A
Associação Brasileira de Antropologia (ABA) dirigiu, durante a II Conferência
do Desenvolvimento (Code), em setembro de 2011, o eixo temático
“Desenvolvimento: Desafios e perspectivas antropológicas”. A colaboração da
entidade com o Ipea faz parte de um esforço mútuo para que o Instituto se abra
a temas e disciplinas que não integravam seu ideário inicial, voltado à
economia.
A
ABA, fundada em 1955, é a mais antiga das associações científicas existentes no
país, na área das ciências sociais. Ela ocupa, segundo sua página na internet,
“um papel de destaque na condução de questões relacionadas às políticas
públicas referentes à educação, à ação social e à defesa dos direitos humanos”.
A
seguir, os principais trechos do debate:
PAPEL
DOS ANTROPÓLOGOS Bela Feldman-Bianco – A ABA tem não apenas uma importância
científica, mas exerce um papel mediador entre Estado e movimentos sociais. A
antropologia se volta para vários temas. Especificamente sobre o
desenvolvimento, estamos criando um fórum temático com o objetivo de contribuir
para o debate e para a implementação de políticas públicas, que devem levar em
conta diferentes lógicas e saberes culturais.
Alfredo
Wagner – Estamos em uma década marcada pela emergência de novas identidades
sociais e pela emergência dos problemas que envolvem as reformas de vários
códigos, como o Florestal, de Mineração, Penal e de Processo Civil. Como os
antropólogos se inserem nisso? O que mobiliza o Estado a procurar os
antropólogos? A meu ver, as questões mais urgentes envolvem a posse de terras
indígenas e de terras de comunidades tradicionais, que suscitam algumas
questões. Qual o destino dessas terras, face aos grandes projetos de
desenvolvimento? Como se obtêm direitos e garantia de sua posse, quando temos
uma reestruturação formal do mercado fundiário e quando há o procedimento de se
entregar 67 milhões de hectares de terras públicas na Amazônia em dois anos a
empreendimentos privados? Há conflitos sociais emanados dessas decisões.
Estamos numa quadra histórica marcada por um grande processo de transformação,
apoiado num processo de reprimarização da economia. É um modelo voltado para
fora, que não respeita direitos territoriais de povos e comunidades
tradicionais. É preciso ver os efeitos das grandes obras – barragens, projetos
de hidrovias e outros – sobre essas populações. Os antropólogos podem
participar desses debates com propriedade e conhecimento.
Cornelia
Eckert – Os antropólogos estão sendo demandados na definição de políticas de
desenvolvimento também no meio urbano. Temos uma importante função de mediação
com as populações periféricas e não privilegiadas. A antropologia aos poucos
tem sido convidada a participar de fóruns interdisciplinares de projetos
sociais que atuam em conflitos sociais e problemas urbanos, como no caso de
remoções motivadas pelas obras da Copa, atuando em ONGs e em entidades que
discutem prevenção de desastres e catástrofes. No Rio Grande do Sul, por
exemplo, atuamos em grupos de defesa civil para mostrar a ausência de poder
público em relação às tragédias urbanas que têm acontecido. Nossa reivindicação
é de uma maior demanda de nossa especialidade na mediação de conflitos em
problemas socais.
TEORIA
E PRÁTICA Gustavo Lins Ribeiro – A agenda da antropologia é ampla. Uma coisa é
o debate teórico e metodológico e outra são suas interfaces com problemas
reais, políticos, sociais, econômicos e culturais. Não fosse a presença de uma
antropologia tão forte quanto a brasileira, os problemas decorrentes do avanço
econômico sobre populações tradicionais ou minorias étnicas seriam muito
maiores e essas questões manchariam o nome do Brasil mundo afora. A
antropologia não se preocupa apenas com o contexto local e imediato. Ela estuda
o desenvolvimento num grande espectro, com heterogeneidade de perspectivas e
abordagens.
Bela
Feldman-Bianco – O estudo dos deslocamentos e migrações das populações,
principalmente entre Estados nacionais, por exemplo, nos leva a pesquisar tanto
os receptores quanto os locais de origem dessas populações. Isso abrange o
exame de migrações do campo, da remoção de populações e suas causas políticas,
como as orientações neoliberais na Europa. Agrega- -se a isso a questão do
tráfico de pessoas. Nem toda a migração é tráfico, há uma tendência de se
criminalizar imigração como sendo tráfico. É preciso para isso que se examine
as características local, nacional e global.
AGENDA
AMPLIADA José Sergio Leite Lopes – A ABA tinha uma agenda inicial de defesa das
comunidades indígenas, que se estendeu a povos tradicionais. Isso se ampliou.
Hoje estudamos operários metalúrgicos, têxteis, químicos, trabalhadores da cana
etc. Também se trata de estudar a proletarização de grupos tradicionais, uma
consequência do capitalismo. O folclore e a cultura tradicional se
transformaram em defesa da cultura e proteção desse patrimônio imaterial.
Envolver a defesa desses grupos demanda termos uma concepção ampliada de
desenvolvimento. Houve uma ideia inicial baseada apenas no desenvolvimento
tecnológico e no fortalecimento nacional. Essas formulações tiveram um ponto de
apoio importante na Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), da ONU,
na década de 1950. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) dessa época
eram os 50 anos em 5, de Juscelino Kubitschek. Chega-se a 1963-1964 com o
desenvolvimento voltado à expansão do mercado interno, pela extensão universal
dos direitos do trabalho, pela reforma agrária etc. Por isso houve [o golpe de]
1964, porque se ampliou a ideia de desenvolvimento. Celso Furtado, o grande
teórico dessa matriz, foi cassado por causa disso. Na hora em que há uma
retomada do desenvolvimento é preciso aprender com os erros do passado. É
preciso ampliar o sentido do desenvolvimento desde o econômico ao cultural, ao
social e a outras áreas, para que os novos direitos que estão surgindo venham a
ser incorporados.
João
Pacheco de Oliveira – Se nosso país tem alguma consciência sobre sua
diversidade, certamente isso se deve aos antropólogos, a pessoas como Gilberto
Freire e Darcy Ribeiro, que mostraram que o Brasil não é branco, não é europeu,
tem raízes indígenas e negras. Tem raízes na escravidão e na colonização. O
reconhecimento das terras indígenas mostra que esses indivíduos não são
isolados. Eles só existem em comunidade e só terão sua cultura reconhecida
quando tiverem terra e recursos assinalados na Constituição de 1988. Os últimos
anos têm consagrado o Brasil como um país plural, diversificado, a partir da
base do interior. Isso se refletiu também na atribuição de direitos. Mas esses
direitos, ao mesmo tempo em que são reconhecidos, não se traduzem em práticas
concretas.
O
MEIO AMBIENTE Andrea Zhouri – Nosso trabalho revela a existência de múltiplos
caminhos do desenvolvimento. Há uma preocupação com as condições de trabalho
dos antropólogos nas áreas de políticas públicas, especialmente nas áreas de
licenciamento ambiental. A portaria interministerial 419, de outubro de 2011,
reduz bastante os prazos para pronunciamentos técnicos em relação às grandes
obras. São prazos que não condizem com um trabalho antropológico mais sério.
Trinta dias para um profissional emitir um parecer sobre um grande projeto, com
equipes exíguas na Funai, no Incra e no Ibama torna muito difícil a realização
de um trabalho sério. Há muitos projetos sendo realizados ao mesmo tempo. Só na
Amazônia temos definidas sessenta barragens hidrelétricas! Gostaríamos, nesse
quadro de mudanças nos marcos regulatórios dos códigos, de pensar em
alternativas para um diálogo para que esses esforços governamentais tenham
efeito prático.
AS
NARRATIVAS DO DESENVOLVIMENTO Bela Feldman-Bianco – Existe o perigo de um
nacionalismo metodológico, a partir do Estado. No final dos anos 1980, começo
da década seguinte, falava-se muito no colapso do Estado-nação. O Estado não
acabou, mas houve uma reformulação. Há um aumento de transnacionalismo e, ao
mesmo tempo, um aumento de localismo. No Brasil, hoje, é o Estado que ganha
força novamente, pois o neoliberalismo deu no que deu. Há várias narrativas,
que competem entre si. É preciso ver qual será a dominante.
Cornelia
Eckert – Há um processo de ideologização das metanarrativas. Há uma
discursividade da imprensa sobre, por exemplo, segurança. Um dos papéis da
antropologia é desnaturalizar essas metanarrativas, que tendem a construir uma
cultura generalizante do medo, do risco, do milagre econômico atual, sem estar
atento aos perigos que isso pode provocar nas relações sociais, como a
discriminação e o preconceito.
HISTORICIDADE
E TRABALHO João Pacheco de Oliveira – Há várias camadas históricas. Em
determinados momentos, a tecnologia expulsa os trabalhadores industriais do
emprego. É o caso, por exemplo, da mineração, uma atividade altamente
insalubre, agravada pela urgência da produção. No entanto, quando essa atividade
cessa, as pessoas que nela trabalharam, que formaram uma certa cultura,
lamentam. Os operários passam a ser um grupo condenado, e são vistos como parte
de uma tecnologia do passado, com gestos repetitivos, que em certa época eram a
esperança de um futuro e uma utopia. É preciso estudar isso.
Bela
Feldman-Bianco – Hoje temos antropólogos fazendo pesquisas de cooperação
internacional, na China, em Timor Leste e em outras partes, estudando
deslocamentos, migrações e uma infinidade de temáticas. A antropologia
brasileira está muito consolidada. Recebemos cada vez mais alunos do exterior,
dos EUA, da América Latina e África. Há uma circulação de ideias através da
globalização do conhecimento.
Alfredo
Wagner – A antropologia permite entender a globalização como uma política e não
como um processo natural. Trata-se de um mecanismo de poder do Estado. A figura
do Estado aparece muitas vezes como redentora. A antropologia pode estabelecer
diálogos com os instrumentos de poder e com a vida social. É preciso atentar
para o fato de que a dimensão econômica não pode ser separada da dimensão
identitária, colocada em nossa vida social.
RISCOS
DA PROFISSÃO João Pacheco de Oliveira – A antropologia é uma profissão
extremamente arriscada. Os profissionais, ao fazerem seus trabalhos, são
constantemente ameaçados pela ação de vários poderes. Isso porque encontramos
sempre as dissonâncias entre as leis e as práticas. Muitas vezes somos vítimas
de campanhas de difamação. É fundamental que os planejadores não pensem que
este país, na Amazônia, por exemplo, é feito de vazios. Há populações com
cálculos, estratégias e planos de ocupação. Elas precisam ser incorporadas nos
processos de desenvolvimento. Temos de ter em conta que as ações dos órgãos
governamentais são desmobilizadoras. Essas populações são frequentemente
vítimas de violência e interesses de madeireiros, mineradores, contrabandistas
e de narcotraficantes. Elas querem alternativas de construção de país.
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