Ontem Tonia Carrero fez 90 anos. Uma das
raras divas absolutas do teatro e cinema brasileiros. Tivemos e temos poucas
divas. Pessoas de beleza, talento e acima de tudo personalidade, que atravessam
décadas e permanecem amadas. Meu primeiro choque, porque foi um choque, diante
de Tonia foi na tela em Quando a Noite Acaba (1950), filme de Fernando de
Barros, um dos homens responsáveis pelo seu lançamento no teatro, ao produzir a
peça Um Deus Dormiu Lá em Casa, releitura da tragédia grega por Guilherme
Figueiredo, dirigida por Silveira Sampaio em 1949. Quando se leem hoje as
críticas da época, percebe-se o impacto que Tonia causou. No teatro, uma única
mulher competia com ela em beleza, Maria Della Costa, viva e firme aos 86 anos.
Dois anos mais tarde viria Eliane Lage, estrela da Vera Cruz, bela, elegante,
enigmática. Viva, mora em Pirenópolis, com 84 anos, lúcida, divertida.
Ainda em Araraquara, veio a Tonia de
Tico-tico no Fubá, (1952), biografia romanceada de Zequinha de Abreu.
Superprodução da Vera Cruz, produzida também por Fernando de Barros e dirigida
por Adolfo Celi, que seria o segundo marido de Tonia. Ela era Branca, a
amazona, de pernas de fora em cima de um cavalo, fazendo acrobacias no
picadeiro. Provocou a paixão em Zequinha de Abreu (Anselmo Duarte), que para
ela compôs a valsa de mesmo nome. Uma triste valsa. Para nós, araraquarenses,
havia um quê a mais (como se dizia), porque Branca, que na vida real tinha sido
filha do chefe de estação (o filme abusa da licença poética) de Santa Rita do
Passa Quatro, segundo o diretor de teatro Wallace Leal, mudou-se para
Araraquara na velhice. Morava na esquina da Rua Oito com a Avenida Sete de
Setembro.
Uma noite, terminada a peça, os atores
jantaram no Clube Araraquarense, espaireceram na varanda e em seguida Tonia e
Paulo Autran se juntaram a alguns jovens atores de um grupo de teatro local,
chamado Teca, e eu. Naquele momento, senti-me parte do filme Os Boas-Vidas (I
Vitelloni), de Fellini, em que jovens provincianos (caipiras) se deslumbram com
a visita de um famoso comediante e o conduzem pela cidade. No caso de Fellini,
sempre mordaz, era um ator decadente que se achava o máximo.
Mas Tonia era a maior e mais bela atriz
brasileira e justificava nosso enfeitiçamento. Um táxi conseguido a duras penas
(era tarde da noite) nos levou à casa de Branca, aquela que Tonia tinha vivido
no filme. Ela olhou a casa por um momento, saiu do táxi, pediu para ficar
sozinha. Pensamos e infelizmente não fizemos, não acordamos Branca, que ainda
vivia ali e teria àquela altura cerca de 70 anos. Depois, circulamos e, enfim,
por sugestão de Inah Bittencourt, fomos ao outro lado da cidade, à padaria
Perez, da família de Inah. A irmã de Inah, Inaiá, foi amiga íntima de Ruth
Cardoso. Quando chegamos, quase uma da manhã, demos sorte. Pegamos a primeira
fornada de pães mais do que quentes, quentíssimos. Pelando, como se dizia.
Paulo Autran apanhou um, passou à Tonia, pegou outro para ele, ambos envolvidos
pelo cheiro. Inah trouxe manteiga fresca.
Aquela cena ficou congelada em minha memória.
Permanece clara, assim como o cheiro do pãozinho francês quente e da manteiga
que se derretia e escorria pelas mãos de Tonia, lambuzava sua boca, seu queixo.
Ela sorria e comia lentamente, com o prazer explodindo nos olhos claros. Aquilo
era pura excitação.
Poucos sabem que na esquina da Avenida
Barroso com a Rua Dois, em Araraquara, numa madrugada dos anos 50, houve um
momento de magia. Tonia Carrero, que acaba de fazer 90 anos, e Paulo Autran,
comeram pães frescos e se deliciaram. Para mim, a história dos reinos, das
cidades e das pessoas é formada por pequenos episódios, insignificantes, mas
que permanecem na memória de um e de outro. Há sempre uma testemunha de nossos
pequenos gestos, frases, apenas não sabemos. Se eu tivesse sido convidado para
os 90 anos da atriz, no Rio de Janeiro, teria levado uma cestinha de pães,
manteiga e contaria essa história. A mulher que fascinava no palco (foram 54
peças) fascinava na intimidade, ao comer sensual e elegantemente, pão com
manteiga, na madrugada de uma vila interiorana. Diva até no prosaico cotidiano.
A padaria não existe mais, foi demolida. O teatro foi por terra. A casa de
Branca ainda está lá, quase intacta.
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