O
centenário da imprensa no Brasil – 1808-1908 – foi marcado por uma grande
exposição comemorativa de âmbito nacional, no Rio, mas o evento acabaria
despertando a consciência da importância do registro de jornais e periódicos
para a história política, econômica e social. Um estímulo aos historiadores
para que voltassem seu olhar às publicações provincianas tão esquecidas, fontes
legítimas e indispensáveis, pois contam as histórias e as estórias de cada
lugar.
Naquele
ano, 1908, dois estados nordestinos se destacaram e empreenderam uma presença
além do caráter eventual: Pernambuco e Rio Grande do Norte. Os pernambucanos
fizeram surgir, nos prelos da Typographia do Jornal do Recife os Annaes da
Imprensa Periódica, do grande Alfredo de Carvalho, cobrindo o período
1821-1908, ele que um ano antes, em 1907, já publicara nos seus Estudos
Pernambucanos, um longo estudo com mais de setenta páginas sobre o jornalismo
literário em Pernambuco. Aqui, a tarefa
coube ao desembargador Luiz Fernandes ao publicar A Imprensa Periódica no Rio
Grande do Norte, cobrindo o período 1832 a 1908, nascida nas oficinas de A
República, o jornal de Pedro Velho.
Foram
tão importantes as duas publicações, agora mais que centenárias, que hoje
integram os catálogos de edições raras e inauguradoras do século vinte,
levantamentos indispensáveis ao pesquisador da história da tipografia no
Brasil. É fácil vê-las no catálogo da exposição História da Tipografia no Brasil,
com quase trezentas páginas, realizada em 1979 no Museu de Arte de São Paulo,
com os fac-símiles das folhas de rosto e a longa introdução de Cláudia Marino
Sameraro.
A
Imprensa Periódica no Rio Grande do Norte, do desembargador Luiz Fernandes –
nome que Câmara Cascudo escolheu como patrono de sua cadeira ao ser fundada a
Academia Norte-Rio-Grandense de Letras – mereceu uma segunda edição em 1998, da
Fundação José Augusto, com introdução de Anchieta Fernandes e prefácio
circunstanciado e ensaístico do historiador Cláudio Galvão. Sua força semeadora
acabaria estimulando o escritor Manoel Rodrigues de Melo a realizar a grande
pesquisa que se estendeu praticamente ao longo de toda sua vida – o Dicionário
da Imprensa no Rio Grande do Norte, também publicada pela Fundação José
Augusto, correspondendo ao período seguinte ao de Luiz Fernandes – 1909-1987,
data-limite de sua publicação pioneira.
É
incontestável a importância das edições fac-similares. No Brasil, tornou
possível o acesso às fontes de estudo e compreensão da estética das vanguardas
modernistas dos anos vinte, ao reproduzir Klaxon, Revista de Antropofagia,
Terra Roxa, Verde, Clã e Estética, para citar as mais importantes. No Rio
Grande do Norte, bastaria citar a iniciativa da Coleção Mossoroense e do Sebo
Vermelho quando devolveram os raríssimos seis volumes de Oásis aos olhos
contemporâneos. A pequena revista do Grêmio Literário Le Monde Marche, que
circulou entre 1894 e 1904, com o requinte de um afrancesamento que espantou
aquela Natal pachorrenta, há mais de um século, como se inventasse aqui, e tão
longe de Paris, uma belle époque a embalar o romantismo dos nossos poetas e
prosadores.
Quem
consultar o Dicionário da Imprensa no Rio Grande do Norte 1909-1987, de Manoel
Rodrigues de Melo, vai constatar o grande movimento de jornais e revistas
literárias que circularam no Estado a partir do final do século dezenove,
prolongando-se ao longo da primeira metade do século vinte. São publicações
quase sempre de vida efêmera, algumas mais longevas, mas registrando o
movimento das idéias sociais e políticas, dos gostos e desgostos, sem os quais
seria hoje impossível escrever a história humana no seu rico cotidiano, com
seus hábitos, costumes e tradições.
É
o caso deste Ninho das Letras que o editor Abimael Silva teve a sensibilidade
de buscar nas gavetas da saudade de Genibaldo Barros. Como guardião de uma jóia
de família, rara como um livro único de um velho mosteiro, a ele foi preciso
pedir o nihil obstat quominus imprimatur, como no antigo Direito Canônico. Para
só então submeter suas páginas amareladas ao olho eletrônico das lentes
modernas que reproduzem com perfeição cada marca dos anos, das décadas, do
tempo, da vida.
O
Ninho das Letras, seguido de O Porvir, é o maior e mais detalhado verbete do dicionário
de Manoel Rodrigues de Melo no conjunto de quatorze títulos que documentam a
imprensa periódica em Currais Novos na primeira metade do século vinte. Circulou dez vezes, numerados de um a dez,
reunindo algumas vezes dois números numa mesma edição, refletindo os períodos
de dificuldades de sobrevivência econômica ao longo do tempo de vida – novembro
de 1925 a janeiro de 1927, quando encerrou a circulação com a edição especial
em homenagem ao presidente Washington Luís.
Vi,
nos olhos de Genibaldo Barros, a emoção com que contou a história daquele
pequeno volume da coleção de Ninho das Letras, numa encadernação amarelada
pelos anos e amarrotada pelo manuseio, capas cartonadas e cantoneiras
dilaceradas, mas ainda guardando nas suas chagas a dor de um tempo imenso de
vida. Ali está a marca silenciosa, mas eloqüente, da afeição de Tristão Barros
pelo filho, quando timbra sua assinatura de posse naquele livro antigo. Ele
escreve: ‘É de Tristão Barros’. Logo abaixo, fixa a data – ‘C. Novos, 7 de
novembro de 1927′. Mas, em seguida, risca novembro e acrescenta ‘dezembro’. No
silêncio de um gesto de amor, como um sinal de bem-querer, pois esta é a data
do aniversário de Genibaldo, seu único filho, a quem o destino negou as grandes
emoções de vê-lo médico, secretário de estado da saúde, vice-governador,
conselheiro do Tribunal de Contas e reitor da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte.
O
primeiro jornal a espantar os olhos de Currais Novos foi O Progresso, em 1906,
há mais de um século. Só em 17 de maio de 1913 circula O Batel que sobrevive
até 1918, ao longo de 163 edições. Pelo levantamento de Rodrigues de Melo, além
de Ninho das Letras surgem vários títulos entre jornais e revistas naquela
Currais Novos da primeira metade do século vinte – Galvanópolis, A Gandaia, O
Jornalzinho, A Juventude, O Progresso, O Nego, Leão Curraisnovense, O Porvir, A
Quinzena, O São João, O Seridoense, Tribuna Estudantil e Voz do Seridó.
Ninho
das Letras não nasce para ser mais uma pequena revista de vida efêmera, a filtrar
o humor ou diluir os caprichos de um pequeno grupo de intelectuais. Sua
inquietação tinha a força da expressão mais larga. De não apenas registrar o
pensamento social, político, econômico e cultural da cidade, mas divulgar as
suas idéias propulsoras. Seu objetivo, na forma e no conteúdo, foi registrar a
vida da cidade e da região Seridó, e abrigar nas suas páginas os poetas e
prosadores de projeção no Estado, repercutindo junto aos leitores de Currais
Novos uma vida intelectual ativa, usinando novas idéias. E o objetivo se revela
logo nas primeiras linhas do seu programa editorial que abre a edição de
lançamento, em novembro de l925, assinado pelo seu diretor, padre Pedro
Paulino, numa advertência feita de antevisão e desassombro diante dos efeitos
que a revista viesse a causar:
Vai
dar o que fazer ao público ledor e inteligente o aparecimento desta modesta
“Ninho das Letras” em plena zona sertanista, onde o termômetro intelectual, ao
que se avalia, vem marcando muitos graus abaixo de zero.
E logo a seguir, antevendo o dar de ombros
diante de uma revista de idéias novas e livres:
Queiram
ou não queiram, gostem ou não gostem, vai ter a “Ninho das Letras” o mesmo
natalício da Carta Magna que rege os surtos democráticos de nossa querida
Pátria, porque, antes de tudo, a nossa revista deve ser genuinamente
nacionalista.
O
texto do programa é seguido de um editorial sobre o 15 de novembro, assinado
por Gilberto Pinheiro e ilustrado pela sisudez heráldica do Brasão da
República. Na página seguinte, uma foto oficial do governador José Augusto
Bezerra de Medeiros, homenagem ao seridoense, saudado como um estadista que
assumiu o poder para servir ao Rio Grande do Norte.
As
preocupações intelectuais do Ninho das Letras estão bem sinalizadas ao longo de
todas as edições. Nas citações de nomes da grande literatura, como Oscar Wilde,
ou na forte presença dos nossos poetas e prosadores mais consagrados, como
Segundo Wanderley e Jorge Fernandes. Este vai merecer na edição conjunta dos
números 8 e 9, junho-julho de 1926, a transcrição do seu belo e moderno Poema
das Serras, de construção ousada, onde aeroplanicamente voa o carcará …
As
veleidades literárias dos seus diretores encontram lugar nas suas páginas com
poemas de Thomaz Salustino e Vivaldo Pereira nos seus arabescos parnasianos.
Mas o Ninho também abriga as visões modernas do médico Mariano Coelho com
artigos sobre as questões sanitárias, a amamentação materna e a nutrição das
mães e das crianças. Há notas forenses, a transcrição do discurso de Vivaldo
Pereira, pai do depois governador Cortez Pereira, quando da morte do coronel
José Bezerra, da Aba da Serra, o último patriarca dos grandes troncos do
povoamento de Currais Novos e do Seridó; a íntegra do seu discurso sobre a
Confederação Católica do Brasil, criada em 1922 pelo cardeal Sebastião Leme; e
um pequeno ensaio literário de Abílio Cézar – O Poema dos Tristes – sobre o
Horto, o livro de Auta de Souza, num texto-homenagem ao irmão Henrique
Castriciano.
É
nas páginas desse ninho de inquietos intelectuais provincianos que vai se
projetar a figura de Tristão Barros. Farmacêutico formado em 1923, no Recife,
quando foi o orador da turma, antecipando ali suas inclinações literárias. Seu
estilo ágil mostra nos seus Rabiscos não apenas o leitor atento, mas o bom
condutor de idéias no ofício de manejar as palavras, com sua visão aguçada,
vazada num bom humor que usa como forma de untar seu texto com a sutileza da
persuasão. Um bom exemplo é a sua pequena crônica, uma leitura de Os três
cegos, livro de Mendes Martins. Bom observador, compara a cegueira do cego com
a cegueira do ignorante e num requinte irônico de distinção, atira certeiro:
O
cego é um eterno encarcerado. O ignorante é um cego também, um prisioneiro,
então. Ele enxerga, porém não vê e é melhor ser cego de nascença do que nascer
enxergando e morrer sem ver nada.
Moderno
para seu tempo de quase cem anos, abre espaço para a poesia e a prosa das
senhoras e das moças de Currais Novos, como os poemas de Sinhá Coelho e Olívia
Mello, assim como assume, corajosamente, a estranha beleza da poesia de Jorge
Fernandes com seu pobre cão de patas calosas ladrando para a solidão das
serras.
Oitenta
e sete anos depois, o sonho do editor Abimael Silva e a saudade de Genibaldo
Barros sopram vida neste Ninho das Letras. E dele voam, outra vez, agora num
milagre de transcendência, os pássaros que estavam pousados no sono de quase um
século de silêncio e afeição.
Natal,
junho de 2012, quando ardem as fogueiras de São João.
Vicente Serejo
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