesse, ficaria diferente dos outros, mas
colecionar livros usados tem dessas coisas. O ‘Anphoras’, Senhor Redator, tem
uma singularidade que não se pode esquecer: é um livro de poesia, sua estréia
em fevereiro de 1913, edição da Tipografia G. Moares & C. Naquele mesmo ano
que publicaria ‘Estátuas Mutiladas’, numa gráfica portuguesa.
Tudo indica, Senhor Redator, que o pequeno
‘Anphoras’, de noites estivais e elegíacas, acabou renegado pelo crítico culto,
áspero e exigente que depois seria Agripino Grieco. Um olhar temido que
escreveu dois livros contra Machado de Assis. Há quem suspeite que Agripino
destruía cada exemplar de ‘Anphoras’ que encontrava. Pode ser. É livro singelo,
pequeno, com pouco mais de 170 páginas, uma brochura de capa cartonada e
vermelha, e ornatos gráficos encimando algumas páginas internas. E só.
Um dia, caçando livros naquele salão da Livraria
Brandão, estreito e comprido, vi um exemplar de ‘Anphoras’ encadernado em couro
vermelho, dorso e cantoneiras, papel marmorado, capas originais preservadas e
autografado para Carlos de Laet. Na folha de rosto, em letras pretas e graúdas,
está escrito assim: ‘Ao eminente homem de letras Dr. Carlos de Laet,
homenageando seu alto espírito, offereço estas “Anphoras”. Rio, 18 de fevereiro
de 1913, Agripino Grieco’. Aquele ‘Anphoras’ esperava por mim.
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