sábado, 15 de setembro de 2012

Histórias mal-assombradas nos altos de Triunfo

por Homero Fonseca

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O infatigável (e além disso dono de uma mente sempre em ebulição) Wellington de Melo tem tirado leite de pedra à frente da diretoria de Literatura da Secretaria de Cultura (pronto: quebrei a cangalha mental pernambucana que impede elogiar gente viva).

Digo isso porque quase sem verbas – afinal a literatura é a prima pobre das artes – vem sacudindo poeira e tirando as teias de aranha em seu caminho, para criar ações como o 1º Festival Internacional de Poesia do Recife e o 1º CliSertão – Congresso de Leitura e Literatura do Sertão, em Petrolina, numa parceria com a UPE – Universidade de Pernambuco.


Mais recentemente o poeta aprontou mais uma: o Encontro de Literatura Fantástica em Triunfo, Sertão do Pajeú.


E o camarada teve o requinte de escolher a dedo a locação desse encontro: a Casa Grande das Almas, sede de antiga fazenda, nos altos da alta Triunfo, que o juiz aposentado Assis Timóteo de Lima, herdeiro (neto) do patriarca João Timóteo de Lima, mantém intacta, com suas paredes recobertas de fotos antigas e móveis e aparelhos incrivelmente conservados como um gramofone (que ainda toca baixinho) e um telefone daqueles de parede com manivela (conectado à linha telefônica, sim). Além das histórias de fantasmas que cercam a antiga propriedade, um cenário composto por simulacros de jazigos assinala o ossuário da família, nos fundos do vasto terreno, dando um aspecto lúgubre ao ambiente.

Convidado para participar de uma das mesas, piquei-me para Triunfo, ao lado de Iracema, Joca Souza Leão, Roberta Alcoforado e Jairo Lima.
O encontro rolou durante a tarde-noite do dia 27 de julho passado,
começando com uma abordagem teórica sobre literatura fantástica, pelos professores André de Sena, Rúbia Lóssio e Neilton Lima. Verdadeira aula.


Em seguida, conversa conduzida por mim com dois escritores ligados ao tema: o contista Haroudo Xavier e o jornalista Roberto Beltrão.

A noite já caía, quando fez-se intervalo para o jantar, retornando-se então para uma sessão de contação de histórias no cenário encantado, em que Roberto Beltrão contou algumas das histórias de um Recife assombrado colhidas por ele e o ator João Ricardo Oliveira interpretou um conto que escrevi especialmente para a ocasião. [João Ricardo no dia seguinte apresentaria pela primeira vez na rua a peça Roliúde, exatamente em frente ao recém-reinaugurado Cine Teatro Guarani, com grande receptividade do público.]

Se à tarde a plateia não fora tão numerosa, na hora do mal-assombro apareceu um monte de gente, inclusive crianças (lembro eu próprio quando menino me grudava com os irmãos ao pé do rádio para ouvir com grande volúpia A Hora do Além, arrepiados e tremendo de medo).

E aqui vai o conto interpretado pelo ator carioca:

O mistério da moça de branco


Homero Fonseca

A história que vou contar se passou aqui.

Exatamente aqui nessa Casa Grande das Almas, do finado alferes João Timóteo de Lima.

Todos daqui sabem que, por situar-se metade em território pernambucano e metade em solo paraibano, essa mansão serviu de refúgio ao próprio Lampião. Aqui ele se sentia seguro. Se chegavam as volantes paraibanas, ele ia para o lado pernambucano da casa; e vice-versa. Por isso, quando levou um tiro numa perna, num combate com os “macacos”, foi aqui que o Capitão Virgulino Ferreira se tratou e convalesceu.
Bem, essa é uma história sabida e consabida.

Mas o que venho contar hoje não é nenhuma gesta de cangaço.

É um caso de beleza e mistério acontecido ainda no finzinho do século 19, quando o alferes era vivo, assim como meu bisavô, Durval de Albuquerque Melo, à época no vigor dos seus vinte anos.

A crônica familiar, transmitida de geração a geração, conta que toda a família foi convidada para um grande baile promovido pelo velho Timóteo, em comemoração ao retorno de um de seus filhos, Arsênio, que acabara de se formar em Direito em Coimbra.

Durval conhecia o recém-formado bacharel, de quem chegara a ser companheiro de noitadas juvenis no Recife, antes da partida dele para Portugal. Foi, portanto, com alegria que veio para o memorável baile, sem saber que protagonizaria um acontecimento extraordinário, de repercussões trágicas em sua vida.

Este casarão refulgia com dezenas de lampiões de gás e candelabros com centenas de velas, num clarão perceptível muitas léguas ao redor. O cheiro dos jasmineiros em flor adoçava a noite tépida. O som das valsas e polcas executadas pela orquestra ouvia-se a grande distância.

Os convidados chegavam nos seus cavalos, em comitivas alegres e numerosas. Eram recebidos com muita fidalguia pelos donos da casa. À hora aprazada, quando todos já haviam comparecido, começou o baile. Havia fartura de comes-e-bebes e um ambiente jubiloso acolhia os convidados. Durval dirigiu-se ao salão principal e, depois de cumprimentar vários dos convivas e conversar algum tempo com o amigo Arsênio Timóteo, Durval centrou sua atenção nas moças. A mais fina flor das famílias sertanejas estava ali representada. Ele passeou os olhos pelo conjunto, fazendo um aceno com a cabeça para algumas conhecidas. Foi quando a viu resplandecente num vestido branco de organdi. Sem dúvida, era a mais bela da festa: sua tez de alfenim contrastava com os negros cabelos escorridos e a face delicada era ensombrecida por um olhar melancólico que em nada se fixava. Durval ficou paralisado de emoção diante da beleza da moça. Por um tempo imensurável, não despregou os olhos da bela desconhecida. Que estranhamente não conversava com ninguém e nem tinha sido tirada para dançar por qualquer rapaz..

Finalmente Durval tomou coragem e se dirigiu a ela, convidando-a a dançar. A moça olhou-o intensamente com seus olhos tristes e deixou-se conduzir levemente para o salão das danças. Rodopiaram o resto da noite formando um lindo par. Durval estava tão apaixonado que era como se não houvesse mais ninguém no baile, só ele e a dama de branco. Ele segurava com firmeza sua pequenina mão e seus olhos não se desgrudavam um só instante. Nem sequer falavam nada, só dançavam, sentindo o calor e o perfume um do outro.

Quando terminou o baile, já alta madrugada, Durval acompanhou a moça até essa varanda onde nós estamos e perguntou-lhe se podia acompanhá-la até sua casa. Ela apenas fez que sim com a cabeça e o rapaz rápido foi buscar seu cavalo na estrebaria, voltou montado, ergueu-a até a garupa do alazão e foram trotando em direção a Triunfo. Na noite escura, o clarão da Casa Grande foi ficando cada vez mais para trás. A moça enlaçava Durval delicadamente pela cintura e, no silêncio dominante, ele somente ouvia, arrebatado, o ecoar dos cascos do cavalo no chão de pedrinhas e a respiração compassada dela. Depois, ele diria que aquela tinha sido a noite mais bela e mais misteriosa de sua vida.

Já perto da cidade, nas imediações do cemitério, a moça pediu para apear. Durval estranhou o pedido, mas ficou esperando, montado. A bela dobrou a esquina e seguiu como quem ia em direção ao portão do cemitério, saindo de suas vistas. O rapaz então pensou na hipótese de que ela devia estar de brincadeira, para saber se ele era um cavaleiro realmente corajoso, e sorriu com esse pensamento. Ficou ali, sem ouvir nenhum ruído, a não ser, de vez em quando, o resfolegar inquieto do cavalo. Como ela demorasse um pouco, desmontou e puxando o animal pela rédea dobrou a esquina e aproximou-se do portão do campo santo. O portão estava trancado por ferrolhos e ele não ouvira qualquer barulho de passos ou ranger de dobradiças. Durval vasculhou as proximidades, sem resultado. Angustiado, pulou o muro do cemitério e percorreu as trilhas entre as cruzes e as poucas catacumbas. Nem sinal da donzela.


Desolado, um solitário cavaleiro voltou para cá e não contou nada a ninguém.


No dia seguinte, sutilmente sondou um e outro, mas ninguém parece tê-la visto no baile, nem mesmo quando dançou um longo tempo com ele. No final da manhã, quando se preparava para voltar para a fazenda da família, resolveu se abrir com seu amigo Arsênio Timóteo.

Este, ao invés de desacreditar ou até mesmo ridicularizar o amigo por essa história tão bizarra, como Durval esperava, dirigiu-se até uma casinhola que havia nos fundos da herdade. Era ali que morava o preto Honorato, antigo escravo da família, tido na conta de pessoa sábia e muito afeita ao mundo dos espíritos. Na realidade, Arsênio, em menino, ouvira Honorato relatar algo acerca de uma dama de branco.


Com o coração aos pulos, Durval acompanhou o amigo e ouviu o preto velho narrar que de vez em quando um rapaz encontrava essa dita moça num baile, dançavam, namoravam, e quando ele ia levá-la em casa ela desaparecia em frente ao cemitério. Explicou que era a alma de uma donzela que tinha morrido há mais de 50 anos, de desgosto por ter sido abandonada pelo noivo na porta da igreja. Parece que ela voltava nos bailes pra ver se reencontrava o noivo fugitivo.

Imaginem o susto e a tristeza do rapaz enamorado ao escutar tal história.

Mas o caso não termina aqui.

Passaram-se anos, ele foi morar no Recife, estabeleceu-se no comércio, conheceu minha bisavó, casaram.


Um dia, já se passavam mais de 20 anos daquela noite misteriosa, minha bisavó encontrou nas coisas do marido um anel de prata, com um pequenino brilhante, com a inscrição no lado interno: A.M.O.R. – XX-V-MDCCCXLVIII.


Ciumenta, pressionou Durval a se explicar sobre a joia, farejando alguma traição conjugal. Ele ficou tão surpreso com o achado quanto a esposa e sua perplexidade foi tão sincera que a convenceu da sua inocência.

Mas Durval ficou com aquilo martelando na cabeça: como diabos aquele anel havia ido parar nas suas coisas? Uma noite, não aguentando o peso da interrogação, pegou a joia e pôs-se a fumar na varanda de casa, tentando resolver a charada, levantando as hipóteses possíveis para o seu aparecimento entre seus pertences. Ficou rodando o pequenino objeto entre seus dedos, quando teve o estalo: uma joia assim tão delicada somente poderia caber num dedo igualmente delicado. E as mãos mais delicadas que ele jamais tinha tocado eram... as da moça de branco daquele baile tão distante no tempo! Então ele lembrou que, ao apear do cavalo, amparada por suas mãos firmes, a moça deixara escapar o anel por dentre seus dedos. Durval o segurou e, enquanto aguardava que ela voltasse, guardou-o na algibeira. Depois do desenlace assombroso do episódio, já em casa, na fazenda do pai, jogou-o numa caixinha onde costumava colocar pequenos objetos. Como ele esqueceu esse detalhe tão impressionante, ninguém soube dizer. Mas o fato é que, talvez chocado com a transformação da amada num fantasma, ele tenha apagado muitos detalhes da memória.


Entretanto, intrigado com as inscrições, procurou um amigo, dono da Joalharia Krause, que a herdara do avô, e que poderia dizer-lhe algo sobre o inusitado achado. Levou-lhe o anel, contou a história, e Guilherme – era o nome do amigo – segurando-o com uma mão e coçando a cabeça com a outra, depois de uma razoavelmente longa hesitação, pareceu lembrar-se de algo.

– Meu caro Durval – disse ele, por fim – lembro de ouvir uma história do meu pai, que a ouviu do pai dele, sobre uma moça abandonada à porta da igreja, lá para as bandas do Sertão, em meados do século passado. Foi um caso muito célebre, que muita gente acompanhou pelo noticiário da imprensa. Meu avô parece que ficou muito impressionado. Vamos ver...

Correu para uma velha escrivaninha, onde abriu com uma chave um escaninho, de lá retirando vários papeis. Ficou a folheá-los, até que gritou: “Eureca! Aqui está notícia!” E estendeu a Durval um recorte amarelado de jornal, uma edição do Diario de Pernambuco, 15 de maio de 1849. Lá estava a notícia de que uma jovem de boa família sertaneja, Amália Maria de Oliveira Ramos, havia se suicidado no dia 5 do mesmo mês, por haver sido abandonada pelo amado, com quem noivara , exatamente há um ano atrás. Honorato falara em morte por desgosto, mas tal pormenor não tinha qualquer importância diante do impacto do relato jornalístico.


Estarrecido, Durval leu e releu a nota várias vezes, pálido como um defunto.

Guilherme, sem perceber o estado de choque dele, vibrava com a elucidação do mistério. Tudo se encaixava: as iniciais do nome da moça e a data do noivado. Mostrava-se muito espantado com o fato de o anel aparecer nas mãos do amigo, mas dele não obteve qualquer explicação. Até porque o próprio Durval não conseguia atinar com o fato de, sendo a bela moça um espectro, um ser imaterial, como podia portar uma peça feita de prata e brilhante.

Meu bisavô saiu da joalharia transtornado, rodando sem parar o pequeno objeto entre seus grossos dedos, e tão imerso estava em seus tempestuosos pensamentos, que não ouviu o ranger inútil dos freios do bonde sobre os trilhos.

 

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