terça-feira, 18 de setembro de 2012

Serejo: Pequena história de um livro

Por: Vicente Serejo

Um livro, Senhor Redator, não precisa ser raro nem caro para ser desejado. Mesmo em terras de uma aldeia assim como esta, derramada entre um rio, um mar e uns morros. Sei por experiência toda minha, pessoal e íntima. Nunca desejei nada que estivesse fora do alcance das mãos, mas nunca proibi os olhos de vê-los e admirá-los. Livros há aqui, alguns milhares, nestas salas, se devo ser sincero. Cada um com sua pequena história. Mas, em nenhum deles, deixo segredos que não possam ser revelados.

De alma parnasiana e incapaz de entender os mestres e doutores do saber universitário, um dia descobri que a única vocação era ser leitor dos velhos críticos impressionistas. Faz um bom tempo, mais de três décadas. E entre eles, uma paixão já à época proibida pelas patrulhas das vanguardas modernas com suas intolerâncias contra a tradição: Agripino Grieco. Lia quase escondido. Sem nem ao menos dizer seu nome ou citar seus livros. Eram inúteis como leitura e imprestáveis como fruição literária.

O sonho, sem nenhum valor de venda ou de troca, era tê-lo completo na estante. E fui juntando aqui e ali, nas pequenas e esparsas viagens que fazia a Recife, o lugar possível para minhas aventuras de juntador de livros velhos. Saia à meia noite, num ônibus-leito, para ganhar tempo e amanhecer a sexta-feira na estação rodoviária do Recife que naquele tempo era perto dos armazéns do porto antigo. Um café, lá mesmo, e já ia andando. A cidade acordava com o cheiro dos abacaxis no mercado São José.

O destino era fácil. Caminhava até a ponte Buarque de Macedo, aquela antiga, de ferro, que se estira de um lado a outro, atravessava e seguia em linha reta até a Praça Maciel Pinheiro. Ali onde deságua como afluente do Capibaribe a velha Rua da Matriz, esquina com o quarteirão do sobradinho onde morou Clarice Lispector na sua chegada ao Brasil. Cedo, os sinos ainda tocavam, e da nave da matriz rescendia o cheiro do incenso que vinha do altar na elevação do Santíssimo, perfumando a rua.

É ali, ali mesmo, quase esquina com a praça, que fica a Livraria Brandão com aquele aviso na placa de acrílico ao lado da pira grega do saber, como uma marca: ‘Livros usados, raros e esgotados’.

Eurico Brandão ainda morava no Recife, não tinha a filial de São Paulo, onde depois foi viver. Era com ele o torneio dos preços. Dominava catálogos mais clássicos – Brasiliana, Documentos Brasileiros – as edições raras do Recife, de Gilberto Freyre ao raríssimo Folclore Pernambucano de Pereira da Costa.

E tinha uma vantagem: não fechava na hora do almoço. Era matar a fome ali por perto e voltar para a luta. Os olhos deslizando nos dorsos dos volumes, os dedos puxando um ou outro num garimpo lento e prazeroso. Qualquer dúvida maior de vencer era só deixar a decisão para o sábado pela manhã. E logo depois fazer o trottoir da Rua da Roda, ali no centro. Os sebistas numa pequena praça circular. Era lá o pequeno-grande reinado de Melquisedec, livreiro experiente e abusado, contador de vantagens.

Foi numa viagem a Recife que descobri ser verdadeira a lenda contada por Rubens Borba de Morais, o grande bibliófilo brasileiro de que os livros esperam pelas mãos que os procuram. Um dia, em São Paulo, encontrei as obras completas de Agripino Grieco em edições originais, encadernadas em couro de porco, alguns volumes autografados. Encadernações de época, douração a fogo, todos menos um que desapareceu antes de chegar ao livreiro ou o dono anterior nunca conseguiu ter: ‘Anphoras’.

Os livros de Agripino estavam esquecidos, sem procura, daí os preços comuns. E se ali não existia o ‘Anphoras’, assim mesmo, com ph, paciência. Quando aparecesse, ficaria diferente dos outros, mas colecionar livros usados tem dessas coisas. O ‘Anphoras’, Senhor Redator, tem uma singularidade que não se pode esquecer: é um livro de poesia, sua estréia em fevereiro de 1913, edição da Tipografia G. Moares & C. Naquele mesmo ano que publicaria ‘Estátuas Mutiladas’, numa gráfica portuguesa.

Tudo indica, Senhor Redator, que o pequeno ‘Anphoras’, de noites estivais e elegíacas, acabou renegado pelo crítico culto, áspero e exigente que depois seria Agripino Grieco. Um olhar temido que escreveu dois livros contra Machado de Assis. Há quem suspeite que Agripino destruía cada exemplar de ‘Anphoras’ que encontrava. Pode ser. É livro singelo, pequeno, com pouco mais de 170 páginas, uma brochura de capa cartonada e vermelha, e ornatos gráficos encimando algumas páginas internas. E só.

Um dia, caçando livros naquele salão da Livraria Brandão, estreito e comprido, vi um exemplar de ‘Anphoras’ encadernado em couro vermelho, dorso e cantoneiras, papel marmorado, capas originais preservadas e autografado para Carlos de Laet. Na folha de rosto, em letras pretas e graúdas, está escrito assim: ‘Ao eminente homem de letras Dr. Carlos de Laet, homenageando seu alto espírito, offereço estas “Anphoras”. Rio, 18 de fevereiro de 1913, Agripino Grieco’. Aquele ‘Anphoras’ esperava por mim.

 

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