sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Homero Fonsêca: Literatura Fantástica

Homero Fonsêca:

no: www.interblogs.com.br/homerofonseca/ 

No Encontro de Literatura Fantástica, em Triunfo, conheci um jovem escritor, Haroudo Xavier, ao mediar a mesa de que ele participou ao lado do jornalista Roberto Beltrão.

Haroudão é fissurado por literatura fantástica e também por RPG (Role Playing Game ou "Jogo de Interpretação de Papéis", espécie de narrativa interativa reunindo vários jogadores que criam personagens num ambiente virtual, sob a direção de um “mestre” que define os rumos da história).

Segundo suas próprias palavras:

“Profissionalmente, já trabalhou com um pouco de tudo. De atendente de locadora a dono de empresa (Radar 9, de Webdesign).

Nos últimos anos tem se envolvido apenas com artes gráficas e tradução.
Faz o curso de Letras (Licenciatura em Inglês pela UFPE), mas já é seu terceiro curso universitário (não chegou a concluir História na UNICAP e Jornalismo na UFPE).
É sobretudo um contista. Tem um blogue (http://devoras.blogspot.com.br/) onde tenta (ou tentou) a proeza de escrever um conto por dia. Para se exercitar e pelo prazer de escrever.

Os contos no blog podem ser classificados em várias das vertentes do fantástico, da ficção científica ao horror e algo de fantasia, em alguns casos, na linha do fantástico todoroviano. Atualmente está envolvido com a publicação de uma coletânea de Contos Fantásticos pela UBE (que segue a linha todoroviana para definição do fantástico).
Fez uma das versões do design do Recife Assombrado (de Roberto Beltrão), além da capa da primeira edição da coletânea de contos de autores que contribuíram com o site.”


Retomo a palavra: se a memória não me prega uma peça, Haroudo dispôs-se a esse prodigioso esforço de escrever um conto por dia após o fim de um relacionamento. [Se não foi assim, passa a ser, pois é mais dramático, conforme Nelson Rodrigues com certeza sentenciaria.]
Mas o que quero dizer é o seguinte: pincei um dos seus contos e li-o durante nosso bate-papo. E, não tenho dúvida, de que se trata de um texto que, por sua alta qualidade, paira acima de gêneros. Não é literatura fantástica, nem horror, nem fantasia. É Literatura.

[Como o conto do Haroudo é melhor do que o meu, deixei propositalmente para publicá-lo depois.]


Apreciem.

Clarissa



Haroudo Xavier

Ela olhava para suas mãos com olhos arregalados.
O verde que brota, a esmeralda que a recobre, em folhas, cheirosas como orvalho.
Clarissa corre para o banheiro, gritando pela mãe enquanto se esfrega.
A mãe lhe socorre.
A menina tem seus braços vermelhos, em alguns pontos, quase sangram, esfregados que foram em desespero pleno, desenfreado medo.
Ela chora nos braços da mãe, que se banha em lágrimas, nas suas próprias, de ambas.
O medo da filha é enxurrada e banha seu coração que se aperta.
Vão ver o um médico a tarde.
Ele descarta qualquer problema. "Imaginação", ele diz, ao tom de diagnóstico.
No caminho de asfalto e fumaça, as mulheres voltam para o apartamento concreto.
Não há o que temer dentro da gaiola dourada de vidro e aço, de onde o mundo é formiga.
Mas a noite chega, o dia se apresenta, e Clarissa, de seus braços, folhas brotas.
São pequenas, mal as vê, mas vê e as sente.
Delicadas, verdes, cobrindo parte de seu braço.
Ela chora, mas se controla. Pensa na mãe, no médico.
Acorda a mãe e vão. O diagnóstico, muda. É um fungo. Um fungo "atípico", diz o médico.
Lhe passa remédios, lhe recomenda repouso. Um dos remédios, nisso, deve ajudar. Não diz o médico, mas a menina lê, na troca de olhares entre os adultos.
Vão para casa. A mãe, despreocupada.
- Vamos a casa de seu avô, no campo. Acho que te faria bem, não?
A menina não responde, só sente o arrepio.
Mas forte, no "fungo" que em outras partes do corpo.
Ela se assusta. O campo.
Clarissa sempre teve medo de mato. De noite ou de dia, no mato há coisas que picam, mordem, arranham, escondidas espreitam e as crianças comem.
E tinha medo do avô. O homem velho, alto, magro, sua pele era enrugada e cinza.
A voz rouca, que lhe abraçava e apertava como se a última vez fosse.
O avô nunca tinha lhe feito mal, mas não gostava dele, de seu aspecto, de seu cheiro.
Clarissa sonha essa noite. Se vê na casa do avô, no seu enorme quintal, que parece não ser quintal, e sim floresta, onde a casa é um apêndice.
Ela está na margem da mata, e tem medo.
Ela olha pra casa, chama a mãe.
A mãe surge no alpendre. Chama por ela, mas age como se não a visse.
"Estou aqui, mãe!", grita em sonho a menina, que é ela, Clarissa, a mesma que vê no espelho todo dia.
E a menina tem raízes, que se prendem fortes à terra.
Tenta correr para a mãe, assustada e chorosa.
E no aperreio, mal mexe os braços, coberto de casca e folhas.
Ela acorda, apavorada, olha os pés.
Deles, pequenas folhas escapam e os cobrem.
Ela grita pela mãe.

Os dias passam.
Clarissa, aflita, olha da sua casa a luz do sol mover-se. E assim conta as horas.
Ela não fala a mãe de seu medo.
De seus pesadelos.
Ela vê a luz e teme alimentar-se dela.
"Eu não sou árvore!", grita dentro de si e olha sua pele, esverdeando-se sem trégua.
Preocupada também com a mãe, a menina sofre em silêncio.
Se transforma na sombra densa de sua mudez, enquanto o remédio, exíguo fica sem efeito.
Voltam ao médico. Ele lhe passa cremes, um antibiótico.
E os dias passam, e ela pensa no tempo, que parece lhe mover descuidado para uma vontade de esverdá-la sem dó ou licença.
No campo.
E os dias passam.
E o dia chega.

Seu avô não é mais o mesmo.
A bengala que o sustenta é adereço novo.
Lhe empresta nobreza, mas entristece Clarissa.
"Se vovô fosse árvore e não eu, viveria mais", sussurra para suas pequenas folhas, em dupla esperança.
A primeira noite não lhe traz pesadelos.
Nem a segunda.
Na terceira, porém, ela se vê cercada.
As árvores que ela tem ignorado esses dias, trancada que ficara no quarto, vem lhe visitar.
As paredes não representam obstáculo.
A madeira da casa se dobra para receber as irmãs, vivas e frondosas.
Clarissa acorda assustada e ouve um barulho na janela.
Ela tem medo.
Observa as sombras e elas só se preenchem com mais horrores.
Desiste de apavorar-se e vi até a janela.
Quando abre, vê a árvore.
Um galho, fino e longo, bate constante contra janela quando esta se fecha.
Aberta, a árvore não incomoda Clarissa.
Pensa no sonho e decide, essa noite, dormir com a janela aberta.
Acorda banhada de sol.
E toma uma decisão.
Toma café da manhã com a mãe a avô e anuncia: "vou brincar".
A mãe sorri.
Clarissa sai aproveitando o sol e vai ter com árvores.
Ela as olha, desafiadora.
"Não tenho medo de vocês! Não tenho!", grita, longe da casa, já dentro da mata.
Não há resposta. Não audível.
Mas ela sente. O mundo se mexe.
Repentinamente assustada, febril, olha para suas folhas que crescem.
Pensa em correr, mas suas raízes, fincadas no solo úmido, enrodilham o mundo e suas pernas.
E se vê então, floresta.
Horror realizado, ela estremece.
E em mais um instante, só mais um, Clarissa, que escuta o a música que se forma apenas pelas árvores que cortam o vento, percebe.
Floresce.
E em profundo prazer de ser novo ser, desfalece.

O sono é sem sonhos.
Ela desperta menina.
A mãe acaricia sua testa. Lhe chama de "meu bem".
Ela toca a mão da mãe e seu rosto.
E nota, enfim, que suas folhas se foram.
Mas algo ficou. Fincou.
Algo verde.
Enraizado em si.
Verde.
E ela chora, feliz.
Sentindo, em suas lágrimas, o gosto do orvalho.

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