O
sertão de Oswaldo Lamartine, desde A Caça nos Sertões do Seridó, seu livro de
estréia, em 1961, foi sempre erguido com a literariedade das coisas materiais e
ao mesmo tempo alegóricas. Um território épico e lírico ao mesmo tempo, marcado
pela dura realidade de um chão de espinhos e, ao mesmo tempo, forrado de
flores. É como se a vivência do etnógrafo e as lembranças do menino se
misturassem nos olhos do escritor, fazendo da narrativa a argamassa da invenção
e da reinvenção.
E
uma das narrativas mais exemplares dessa fusão que de um lado documenta e do
outro liberta a imaginação é exatamente este ensaio que merece uma nova edição,
agora autônoma, depois de ter sido parte integrante de ‘Sertões do Seridó’, a
reunião dos olhares oswaldolamartianos, editados pelo Senado Federal com
prefácio erudito e consagrador do professor Francisco das Chagas Pereira que
faz, certamente, a primeira tomada de posse acadêmica e ao mesmo tempo
literária da obra de Oswaldo.
Cuidadoso
no esmero e na exatidão da síntese, Oswaldo nada esquece quando documenta. Sabe
cumprir o belo aprendizado que reconheceu ter guardado de leituras e conversas
com Câmara Cascudo ainda quando ‘espiava, espiava e não via’ o sertão
monumental. E o homem feito no talhe do grande leitor descobre o outro sertão
que ia além, muito além daquelas serras da infância. E é este sertão que ele
ergue. Épico e lírico, entre pedras e páginas, silêncios e palavras, numa
pastoral de reencontros.
Quem
mergulha nas águas do seu açude, cristalinas de tão cheias de sol ou turvadas
das chuvas nas invernadas do sertão, vai descobrir que o açude grande, de
verdade, e o pequeno, invenção dos meninos, são feitos da mesma carga
emocional. Não é à toa que ele vai buscar numa quadrinha popular de José Lucas
de Barros a certidão, como um ferro de gado, para marcar o que precisa reservar
como posse e domínio:
Vendo
d’água a terra cheia
Eu sinto doce lembrança
Do meu tempo de criança,
Dos meus açudes de areia
Na
porteira deste seu ensaio que agora o Sebo Vermelho reedita, Oswaldo teve o
cuidado de demarcar o açude como um território dessa infância que reconstrói a
cada livro e que nasce do seu olhar de sertanejo cósmico e universal. O seu
açude não é apenas o lugar que os homens da civilização da seca inventaram, nas
gargantas das serras ou nos baixios, para que as águas fossem prisioneiras da
necessidade humana. É também, com as suas águas, um símbolo de vida, o lugar
bíblico da criação.
Eis
sua descrição na abertura do texto, antes dos aspectos históricos e técnicos,
estabelecendo a estética de uma cartografia alegórica e, por isso mesmo, livre
do apenas real.
‘Espia-se
a água se derramando, líquida e horizontal, pela terra adentro a se perder de
vista. As represas esgueiram-se em margens contorcidas e embastadas, onde
touceiras de capim de planta ou o mandante de hastes arroxeadas debruçam-se na
lodosa lama. O verde das vazantes emoldura o açude no cinzento dos chãos. Do
silêncio dos descampados vem o marulhar das marolas que morrem nos rasos.
Curimatãs em cardumes comem e vadeam nas águas beirinhas nas horas frias do
quebrar da barra ou ao morrer do dia. Nuvens de marrecas caem dos céus. Pato
verdadeiro, putrião e paturi grasnam em coral com o coaxar dos sapos que abraçados
se multiplicam em infindáveis desovas geométricas. Gritos de socó martelam
espaçadamente os silêncios. O mergulhão risca em rasante vôo o espelho líquido
das águas. Garças em branco-noivo fazem alvura na lama. É o arremedo, naqueles
mundos, do começo do mundo…’.
Este
é Oswaldo Lamartine.
Épico e lírico. Real e irreal. Verdadeiro e
alegórico.
Vicente Serejo
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