Joca Souza Leão
Jocasouzaleao@gmail.com
Eu era o
cheirador oficial da família. Foi, não foi, minha mãe pedia pr’eu cheirar o
arroz, pra ver se tinha azedado na geladeira. Se dissesse que tava bom, a
cozinheira dava uma escaldada e tudo bem, ia ser o arroz do almoço. Mas se dissesse
que tava azedo, ela fazia outro na hora. E o azedinho ia virar arroz-doce pro
jantar, feito com leite de coco e polvilhado com canela. Apesar de tarado por
arroz-doce, nunca menti. Se dissesse que tava azedo, era porque tava – que eu
não ia pôr em risco minha fama e prestígio.
Meu
pai registrava com certo orgulho – e se atribuindo parte dos méritos – qu’eu
tinha herdado dele o rinencéfalo (anos depois, meu irmão médico, Caio,
esclareceu que se tratava da área do cérebro responsável pelo olfato). Cheirar
era comigo mesmo. Perfume forte e doce, ainda que bom, dava dor de cabeça. Se
fosse vagabundo, então... Eu era capaz de lembrar lugares e pessoas pelo
cheiro. E ainda sou. Pro bem e pro mal.
Naquele
tempo (e ainda hoje, acho), catinga era palavra de mau gosto – se não chula,
cafona. Gente bem e educada não falava catinga. Nem fedor. Falava mau cheiro. Apesar de Gilberto Freyre, muitos anos antes, em Casa
Grande &
Senzala, dizer que “catinga” não era mais palavra com “sabor arrevesado do
exótico” e que os menos puristas “já não têm, como outrora, vergonha de
empregá-la”, ali estava o cerne da
questão. Preconceito. Catinga é palavra de origem africana. Negra e pobre,
portanto. Mas na minha cabeça de menino, o preconceito ganhara significados. E
graduações. Mau cheiro, fedor e catinga. Na escala, de mal a pior.
Assim, minhas lembranças de infância têm
cheiros – não fedores nem catingas. No máximo, o azedinho do arroz. Naquele
tempo, o Recife cheirava. Dependendo da fruta da época e de onde se estivesse, cheiro
de manga (cada qual tinha seu cheiro: rosa, espada, itamaracá – que a gente
comia de colher –, manguito e jasmim), goiaba, jaca, cajá, caju (antes do
fruto, o cheiro da flor), mangaba, pitanga, graviola e sapoti. Espinheiro e
Graças, cada rua tinha um cheiro. Casa Forte tinha outros. Apipucos e Dois
Irmãos tinham todos. Cordeiro e Várzea, cheiros do interior, de mato e vacarias.
Boa Viagem, cheiro de brisa, de maresia, salgadinho. A Rua da Aurora, docinho,
de chocolate da Renda & Priori. Imperial, café, das duas torrefações que
havia lá. A Matias de Albuquerque, esquina com Pedro Ivo, maçã e pera. A Dantas
Barreto, bacalhau (que eu gostava, creio, porque já antecipava o cheiro do
bacalhau-de-coco lá de casa). Livramento, tecidos de algodão. Duque de Caxias,
couro de sapato novo. O Bairro do Recife, biscoito, açúcar e mar.
Havia
uma água-de-colônia (alemã, acho eu agora) que tinha no rótulo a gravura de uma
mulher com chapéu e leque. Eu achava que a mulher do rótulo era Dona Lucila,
casada com Dr. Oscar Coutinho, pois ela tinha o cheiro dessa água-de-colônia e
também usava chapéu e leque. Da minha primeira vez, lembro mais dos cheiros do
que da mulher. O cheiro da pensão, do quarto, do perfume forte, do sexo.
Provação – da qual me sai com relativo sucesso. Minha primeira namorada usava
Bond Street. A segunda, Fleur de Rocaille. Pouquinho. Nos punhos e atrás das
orelhas. Gostava de ver o jeito dela esfregar um punho no outro e do trejeito
com a cabeça para afastar o cabelo que lhe encobria as orelhas. “Não se usa
perfume na roupa” – aprendi com ela.
“Sei
de onde vens, sei por onde andaste. / Vens dos subúrbios distantes, dos sítios
aromáticos / Onde as mangueiras florescem, onde há cajus e mangabas (...)” – o
poeta Joaquim Cardozo sabia de onde vinha a “Chuva do Caju”. Dos sítios
aromáticos. Vinha, não vem mais. Com
ela, o Recife cheirava. Não cheira mais.
– Saudade?
– E apois!
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