Numa sociedade exigente no
trato da coisa pública, Senhor Redator, e de instituições imunes ao fascínio do
poder, o estado de calamidade não seria nunca como tem sido nesses quase trinta
dias da vigência do decreto que reconheceu ser desastrosa a situação da saúde.
O estranho começa quando se constata que faltam médico, água e gás nos postos,
como se tivéssemos retornado a antes do Sistema Único
de Saúde quando os doentes municipais, estaduais e federais, como numa escala
de direitos.
Se há um mérito na
concepção do SUS – a sua prática é desastrosa – é ter eliminado a divisão de
direitos diante do sistema público de saúde. Mas, a velha divisão de mandos só
gerou desmandos e acabou subvertendo a idéia original. Hoje, quem depende de
postos de saúde acaba sendo a escória da escória, o substrato dos desvalidos,
párias abandonados, filhos perversos da exclusão. É que o governo e a
prefeitura não somam, como se não fossem a própria representação
do Estado como ente público.
A quem apelar, se as
instituições civis, as sentinelas da sociedade, confundem o apoio com a perda
de distância crítica e se deixam cair na malha de signatários diante de um
noticiário que revela em informações,
declarações e imagens, a mesma grave realidade? Não há calamidade. Nunca houve.
O que há – falta isenção para reconhecer – é uma má gestão crônica que perdura
há duas décadas, mas essa verdade causa incômodos aos aliados de hoje que ontem
foram adversários dos mais ferrenhos.
O plano de emergência,
suspensas como estão todas as exigências de certame licitatório, até hoje deixa
faltar carne na despensa, álcool na farmácia e médico de plantão? Pior:
registrar o absurdo só irrita aos poderosos e as instituições, quando é este,
exatamente este, o papel do jornalismo. Quem responde pela falta de álcool nas
farmácias e carne nas despensas hospitalares, como foi denunciado pela tevê, ao
vivo? E aquelas macas nos corredores depois de tantos leitos anunciados? São
truques?
Fizeram muito bem as
instituições representativas – os conselhos de medicina e de saúde – quando
reagiram ao fascínio da jactância. Não aceitaram ser signatários passivos do
velho escapismo de pré-dividir a responsabilidade como forma de diluir um dever
que é dos governos municipal e estadual. Ficaram contra a uma tomada de posição
forte? Não. Ficaram contra o espetáculo que trinta dias depois nada mudou.
Mesmo que para alguns o remorso não seja sequer um detalhe incômodo.
Tomara que as desculpas não
venham embrulhadas no papel celofane das leis e seus arranjos retóricos.
Aqueles que não nascem do talento e do destemor diante da verdade, mas calam
quando não são cúmplices conveniência, corporativismo ou coleguismo. A
sociedade precisa dos quem não temem gritar. De instituições livres e
independentes. É delas que espera o grito que não nasce para ferir ninguém, mas
com a força moral capaz de estilhaçar as vidraças dos gabinetes e dos salões
nobres.
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