sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Serejo: Ninho de talentos

Por: Vicente Serejo

O centenário da imprensa no Brasil – 1808-1908 – foi marcado por uma grande exposição comemorativa de âmbito nacional, no Rio, mas o evento acabaria despertando a consciência da importância do registro de jornais e periódicos para a história política, econômica e social. Um estímulo aos historiadores para que voltassem seu olhar às publicações provincianas tão esquecidas, fontes legítimas e indispensáveis, pois contam as histórias e as estórias de cada lugar.

Naquele ano, 1908, dois estados nordestinos se destacaram e empreenderam uma presença além do caráter eventual: Pernambuco e Rio Grande do Norte. Os pernambucanos fizeram surgir, nos prelos da Typographia do Jornal do Recife os Annaes da Imprensa Periódica, do grande Alfredo de Carvalho, cobrindo o período 1821-1908, ele que um ano antes, em 1907, já publicara nos seus Estudos Pernambucanos, um longo estudo com mais de setenta páginas sobre o jornalismo literário em Pernambuco.  Aqui, a tarefa coube ao desembargador Luiz Fernandes ao publicar A Imprensa Periódica no Rio Grande do Norte, cobrindo o período 1832 a 1908, nascida nas oficinas de A República, o jornal de Pedro Velho.

Foram tão importantes as duas publicações, agora mais que centenárias, que hoje integram os catálogos de edições raras e inauguradoras do século vinte, levantamentos indispensáveis ao pesquisador da história da tipografia no Brasil. É fácil vê-las no catálogo da exposição História da Tipografia no Brasil, com quase trezentas páginas, realizada em 1979 no Museu de Arte de São Paulo, com os fac-símiles das folhas de rosto e a longa introdução de Cláudia Marino Sameraro.

A Imprensa Periódica no Rio Grande do Norte, do desembargador Luiz Fernandes – nome que Câmara Cascudo escolheu como patrono de sua cadeira ao ser fundada a Academia Norte-Rio-Grandense de Letras – mereceu uma segunda edição em 1998, da Fundação José Augusto, com introdução de Anchieta Fernandes e prefácio circunstanciado e ensaístico do historiador Cláudio Galvão. Sua força semeadora acabaria estimulando o escritor Manoel Rodrigues de Melo a realizar a grande pesquisa que se estendeu praticamente ao longo de toda sua vida – o Dicionário da Imprensa no Rio Grande do Norte, também publicada pela Fundação José Augusto, correspondendo ao período seguinte ao de Luiz Fernandes – 1909-1987, data-limite de sua publicação pioneira.

É incontestável a importância das edições fac-similares. No Brasil, tornou possível o acesso às fontes de estudo e compreensão da estética das vanguardas modernistas dos anos vinte, ao reproduzir Klaxon, Revista de Antropofagia, Terra Roxa, Verde, Clã e Estética, para citar as mais importantes. No Rio Grande do Norte, bastaria citar a iniciativa da Coleção Mossoroense e do Sebo Vermelho quando devolveram os raríssimos seis volumes de Oásis aos olhos contemporâneos. A pequena revista do Grêmio Literário Le Monde Marche, que circulou entre 1894 e 1904, com o requinte de um afrancesamento que espantou aquela Natal pachorrenta, há mais de um século, como se inventasse aqui, e tão longe de Paris, uma belle époque a embalar o romantismo dos nossos poetas e prosadores.

Quem consultar o Dicionário da Imprensa no Rio Grande do Norte 1909-1987, de Manoel Rodrigues de Melo, vai constatar o grande movimento de jornais e revistas literárias que circularam no Estado a partir do final do século dezenove, prolongando-se ao longo da primeira metade do século vinte. São publicações quase sempre de vida efêmera, algumas mais longevas, mas registrando o movimento das idéias sociais e políticas, dos gostos e desgostos, sem os quais seria hoje impossível escrever a história humana no seu rico cotidiano, com seus hábitos, costumes e tradições.

É o caso deste Ninho das Letras que o editor Abimael Silva teve a sensibilidade de buscar nas gavetas da saudade de Genibaldo Barros. Como guardião de uma jóia de família, rara como um livro único de um velho mosteiro, a ele foi preciso pedir o nihil obstat quominus imprimatur, como no antigo Direito Canônico. Para só então submeter suas páginas amareladas ao olho eletrônico das lentes modernas que reproduzem com perfeição cada marca dos anos, das décadas, do tempo, da vida.

O Ninho das Letras, seguido de O Porvir, é o maior e mais detalhado verbete do dicionário de Manoel Rodrigues de Melo no conjunto de quatorze títulos que documentam a imprensa periódica em Currais Novos na primeira metade do século vinte.  Circulou dez vezes, numerados de um a dez, reunindo algumas vezes dois números numa mesma edição, refletindo os períodos de dificuldades de sobrevivência econômica ao longo do tempo de vida – novembro de 1925 a janeiro de 1927, quando encerrou a circulação com a edição especial em homenagem ao presidente Washington Luís.

Vi, nos olhos de Genibaldo Barros, a emoção com que contou a história daquele pequeno volume da coleção de Ninho das Letras, numa encadernação amarelada pelos anos e amarrotada pelo manuseio, capas cartonadas e cantoneiras dilaceradas, mas ainda guardando nas suas chagas a dor de um tempo imenso de vida. Ali está a marca silenciosa, mas eloqüente, da afeição de Tristão Barros pelo filho, quando timbra sua assinatura de posse naquele livro antigo. Ele escreve: ‘É de Tristão Barros’. Logo abaixo, fixa a data – ‘C. Novos, 7 de novembro de 1927′. Mas, em seguida, risca novembro e acrescenta ‘dezembro’. No silêncio de um gesto de amor, como um sinal de bem-querer, pois esta é a data do aniversário de Genibaldo, seu único filho, a quem o destino negou as grandes emoções de vê-lo médico, secretário de estado da saúde, vice-governador, conselheiro do Tribunal de Contas e reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

O primeiro jornal a espantar os olhos de Currais Novos foi O Progresso, em 1906, há mais de um século. Só em 17 de maio de 1913 circula O Batel que sobrevive até 1918, ao longo de 163 edições. Pelo levantamento de Rodrigues de Melo, além de Ninho das Letras surgem vários títulos entre jornais e revistas naquela Currais Novos da primeira metade do século vinte – Galvanópolis, A Gandaia, O Jornalzinho, A Juventude, O Progresso, O Nego, Leão Curraisnovense, O Porvir, A Quinzena, O São João, O Seridoense, Tribuna Estudantil e Voz do Seridó.

Ninho das Letras não nasce para ser mais uma pequena revista de vida efêmera, a filtrar o humor ou diluir os caprichos de um pequeno grupo de intelectuais. Sua inquietação tinha a força da expressão mais larga. De não apenas registrar o pensamento social, político, econômico e cultural da cidade, mas divulgar as suas idéias propulsoras. Seu objetivo, na forma e no conteúdo, foi registrar a vida da cidade e da região Seridó, e abrigar nas suas páginas os poetas e prosadores de projeção no Estado, repercutindo junto aos leitores de Currais Novos uma vida intelectual ativa, usinando novas idéias. E o objetivo se revela logo nas primeiras linhas do seu programa editorial que abre a edição de lançamento, em novembro de l925, assinado pelo seu diretor, padre Pedro Paulino, numa advertência feita de antevisão e desassombro diante dos efeitos que a revista viesse a causar:

Vai dar o que fazer ao público ledor e inteligente o aparecimento desta modesta “Ninho das Letras” em plena zona sertanista, onde o termômetro intelectual, ao que se avalia, vem marcando muitos graus abaixo de zero.

 E logo a seguir, antevendo o dar de ombros diante de uma revista de idéias novas e livres:

Queiram ou não queiram, gostem ou não gostem, vai ter a “Ninho das Letras” o mesmo natalício da Carta Magna que rege os surtos democráticos de nossa querida Pátria, porque, antes de tudo, a nossa revista deve ser genuinamente nacionalista.

O texto do programa é seguido de um editorial sobre o 15 de novembro, assinado por Gilberto Pinheiro e ilustrado pela sisudez heráldica do Brasão da República. Na página seguinte, uma foto oficial do governador José Augusto Bezerra de Medeiros, homenagem ao seridoense, saudado como um estadista que assumiu o poder para servir ao Rio Grande do Norte.

As preocupações intelectuais do Ninho das Letras estão bem sinalizadas ao longo de todas as edições. Nas citações de nomes da grande literatura, como Oscar Wilde, ou na forte presença dos nossos poetas e prosadores mais consagrados, como Segundo Wanderley e Jorge Fernandes. Este vai merecer na edição conjunta dos números 8 e 9, junho-julho de 1926, a transcrição do seu belo e moderno Poema das Serras, de construção ousada, onde aeroplanicamente voa o carcará …

As veleidades literárias dos seus diretores encontram lugar nas suas páginas com poemas de Thomaz Salustino e Vivaldo Pereira nos seus arabescos parnasianos. Mas o Ninho também abriga as visões modernas do médico Mariano Coelho com artigos sobre as questões sanitárias, a amamentação materna e a nutrição das mães e das crianças. Há notas forenses, a transcrição do discurso de Vivaldo Pereira, pai do depois governador Cortez Pereira, quando da morte do coronel José Bezerra, da Aba da Serra, o último patriarca dos grandes troncos do povoamento de Currais Novos e do Seridó; a íntegra do seu discurso sobre a Confederação Católica do Brasil, criada em 1922 pelo cardeal Sebastião Leme; e um pequeno ensaio literário de Abílio Cézar – O Poema dos Tristes – sobre o Horto, o livro de Auta de Souza, num texto-homenagem ao irmão Henrique Castriciano.

É nas páginas desse ninho de inquietos intelectuais provincianos que vai se projetar a figura de Tristão Barros. Farmacêutico formado em 1923, no Recife, quando foi o orador da turma, antecipando ali suas inclinações literárias. Seu estilo ágil mostra nos seus Rabiscos não apenas o leitor atento, mas o bom condutor de idéias no ofício de manejar as palavras, com sua visão aguçada, vazada num bom humor que usa como forma de untar seu texto com a sutileza da persuasão. Um bom exemplo é a sua pequena crônica, uma leitura de Os três cegos, livro de Mendes Martins. Bom observador, compara a cegueira do cego com a cegueira do ignorante e num requinte irônico de distinção, atira certeiro:

O cego é um eterno encarcerado. O ignorante é um cego também, um prisioneiro, então. Ele enxerga, porém não vê e é melhor ser cego de nascença do que nascer enxergando e morrer sem ver nada.

Moderno para seu tempo de quase cem anos, abre espaço para a poesia e a prosa das senhoras e das moças de Currais Novos, como os poemas de Sinhá Coelho e Olívia Mello, assim como assume, corajosamente, a estranha beleza da poesia de Jorge Fernandes com seu pobre cão de patas calosas ladrando para a solidão das serras.

Oitenta e sete anos depois, o sonho do editor Abimael Silva e a saudade de Genibaldo Barros sopram vida neste Ninho das Letras. E dele voam, outra vez, agora num milagre de transcendência, os pássaros que estavam pousados no sono de quase um século de silêncio e afeição.

Natal, junho de 2012, quando ardem as fogueiras de São João.
Vicente Serejo

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