A
Acta Diurna de Câmara Cascudo, publicada na edição de 14 de outubro de 1939, em
A República, demorou quinze anos, mas foi, até o final dos anos sessenta, o
único sol a brilhar, num adeus de admiração, sobre a figura intelectual de João
Batista de Vasconcellos Chaves, Dr. João Chaves. Aquele que em 1968 daria nome
à colônia penal de Natal, demolida há alguns anos, símbolo de lugar desumano,
conhecido como ‘Caldeirão do Diabo’. Destruída para sempre, apagou-se dali a
homenagem a um dos maiores criminalistas do Brasil do seu tempo.
João
Chaves nasceu no belo solar do Ferreiro Torto, em Macaíba, a 4 de outubro de
1875, e faleceu a 28 de abril de 1924, aos 49 anos. Viveu pouco, e muito cedo
acendeu sua chama de homem genial ao publicar, em 1912, aos 37 anos, o seu
‘Sciencia Penitenciária’, ainda grafado assim, longo tratado sobre um direito
novo, publicado pela Livraria Clássica de A. M. Teixeira & Cia, com prelos
instalados na Praça dos Restauradores, Porto, Portugal.
Antes,
já publicara uma memória da Faculdade Livre de Direito do Pará, onde viveu seus
primeiros anos de advogado e professor de Direito formado em Recife. Visitou
vários países europeus consultando bibliotecas e centros jurídicos e chegou a
anunciar no primeiro tomo mais dois volumes que completariam sua obra sobre a
ciência penitenciária: o primeiro sobre o tema da prevenção; o segundo todo
dedicado ao estudo da pena no âmbito militar.
Ciência
Penitenciária é um livro planejado e escrito com rigor técnico e bibliografia
erudita, de vários países, e distribuído ao longo de quase quatrocentas
páginas. Num apuro intelectual inegável, o autor divide a matéria em três
partes: Introdução, com oito capítulos e secções; Sistema Educativo, mais oito
capítulos e secções; e Sistema de Eliminação, esta com quatro capítulos, com
introdução e três visões: pena de morte, deportação e delegação.
Meticuloso
na organização do volume para garantir a acessibilidade a todos os trechos do
corpo da matéria, Ciência Penitenciária tem numeração geral de todos os 221
parágrafos, da introdução ao último trecho. Mas, ao mesmo tempo, cheio de
pudor, logo avisa no pequeno prefácio que escreve, antes da introdução: é livro
desajudado, sem nome consagrado que lhe apresente, e a crítica livre para não
ferir o pudor de fazer elogios como se fosse favor.
Sem
deixar se tocar pela pretensão, Chaves é claro naquilo a que seu livro se
destina, às mesas acadêmicas, mas informa que pode ser uma contribuição à ordem
legislativa, quando a nova ciência for tratada por legisladores. E proclama,
sem vaidade, que é apenas ‘um ensaio de propaganda das idéias penitenciárias’.
Se fosse apenas isso, não seria um pioneirismo de valor filosófico a erguer um
novo conceito de ciência, olhar pioneiro no Direito Brasileiro.
Embora
já tendo alguma paternidade naquela primeira década do século, a Ciência
Penitenciária, para Chaves, continuava a ser um tema em discussão até para ele
que já percorrera, ao longo de 1911 e 1912, vários países da Europa na busca de
conhecer o que havia de mais ousado no novo saber ainda tão obscuro nas suas
leis e postulados. Para ser a nova ciência consagrada por todos, de Sócrates a
Platão, de Howard a Bonavita e Mabillon.
Andando
pelas velhíssimas prisões de Milão e Amsterdã; o claustro dos conventos e as
celas dos antigos monastérios, sobre todas as formas de reclusão João Chaves
lançou seu olhar. Leu sobre a crença do Círculo Noturno, velha e obscura
sociedade filantrópica que imaginava ser capaz de ensinar aos condenados as
virtudes da alma; e estudou a teoria dos mestres italianos, para quem a pena é
a força que eleva a moral dos degradados pelo crime.
A
discussão final do livro, depois de percorrer mais de 350 páginas feitas de
questões e questionamentos em todos os níveis da ciência penitenciária, é sobre
a pena de morte. João Chaves parte da visão platônica, aquela que para ele foi
a mais branda, antes do movimento contra a pena capital, no Século XVIII, então
liderada por Beccaria e Sonnenfels. Segundo Platão, repetindo as palavras de
Chaves, ‘o crime é uma moléstia e o criminoso um doente’.
Plantão
vai além: ‘todos os remédios devem ser aplicados e só quando impossível a
transformação do criminoso pela sua incurabilidade’ caberia ao Estado – no
caso, a Athenas – deportá-lo do território ou executá-lo. É Platão, ainda, quem
afirma: a pena de morte é uma forma ‘de livrar a República de um perigo’, e
‘libertar o desgraçado de uma existência pesada’. A lição não convence a Chaves
que ergue, a partir daí, seu grande questionamento.
Técnico,
numa linguagem atual, limpa dos arabescos e ornatos, lança as duas questões
fundamentais para condenar a pena de morte. E pergunta: 1) Serve a morte aos
fins da pena? 2) Servindo aos fins da pena, apresenta todos os caracteres que
ela deve preencher? Ele mesmo responde: a pena de morte serve ao desejo ‘da
eliminação completa e absoluta’, mas não repara’. E acusa: ‘Falta à pena de
morte o característico essencial da reparabilidade’.
Ousado,
encerra o capítulo negando qualquer eficiência à pena de morte, até mesmo como
força exemplar. Para ele, nem o caráter excepcional se justificaria porque é
injusta. E fustiga seu caráter excepcional – ‘Ela será tanto mais injusta e
inconveniente quanto mais excepcional’ – para concluir, sereno e sem dúvida,
como um juiz seguro diante da sentença, impondo ao culpado uma pena perpétua:
‘A pena de morte é legítima, mas não é necessária’.
Foi
por esse gênio, o Dr. João Chaves, nascido em Macaíba e desaparecido aos 49
anos, que o grande Evaristo de Morais perguntou a Câmara Cascudo, em 1935.
Aquele homem de pele branca, grave e triste, que Cascudo viu uma única vez,
conversando com seu pai, numa tarde de 1917. Vestido de preto, pince-nez
emoldurando os olhos, mãos enluvadas para esconder a doença. Aquele homem de
gestos tímidos que fez do primeiro cumprimento ao filho do amigo um gesto de
distância e adeus. Um pudor suave e calado, porque voltara à sua terra sem
felicidade. Para morrer, recluso e deformado, numa manhã velha do Tirol.
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