sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Serejo: Calamidade calamitosa

Por: Vicente Serejo

Numa sociedade exigente no trato da coisa pública, Senhor Redator, e de instituições imunes ao fascínio do poder, o estado de calamidade não seria nunca como tem sido nesses quase trinta dias da vigência do decreto que reconheceu ser desastrosa a situação da saúde. O estranho começa quando se constata que faltam médico, água e gás nos postos, como se tivéssemos retornado a antes do Sistema Único de Saúde quando os doentes municipais, estaduais e federais, como numa escala de direitos.

Se há um mérito na concepção do SUS – a sua prática é desastrosa – é ter eliminado a divisão de direitos diante do sistema público de saúde. Mas, a velha divisão de mandos só gerou desmandos e acabou subvertendo a idéia original. Hoje, quem depende de postos de saúde acaba sendo a escória da escória, o substrato dos desvalidos, párias abandonados, filhos perversos da exclusão. É que o governo e a prefeitura não somam, como se não fossem a própria representação do Estado como ente público.

A quem apelar, se as instituições civis, as sentinelas da sociedade, confundem o apoio com a perda de distância crítica e se deixam cair na malha de signatários diante de um noticiário que revela em informações, declarações e imagens, a mesma grave realidade? Não há calamidade. Nunca houve. O que há – falta isenção para reconhecer – é uma má gestão crônica que perdura há duas décadas, mas essa verdade causa incômodos aos aliados de hoje que ontem foram adversários dos mais ferrenhos.

O plano de emergência, suspensas como estão todas as exigências de certame licitatório, até hoje deixa faltar carne na despensa, álcool na farmácia e médico de plantão? Pior: registrar o absurdo só irrita aos poderosos e as instituições, quando é este, exatamente este, o papel do jornalismo. Quem responde pela falta de álcool nas farmácias e carne nas despensas hospitalares, como foi denunciado pela tevê, ao vivo? E aquelas macas nos corredores depois de tantos leitos anunciados? São truques?

Fizeram muito bem as instituições representativas – os conselhos de medicina e de saúde – quando reagiram ao fascínio da jactância. Não aceitaram ser signatários passivos do velho escapismo de pré-dividir a responsabilidade como forma de diluir um dever que é dos governos municipal e estadual. Ficaram contra a uma tomada de posição forte? Não. Ficaram contra o espetáculo que trinta dias depois nada mudou. Mesmo que para alguns o remorso não seja sequer um detalhe incômodo.

Tomara que as desculpas não venham embrulhadas no papel celofane das leis e seus arranjos retóricos. Aqueles que não nascem do talento e do destemor diante da verdade, mas calam quando não são cúmplices conveniência, corporativismo ou coleguismo. A sociedade precisa dos quem não temem gritar. De instituições livres e independentes. É delas que espera o grito que não nasce para ferir ninguém, mas com a força moral capaz de estilhaçar as vidraças dos gabinetes e dos salões nobres.

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