Por:
Vicente Serejo
Seu
nome na certidão era Antônio José Bandeira. Só na certidão. Para nós, seus
amigos, era Seu Bandeira. E bastava. Morava numa casinha no meio do Alto da
Castanha, velho topônimo que resiste na geografia velha da cidade. Nos últimos
anos comprou outra casa, na mesma rua, mas já quase descendo pros lados das
Rocas, e instalou sua oficina. Chamava de escritório. E lá passou a viver e
dormir junto da sua impressora, sua guilhotina, suas caixas de tipos móveis.
Como se fosse o último Gutenberg.
Conheci
Seu Bandeira há uns quarenta anos, bem no início de 1970. Vi suas encadernações
nas estantes de Leonardo Bezerra e fiquei curioso. Leonardo vendo meu interesse
fez um bilhete com aquela sua Parker de tinta lilás apresentando o jovem
repórter do Diário de Natal. Fiz as duas coisas de uma só vez: levei os
primeiros livros e uma longa entrevista. De lá pra cá nunca mais deixei de
subir a ruazinha estreita ao Alto da Castanha. Ficamos amigos de ouvir
histórias, quase confidências, algumas vezes.
Um
vez, perto do Natal, levei uma garrafa de vinho e ficamos sentados ali,
conversando, no alto daquela sua calçada de quase um metro, enquanto a noite
chegava, calma, como um gato manhoso a se enroscar nas pernas dos tamboretes.
Foi então que reparei sobre a sua mesa, com a prensa manual do lado direito,
como se fossem umas espátulas. Peguei uma delas e olhei mais de perto. Era
feita de osso. E ele mesmo respondeu sem precisar ser perguntado: ‘Sou eu que
faço no esmeril. É de canela de boi’.
Na
técnica da encadernação é com a espátula que o encadernador vinca as dobraduras
das capas no encaixe com o dorso para que o livro possa ser aberto sem
comprometer a conformação. E ele sabia como ninguém vincar os volumes que
forrava de percalina com o dorso impresso em brim cáqui onde imprimia o título,
o autor e data da edição, se fosse o caso. Gostava de refilar as fímbrias
dizendo que assim o livro ficava mais limpo, renovado, a menos que ouvisse a
recomendação de não guilhotinar.
Dias
depois da nossa conversa sobre a espátula de canela de boi telefonou pedindo
que qualquer dia passasse lá. Quando cheguei, ele estava com uma espátula nova
e contou com um riso iluminando o rosto envelhecido que comprara pernas de boi
na feira para fazer um caldo de sustança e depois botou o osso maior pra secar
e fez uma espátula. Tinha notado pelos meus olhos o desejo de ter uma nesta
mesa cheia de tudo. E foi verdade. Trouxe a espátula que está aqui até hoje.
Fiz uma crônica de homenagem.
No
sábado o telefone tocou antes das seis da manhã, na mesma hora que ele sempre
ligava. Era o filho para avisar sua morte no meio da noite, depois de ser
internado às pressas com dificuldade de respirar e o coração dando sinais de
cansaço. Tinha 85 anos. De um bom humor doce, mas docemente malicioso, algumas
vezes. Lembro que um dia, depois de sua viagem a Canindé que fazia todos os
anos como promessa, perguntei sobre a vida. E ele, os olhos rindo por trás da
armação dos óculos: ‘Vai dando pro gasto. Umas coisas ainda usando, outras só
alisando’. Seu Bandeira! Vou sentir saudade dele!
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