terça-feira, 18 de setembro de 2012

O escritor que vem do frio

Por Homero Fonseca (www.interblogs.com.br/homerofonseca/)

 In: Blogue de Roberto Almeida

Garanhuns tem vida literária para além do Festival de Inverno


Garanhuns é uma festa. Não me refiro especificamente ao FIG – o famoso Festival de Inverno, com sua feérica programação anual de shows com nomes consagrados da música popular. Pois o festival não é apenas isso. Tem artistas locais e boa música regional. Além de uma versão do Festival Virtuosi, do maestro Rafael Garcia e da pianista Ana Lúcia Altino. Tem oficinas. Tem teatro. E o que é melhor: tem literatura, essa prima pobre das artes atuais.


Sob a competente batuta do poeta Wellington de Melo, gerente de literatura da Fundarpe, o festival abre espaço para as letras. Em muito menor escala, é verdade. Mas abre espaço. Também os cachês de escritores e poetas, em comparação com os cantores de rádio famosos, é assim... ó! São distorções, que já expus cara a cara a Wellington. Claro que as leis do mercado ditam as regras. Mas o poder público existe para por rédeas neste sim que é o verdadeiro Moloch. Wellington tem feito a parte dele. Cabe nós, operários das letras, reivindicar mais respeito profissional. Mas eis que enveredei por um desvio.

Voltando à senda, no festival a literatura tem espaço. Em oficinas, palestras, mesas-redondas, feirinha de livros, Espaço da Palavra. Tem até poesia a delivery! Explico: a ação inusitada que é um grupo de poetas ficar à disposição do público, sendo acionado, por telefone, para ir às casas dos leitores, fazer recitais. E as histórias que eles e elas contam são lindas: famílias inteiras escutando com atenção, oferecendo cafezinho, interagindo, e, foi não foi, algum(a) poeta doméstico(a) se revelando no encontro. Maravilha!


O Sesc, que tem atuado nacionalmente com vigor na área literária, também promove encontros simultâneos, como o de que participei com o escritor e cineasta Wilson Freire, com mediação do jornalista Hugo Viana, sobre cinema e literatura.


O mais interessante é que, antes e depois da badalação do FIG, Garanhuns , sempre linda, sempre limpa, tem vida literária! Uma Academia de Letras, presidida pelo poeta João Marques. Uma pequena editora bem organizada, que começa a produzir livros de ficção e poesia de qualidade (de conteúdo e gráfica), a u-Carbureto. Escritores ativos, como os contistas Nivaldo Tenório e Antônio Aristóteles, poetas como, entre outros, o vigoroso Helder Heric. Discussões o ano inteiro, movidas por gente como a jovem professora Karina Calado e Marcilene Silva.


Enfim, Garanhuns é uma festa o ano inteiro.


Eu, que tenho uma relação afetiva com a cidade – ali servi o 71º Batalhão de Infantaria e concluí o curso clássico no Colégio Diocesano, em que a professora-sacerdotisa Luzinette Laporte pegou uma redação minha feita em classe e, de surpresa, publicou no jornal O Monitor – tenho grande prazer em reencontrar vez por outra essa turma amiga, da qual faz parte ainda a professora Dorvalina Vasconcelos, em cuja escola há um Ponto de Leitura Homero Fonseca – olha eu pintando para a posteridade!, – e jornalistas do quilate de Jodeval Duarte, Manuel Neto e Roberto Almeida.

Deixei por fim um registro importante. Nessa última visita, em julho passado, fui apresentado ao escritor Mário Rodrigues. Um cara de seus trinta e poucos anos, menção honrosa na edição nacional do Prêmio Sesc de Literatura 2010 com a coletânea de contos O Vendedor de Seriguelas. Ele me entregou um romance publicado ano passado pela referida u-Carbureto, A Curva Secreta da Linha Reta. Grata surpresa. Me deparo com um escritor no pleno domínio da escrita. O tema: um homem acerta contas consigo mesmo e com a vida. Está escrito nas orelhas do livro: “Artista plástico famoso, está acostumado a enfrentar reviravoltas. Antes, ignorante, pobre e desprezado pelas mulheres. Agora, culto, rico e endeusado por elas.” Tem cinco namoradas simultaneamente e acha que ama a todas igualmente. Mas a morte trágica de uma delas muda tudo. E ele parte para uma vingança. O final guarda uma estonteante surpresa para o leitor.

Grosso modo, essa temática umbilical não me sensibiliza. Mas essa busca de redenção por um personagem cínico transcorre num ambiente onde estão presentes os desmantelos e impasses do tempo presente, dos homens presentes, a vida em vertigem, a alma cativante das ruas, como diria João do Rio.

A estrutura narrativa repousa sobre uma carpintaria muito bem manejada. Idas e vindas no tempo. Deslocamentos no espaço. Somente o primeiro e o último encontro com as mulheres são narrados. Cabe ao leitor preencher as lacunas. Tudo isso com uma linguagem trabalhada, usando de forma surpreendente a norma culta e expressões populares, muitas vezes no mesmo parágrafo. Se num ou noutro trecho essa combinação soa esquisita, no conjunto o efeito é instigante, espantando para bem longe esse intruso coxo no texto literário que é o lugar comum e dando-lhe um frescor pouco encontrado hoje em dia. Se o elo entre a vida anterior do personagem (pobre anônimo) e seu estatus atual (artista famoso) é abrupto, quase um solavanco, e por isso um pouco inverossímel, isso não danifica a engenhosa arquitetura da narrativa. O resultado final é um dos melhores romances que li nos últimos anos. Pena que não tenha ainda sido descoberto para além dos horizontes floridos da Garanhuns de clima frio e povo acolhedor. Não tenho dúvida de que, se o deus da literatura é justo, Mário Rodrigues será descoberto.

Para vocês degustarem, vai um trecho do romance:


“Anoitecia devagar. Às vezes a vida tem desses prodígios, torna-se lerda. Um segundo tem a eternidade embutida nele. Quem já foi traído e flagrou o adultério – infinitos porquês forrozando entre as frontes latejantes –, quem já deixou escapar um título no campeonato de futebol em virtude de um pênalti infeliz – bambos joelhos esfolados amassando gramas indiferentes -, quem já perdeu um filho, e chorou diante do caixão aberto, ou lacrado – unhas piradas riscando o verniz da madeira insolente –, este sabe muito bem da lentidão temporal a que me refiro.”


Pra quem se interessar, o endereço da Editora u-Carbureto é: Rua Abílio Camilo Valença, 22 – Apartamento 02 – Garanhuns, PE – 55290 – 000.

 

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